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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Desigualdade na economia. O setor público e o privado são mundos cada vez mais afastados?

Por causa da pandemia, o fosso entre o público e o privado vai acentuar-se. Mas o Estado irá voltar a assumir um papel relevante como produtor de bens e serviços? Ensaio de António Nogueira Leite.

Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

A actual pandemia veio trazer ao de cima o longo debate sobre o papel dos sectores público e privado nas economias de mercado. Para alguns, observa-se um aparente retrocesso para uma economia em que o Estado volta a assumir um papel relevante como produtor de bens e serviços, muito para além dos sectores a que está hoje confinado. Nada indica que venha a ser assim, embora uma certa corrente ideológica procure utilizar todos os pretextos como justificativo para voltar a tentar aquilo que, pela via do conhecimento científico e da experiência, se sabe que não funciona.

Antes de mais, não podemos perder a perspectiva de que estamos num período único, em que a excepcionalidade do momento limita necessariamente a capacidade preditiva. No domínio da economia, essa limitação é particularmente severa. O tremendo fluxo de informação (muitas vezes contraditória) a que estamos sujeitos, assim como a raridade do impacto da evolução pandémica sobre as empresas, as pessoas e as instituições, dificultam o rigor das análises. E isso gera um campo fértil para a indução de enviesamentos cognitivos capazes de amplificar a natural tendência de alguns para verem em todos os acontecimentos um pretexto para a consecução daquilo que sempre desejaram. De facto, perspectivar o futuro agora, no meio deste processo único, é um pouco como tentar observar o horizonte quando se está no fundo de um desfiladeiro. Claramente, não é o momento ideal.

No contexto actual, a maior intervenção do Estado decorrerá da compra generalizada de activos pelos bancos centrais. Mesmo com algumas eventuais limitações, isso já se observa no caso do BCE e noutros casos internacionais – basta lembrar que se espera que o balanço do FED venha a comportar 38% da economia americana

Acresce que a ideia de que vamos entrar no que se decidiu chamar um “novo normal”, projectando-se imediatamente por todo o futuro perscrutável, parece-me ser outro equívoco típico de tempos raros como estes. Por um lado, porque qualquer “normal” social demora décadas a amadurecer e consolidar-se. Por outro lado, porque parte do pressuposto, algo inverosímil neste momento, de que a ciência, num esforço sem paralelo no passado, não proporcionará à humanidade uma vacina, nem um tratamento, nem as diferentes comunidades atingirão imunidade de grupo. Sim, o futuro será naturalmente diferente do que o que se esperaria num cenário contrafactual sem esta pandemia, mas, como já se enunciou, não entrámos em definitivo num mundo diferente do que conhecíamos e onde as soluções económicas socialmente eficientes se impuseram.

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A proteção dos funcionários públicos e a desproteção dos empreendedores

No contexto actual, a maior intervenção do Estado decorrerá, prima facie, da compra generalizada de activos pelos bancos centrais. Mesmo com algumas eventuais limitações, isso já se observa no caso do BCE e noutros casos internacionais – basta lembrar que se espera que o balanço do FED venha a comportar 38% da economia americana. Ora, os baixos juros resultantes são, em termos económicos, um verdadeiro imposto sobre a poupança. E, quando tudo isto se começar a pagar, a tentação será grande para levantar novos impostos sobre a poupança e a riqueza, com as distorções habituais e a penalização do factor capital, escasso em Portugal. Os riscos de mais Estado virão daí, não do retorno do Estado à produção. A frágil posição das nossas finanças e os enormes compromissos futuros não devidamente registados são o maior óbice a um arremedo de revolução de Outubro pós-moderna, que anda por aí na cabeça de alguns saudosistas do socialismo real.

Isso não impedirá, contudo, que o fosso entre o público e o privado se acentue. Uma área onde já está a aumentar é no mercado de trabalho. Pelo menos nos próximos tempos, e a menos que aconteça uma catástrofe de dimensões históricas, o primeiro-ministro tem afastado a ideia de que a crise possa ter implicações sobre os funcionários públicos. Quer em termos de vencimentos e benefícios, quer em termos de garantia de emprego. Ora, isto é o oposto do que já está a acontecer no sector privado, onde muitos dos trabalhadores perderam (ou têm a perspectiva de vir a perder) o seu emprego, vivendo nesta altura com apoios directos da Segurança Social.

A continuação da crise ampliará o número dos trabalhadores do sector privado que não terá mais acesso às condições de vida anteriores, esperando as instituições internacionais que, no final de 2020, muitos milhares engrossem o número de desempregados – a taxa de desemprego estimada poderá chegar aos 13%. A estes somar-se-ão muitos dos pequenos empreendedores que, nos últimos anos, investiram nos seus respectivos sectores e que, tendo contribuído fortemente para o crescimento da economia portuguesa, são agora dos mais afectados (e com as perspectivas de recuperação a médio prazo mais remotas). Isto sem esquecer quem apostou no turismo, sector de grande peso na economia. Seja na restauração, nos pequenos alojamentos ou nas actividades de apoio e transporte, quem aí investiu corre agora o risco de perder a sua fonte de rendimento e os seus investimentos.

O vírus pode atingir todos, mas é fonte de enorme injustiça ao afectar sobretudo os mais pobres e aqueles que decidiram arriscar e, com o seu esforço, contribuir para o bem de todos, por via do desenvolvimento económico do país. Em Portugal, a vontade política e as circunstâncias têm sido madrastas para muitos dos seus empreendedores.

A conta que fica por pagar

No curto e médio prazo, iremos assistir à utilização dos orçamentos dos Estados para atenuar parte do impacto que a pandemia e as soluções de saúde pública adoptadas irão necessariamente suscitar. A pandemia afecta a situação económica por várias vias que, em conjunto, provocam a maior crise económica desde o fim da Segunda Guerra Mundial – mesmo com os paliativos de intervenção pública disponíveis. Para além das perdas de produção e rendimento que a doença gera directamente, há efeitos de ainda maior dimensão que ocorrem em função das respostas de saúde pública disponíveis. Os sucessivos confinamentos por todo o mundo deixaram um longo rasto: quebras bruscas de produção, aumento imediato de desemprego, reduções significativas de rendimento para muitas famílias, estrangulamento e disrupção de muitas das cadeias logísticas hoje globalizadas. Estes e outros efeitos que continuarão a afectar seriamente a economia provocarão quebras no Produto Global que poderão suplantar os 3% este ano. Estas quebras tenderão a ser bem maiores nos EUA ou na Zona Euro, projectando-se reduções do Produto real que, nalguns casos, se aproximam ou mesmo ultrapassam os dois dígitos para 2020. Temos um choque que, ainda que não ocorrendo na sua máxima força de modo simultâneo, afecta simultaneamente a oferta e procura agregadas de cada país e dos vários blocos económicos, reclamando medidas de estabilização macroeconómica aos mais variados níveis.

Aos desempregados somar-se-ão os pequenos empreendedores. No turismo, seja na restauração, nos pequenos alojamentos ou nas actividades de apoio e transporte, quem aí investiu corre agora o risco de perder a sua fonte de rendimento e os seus investimentos.

O programa português de apoio à economia – relativamente pequeno no contexto europeu e, segundo os anúncios, representando cerca de 7% do PIB – porá, ainda assim, uma enorme pressão sobre as contas públicas. Devemos ter em mente, porém, que dado tratar-se de uma situação que inclui choques assimétricos da oferta e choques (também assimétricos) do lado da procura, teremos provavelmente impactos menos relevantes da política orçamental enquanto instrumento de estímulo à economia – sem querer ser demasiado técnico, isto tem uma explicação simples: as quebras nos mecanismos de transmissão implicarão necessariamente multiplicadores mais modestos do que nos choques clássicos a que estamos habituados. Mesmo assim, um plano comparativamente modesto poderá levar a dívida pública a subir de novo para mais de 130% do PIB. Este será um enorme obstáculo para Portugal. E que poderá ser um obstáculo ainda maior caso a recente decisão do Tribunal Constitucional alemão venha a afectar, na prática, a capacidade de intervenção do BCE – e, consequentemente, a prevalência de níveis de taxas de juros mais de acordo com o interesse dos países mais endividados.

A desejada “neo-sovietização com big data” morrerá por falta de meios

O uso da política orçamental na resposta à crise e à incapacidade de muitas empresas em sobreviverem sem intervenção pública, sobretudo nos sectores mais atingidos, tem dado novo ânimo às vozes que clamam pelo recrudescimento do Estado enquanto produtor de bens e serviços, dos transportes à banca, dos seguros à indústria. Não penso que tal venha a acontecer no médio e longo prazo, sobretudo no que respeita a Portugal, por duas ordens de razões.

Em primeiro lugar, porque o Estado sempre se revelou incapaz de, enquanto produtor, dotar as suas empresas de um sistema de incentivos e governança adequado, atingindo, em regra, menores resultados e uma muito mais fraca criação de valor (quando não a sua destruição) – quer em Portugal, quer um pouco por todo o mundo. Mesmo alguns erros clamorosos de gestão, como aqueles a que assistimos no passado recente em empresas reprivatizadas, têm pouco a ver com a natureza da propriedade (pública ou privada). Têm sobretudo a ver com muitas das ligações espúrias que caracterizaram a economia portuguesa no passado recente e a falta de profissionalismo e valores de alguns gestores. Mesmo quando falamos de bens com algumas características de bem público ou a prestação de serviço público, não é nada claro, muito pelo contrário, que a auto-regulação da propriedade pública seja superior à instituição de incentivos correctos, bom governo e adequada supervisão independente.

A necessidade consensualizada de o Estado investir no curto prazo na área da saúde ainda torna mais evidente que, para além de não ter razão subjacente, a ambição de alguns de nos levar de volta a uma “neo-sovietização com big data”, sob o argumento de que compete ao Estado aglomerar dados e supervisionar a produção económica, irá sempre morrer por falta de meios.

Em segundo lugar, no caso português, é patente a falta de capacidade financeira do Estado para voltar a ter o papel enquanto produtor que assumiu até à revisão constitucional de 1989. Mesmo num cenário em que o apoio decidido pelo Conselho Europeu, através do fundo de reconstrução em fase de concepção, tomasse a forma de subvenções a fundo perdido e o BCE pudesse continuar a sua política expansionista nos moldes anunciados, a margem de Portugal será sempre muito limitada. Não poderemos ver o Estado a ter os meios em sectores de onde saiu, e bem, há 30 anos, sob governos de centro-direita e de esquerda. Uma presença eficaz nas áreas a que está hoje confinado já implicará uma gestão dos dinheiros públicos no futuro bem melhor do que nos últimos anos: sem o desperdício dos anos de 2005-2011 ou a mera contenção e adiamento de investimentos que se lhe seguiu até hoje.

Os vários estudos disponíveis mostram que a inclusão das responsabilidades futuras na saúde e no sistema de pensões já implicava, antes da pandemia e do seu impacto, a imposição de objectivos orçamentais mais exigentes. Com a actual pandemia, fica ainda mais claro que sem reformas profundas nos sistemas de solidariedade intergeracional (pensões) e no financiamento do acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde, o Estado vai ter de encontrar áreas a sacrificar para não deixar definhar ou incumprir aquelas. Acresce que a necessidade consensualizada de investir no curto prazo na área da saúde ainda torna mais evidente que, para além de não ter razão subjacente, a ambição de alguns de nos levar de volta a uma “neo-sovietização com big data”, sob o argumento de que compete ao Estado aglomerar dados e supervisionar a produção económica, irá sempre morrer por falta de meios.

Este ensaio foi publicado originalmente na revista de aniversário do Observador, que está à venda nas bancas e online.

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