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O museólogo Paulo Costa é desde 2015 o diretor do Museu Nacional de Etnologia e do Museu de Arte Popular, em Lisboa
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O museólogo Paulo Costa é desde 2015 o diretor do Museu Nacional de Etnologia e do Museu de Arte Popular, em Lisboa

Rita Chantre / Observador

O museólogo Paulo Costa é desde 2015 o diretor do Museu Nacional de Etnologia e do Museu de Arte Popular, em Lisboa

Rita Chantre / Observador

Diretor do Museu Nacional de Etnologia: "Tem de haver fundamentos absolutamente sólidos para a restituição de peças aos países de origem"

O Museu de Etnologia é o menos visitado do país, mas está no centro do debate sobre restituições a antigas colónias. Em entrevista, o diretor opõe-se a "radicalismos", fala do PRR e pede mais meios.

O debate em torno da restituição de bens culturais e documentos às antigas colónias dos vários impérios europeus tem décadas, mas intensificou-se nos últimos anos. Em Portugal, o assunto ganhou renovada projeção nos últimos meses com as declarações do Presidente da República e da ministra da Cultura sobre a obrigação de o país assumir os custos dos crimes do colonialismo e de restituir bens culturais.

Chamada ao Parlamento, em julho, por resultado de requerimentos do Chega e do Partido Socialista, Dalila Rodrigues pôs o Museu Nacional de Etnologia no “centro para o debate” sobre a eventual devolução e convidou os membros da Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto a visitar o museu (de acordo com um comunicado enviado pelo próprio Ministério) para uma “visita de estudo”. Dois meses depois, nenhum deputado visitou o museu no Restelo, em Lisboa, conta ao Observador o seu diretor, o museólogo Paulo Costa.

Numa longa entrevista, o responsável pela direção do Museu Nacional de Etnologia (MNE) e pelo Museu de Arte Popular (MAP) revela que há planos para que as instituições se tornem autónomas, denuncia a falta de recursos humanos adequados para um funcionamento com “dignidade”, explica o baixo número de visitantes que coloca o MNE na base da tabela dos museus nacionais, e anuncia a digitalização do arquivo que será disponibilizada em 2025. Sobre a devolução de objetos às ex-colónias portuguesas, obtidos em contexto de dominação colonial, Costa alerta para o perigo dos “radicalismos” e apela à “serenidade”. O museólogo assume, também, que estará de saída da direção de ambos os museus após as obras no âmbito do PRR estarem concluídas.

Em 2023, o Museu Nacional de Etnologia [MNE] teve 6.907 visitantes, o que o torna o museu nacional menos visitado do país —  os mais recentes números dos museus, monumentos e palácios sob a gestão da Museus e Monumentos de Portugal [MMP], mostram que só o Museu da Música, o Museu da Resistência e Liberdade e o Museu José Malhoa têm menos visitantes, mas estes três equipamentos estiveram encerrados grande parte do ano. O que explica o baixo número de visitantes do MNE?
Há vários fatores que o explicam. Em primeiro lugar, as estatísticas de visitantes deste museu devem ser vistas em conjunto com as do Museu da Arte Popular [MAP], porque a verdade é que, desde 2012, os dois polos do museu funcionam sob uma única gestão e com uma única equipa. Não há duas equipas para fazer funcionar os dois museus. Quando o Museu Nacional da Etnologia recebeu o Museu da Arte Popular, passou a geri-lo com os recursos do Museu Nacional da Etnologia. Portanto, os números têm de ser entendidos nessa perspetiva.

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Os números de visitantes do Museu de Arte Popular ascendem a 8 mil, o que perfaz 14 mil no conjunto, mantendo-os no fim da lista…
A verdade é que não se podem fazer omeletes sem ovos. Para haver programação é necessário haver uma equipa adequada, com experiência, preparação. É necessário que existam recursos financeiros que não têm existido nos últimos anos de forma adequada para este museu. Agora, a questão fundamental é que o Museu Nacional da Etnologia, considerado individualmente, foi sempre um museu com poucos visitantes. O museu não está no eixo de Belém em que, ao longo de três quilómetros, o visitante pode percorrer uma quantidade enorme de oferta cultural, não apenas patrimonial e museológica, mas também lúdica. O museu está afastado deste circuito de Belém e ressente-se com isso.

O Museu de Etnologia fica na Avenida da Ilha da Madeira, no Restelo, em Lisboa. Embora tenha sido criado como instituição em 1965, o edifício onde o museu se encontra foi inaugurado em 1976.

Rita Chantre / Observador

Por estar no Restelo, uma zona menos movimentada.
Exatamente. O público não vem, não há uma circulação de pessoas aqui em cima no Restelo. Basta ver o que é isto durante a semana e, muito mais, ao fim-de-semana. É, de facto, um deserto. Em 2015, quando cheguei, o MNE tinha tido 12 mil visitantes no ano anterior. Apesar de estar formalmente a trabalhar em conjunto com o Museu de Arte Popular desde 2012, a verdade é que isso só passou a acontecer a partir de 2016. Entre 2015 até 2017 conseguimos um crescimento considerável de públicos. E, em 2017, ultrapassámos, pela primeira vez desde 1994, os 30 mil visitantes nesse ano. Foi o único ano.

O que aconteceu depois?
A partir do momento em que tivemos de começar a assegurar o funcionamento do Museu de Arte Popular, que na prática não existia até então, as nossas energias e os nossos recursos tiveram que ser divididos pelos dois museus. Naturalmente, esse crescimento sustentável e significativo em dois ou três anos inverteu-se. Há anos em que tem havido maior protagonismo no Museu de Arte Popular e menor protagonismo no Museu da Etnologia, porque os recursos são os mesmos, as pessoas são as mesmas.

Faria sentido que houvesse autonomia, direções e equipas distintas?
Faria todo o sentido. Aliás, a estratégia que temos pensada para as intervenções que irão ser feitas no Museu de Arte Popular, no âmbito do programa do PRR, vai precisamente nesse sentido. O projeto do Museu de Arte Popular tem um investimento significativamente superior ao do Museu de Etnologia. São 3 milhões e 200 mil euros. No Museu de Etnologia é apenas 1 milhão e 200 mil euros. O projeto do MAP implicará, necessariamente, a constituição de um núcleo permanente de interpretação do lugar de memória do museu, do edifício como dos últimos exemplares da arquitetura da exposição de 1940, da adaptação do pavilhão a museu, aberto em 1948, dessa história, das coleções. Além do espaço, reservado para exposições temporárias, está prevista a deslocação novamente para o MAP da totalidade das suas coleções, que, desde 2007, estão no Museu de Etnologia bem preservadas, limpas e inventariadas pela equipa que, na altura, foi constituída para as salvar do estado em que se encontravam na altura. Houve essa decisão de as transferir, ainda que temporariamente, e ficaram depositadas aqui no Museu de Etnologia. A ideia deste projeto, que o PRR permitirá materializar, é a deslocação das coleções que têm vindo a ser estudadas, a criação de novos núcleos significativos, a digitalização do arquivo fotográfico, a organização do arquivo histórico, organização e catalogação da biblioteca, acessível ao público, em conjunto com a biblioteca do Museu Nacional de Etnologia. Portanto, a ideia é dotar todo o edifício do Museu de Arte Popular do seu património imóvel, de modo a ser pensado, com o fim das obras, a possibilidade de um museu poder vir a ser autonomizado do Museu Nacional da Etnologia.

Como uma direção independente?
Exatamente. A hipótese da sua autonomização é na perspetiva de que possa ser constituída uma equipa autónoma. A verdade é esta: os atuais 20 efetivos do Museu Nacional de Etnologia, entre os quais me conto, não são suficientes nem para as necessidades internas das coleções e edifícios do Museu Nacional da Etnologia, muito menos, também, para a gestão de um outro polo que tem algumas especificidades. Tendo pertinência a sua relação com o Museu Nacional de Etnologia, terá que ter uma equipa apropriada e no local a servir o público em permanência.

"O Museu Nacional de Etnologia não funcionará nunca com a dignidade necessária enquanto tiver as 20 pessoas que tem divididas com o Museu da Arte Popular. Somos 20 pessoas quando, pelas minhas contas, deveríamos ser 50 apenas para o Museu Nacional de Etnologia."

Se tal acontecer, manter-se-á na direção do Museu de Etnologia ou no de Arte Popular?
Vejo as coisas a muito curto prazo, não estou minimamente preocupado com essa questão. Dentro dos possíveis e dos impossíveis, tenho tentado assegurar o funcionamento do Museu da Arte Popular. Agora, o Museu Nacional da Etnologia não funcionará nunca com a dignidade necessária enquanto tiver as 20 pessoas que tem, apenas, divididas entre o Museu Nacional da Tecnologia e o Museu da Arte Popular. Não terá. Exige uma outra lógica. Pelo simples facto de que estamos a dois quilómetros e meio afastados um do outro e do esforço suplementar que isto exige.

Só em dezembro é que o MNE passou a ter uma conservadora-restauradora. A escassez de pessoal nos museus tem sido amplamente reportada, com denúncias de quadros envelhecidos ou pura e simplesmente esvaziados. Tal também acontece no MNE?
Claro. Temos uma única pessoa dos serviços educativos em permanência de segunda a sexta-feira, o que significa que ao sábado e ao domingo, em que temos um fluxo de públicos importante, não consigo ter visitas guiadas nem às exposições, nem às reservas visitáveis, que são parte fundamental da oferta expositiva do Museu Nacional de Ecologia. E não tenho ninguém para o serviço educativo do Museu da Arte Popular. Tínhamos duas pessoas que perdemos e uma delas estava em formação. Quando uma pessoa desaparece, leva com ela setores de atividade inteiros. E é insubstituível. Nenhum deles foi substituído até o momento. E seria a coisa mais simples, administrativamente, substituir o funcionário que faleceu.

Então porque não foram substituídos?
Tivemos a transição da DGPC (Direção-Geral do Património Cultural) para a MMP (Museus e Monumentos de Portugal) e praticamente pararam todos os processos o ano passado. Este ano, a MMP está-se a pôr de pé também e os museus têm todos muitas necessidades. Há uma dificuldade enorme. Antes era a questão da mobilidade, sempre uma incógnita. Havia muito pouca mobilidade e disponibilidade para mobilidade. Andávamos em circuito autofágico. Os museus andavam a recrutar as pessoas em mobilidade de outros museus ou de outros serviços de administração pública. Mais grave era no caso dos serviços de administração pública, que não tinham experiência de museus.

Há uma expectativa sobre a recém-criada Museus e Monumentos de Portugal [empresa criada a partir da extinta DGPC]?
Há. Nomeadamente que haja novas possibilidades de recrutamento. Mas isto levará o seu tempo para pôr de pé. Este museu não tem sido muito falado. Normalmente o que é falado, a propósito destas dificuldades de salas que fecham, de guardas que não existem ou de projetores que estão fundidos, é o Museu Nacional de Arte Antiga ou o Museu de Arqueologia. Os outros têm ficado um bocadinho na penumbra. Os problemas são problemas em 38 serviços. Tenho que ter essa consciência. Quando fico muito incomodado por não haver respostas em relação a um pedido de recrutamento, sei que tenho 37 colegas também com os mesmos problemas permanentemente.

Todas as reservas do museu são visitáveis sob marcação prévia. Na coleção de arte africana há peças de Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde ou Guiné

Rita Chantre / Observador

No caso do Museu de Etnologia, grande parte da coleção não está à vista, só é acessível por marcação prévia. Não se cria a ideia de que há coleções guardadas a sete chaves que não podem ser vistas?
Não, de todo. Este museu foi pensado com quatro salas de exposição temporárias. O objetivo era precisamente ter uma oferta cultural expressa em exposições temporárias que fossem dando conta daquela enorme produção de investigação que o museu fazia constantemente com o corpo de investigadores, muito considerável, que teve até 1989 e que nesse ano perdeu em definitivo.

Porquê?
Em 1989 o museu transita da tutela da Educação para a tutela da Secretaria de Estado da Cultura. Mas nesse processo só transita o edifício, as coleções e o seu corpo técnico e administrativo. O seu corpo científico, os seus investigadores, que estavam precisamente na carreira de investigadores, permaneceram na instituição de tutela original e não acompanharam essa transição. Essa perda de know-how e de investigadores repercute-se até à atualidade. Mesmo enquanto dispunha de um quadro pessoal autónomo, o museu nunca dispôs dos técnicos superiores suficientes em correspondência ao número de investigadores que detinha até 1989. Passaram entretanto 30 anos e nunca se conseguiu substituir essas pessoas na sua totalidade. Chegamos a esta situação singular de que o Museu de Etnologia e o Museu de Arte Popular, em 2024, tem 20 pessoas para os dois museus, para todas as 54 mil peças, entre as 42 mil do Museu de Etnologia e as 12 mil do Museu de Arte Popular, mais os dois edifícios… Somos 20 pessoas, quando, pelas minhas contas, deveríamos ser 50 apenas para o Museu Nacional de Etnologia.

O museu vai finalmente sofrer obras, ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência [PRR]
A partir de 2015 e até 2020 houve todos os anos intervenções de fundo setoriais em todas as coberturas menos uma. Todos os problemas graves e existentes nesses anos foram resolvidos, por vezes in extremis, mas foram resolvidos. No âmbito do PRR ficará apenas a intervenção na única cobertura que não foi objeto de intervenção desde 2015.

As obras do PRR vão contemplar o quê exatamente?
Além da intervenção nesta cobertura, vão contemplar a substituição completa do sistema de climatização da área original de construção do edifício, que foi construído em 1976, e a remodelação, a revisão do sistema de climatização instalado em 2000 para a área de ampliação construída nessa altura para o museu, e que dotou o museu de biblioteca e dois novos espaços de reserva, sobretudo. Esta intervenção no sistema de climatização é fundamental para acautelar que o museu continue a ter as condições ideais para a conservação de todos os acervos que aqui alberga.

Portanto, o Museu de Etnologia não terá de fechar portas?
Em princípio não. Talvez pontualmente, durante algumas semanas, mas não implicará o encerramento do museu ao público.

Para quando estão previstas as intervenções?
Pelas informações que recebi em julho, estão previstas até ao final do ano aqui no Museu Nacional de Etnologia. A versão final do projeto de execução está neste momento em apreciação pela equipa técnica do Património Cultural IP. No caso do projeto do Museu de Arte Popular, o valor é substancialmente superior, o estudo prévio foi já apresentado ao Património Cultural IP, está também em apreciação. Pelas informações que foram veiculadas em julho, a intervenção no Museu de Arte Popular será iniciada em 2025.

"O Museu Nacional da Etnologia foi sempre um museu com poucos visitantes. Está afastado do circuito de Belém e ressente-se com isso. O público não vem, não há uma circulação de pessoas aqui em cima no Restelo. É um deserto."

Falemos da coleção do museu. A coleção de arte africana, que deu inclusivamente origem a uma exposição no Museu para a Arte Africana de Nova Iorque, é uma das mais volumosas do acervo.
Sim, em conjunto com a coleção relativa a Portugal.

Os pedidos de restituição por parte de países africanos são tão antigos quanto a descolonização, mas a questão foi sucessivamente adiada até que nos últimos anos o debate reacendeu. O que pensa sobre a eventual devolução de bens às ex-colónias portuguesas?
A minha opinião é que tem de haver fundamentos absolutamente sólidos para haver restituição de peças aos países de origem. Fala-se muito de restituição num contexto ideológico, mas presta-se muito pouca atenção, por exemplo, a toda a massa de bens culturais que circulam pelo globo em contexto de tráfico ilícito e que continua a circular para o primeiro mundo a partir do terceiro mundo. Para mim, que trabalhei nessa área e fui responsável durante vários anos pela área da gestão de coleções nas entidades de tutela relativamente à questão da prevenção do tráfico ilícito, estranho que, por exemplo, toda esta questão da restituição de repente esteja a tirar o enfoque naquilo que foi o foco privilegiado de parar a sangria que continua a existir de património, por exemplo, da África para a Europa ou para os Estados Unidos por canais que continuam a existir, ou canais novos até, comércio através da internet. Sobretudo no caso dos museus, claramente, o foco tem de ser colocado sobre peças que foram objeto de roubo, de pilhagem, de apropriação indevida. É esse o foco em que, claramente, e nos termos do que a lei reconhece em todos os países desde há inúmeras décadas, pelo menos há 50 anos, com a convenção da Unesco de 1970, deveríamos estar focados e não deixar que questões ideológicas ou outras, e as suas ramificações mais extremistas, mais radicais, contaminassem esta ação que os museus fazem em prol da salvaguarda das suas coleções. Havendo museus que identificam, como sempre houve, bens roubados nas suas coleções, naturalmente esses bens têm de ser restituídos e têm de ser despoletados os mecanismos para a sua restituição. Agora, começava por definir essa propriedade desses bens que foram efetivamente roubados e que são inequívocos nesses casos.

Em julho, a ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, foi ouvida no Parlamento sobre esta matéria e colocou o Museu Nacional de Etnologia no “centro de estudo” deste debate, convidando mesmo os deputados “a uma visita de estudo” ao MNE. Algum deputado visitou o museu desde então?
Ainda não.

Dalila Rodrigues revelou ainda que foi enviado para os museus, monumentos e palácios tutelados um inquérito para ter conhecimento sobre bens culturais provenientes das antigas colónias portuguesas. O Museu Nacional de Etnologia já respondeu a esse inquérito?
Sim, respondeu logo que foi solicitado para tal.

Para esclarecer: refere-se ao que foi pedido ainda pelo anterior ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva [o anterior governo do PS anunciou que ia elaborar uma “lista” do património cultural com origem nas ex-colónias portuguesas], ou foi um novo inquérito pedido pela atual ministra?
Um novo inquérito pedido pelo novo Governo.

Antes de assumir a direção dos dois museus (MNE e MAP), em 2015, Paulo Costa foi técnico superior na Direcção-Geral do Património Cultural, onde desempenhou funções na área do património imaterial.

Rita Chantre / Observador

Segundo a ministra da Cultura, existem 14.685 bens culturais com origem nas ex-colónias no MNE, mas estão documentados de uma forma incompleta, “muito superficial”, e que por isso é necessário um inventário mais aprofundado com o apoio de universidades e centros de estudos. Este inventário já está em marcha?
O inventário rigoroso é um trabalho do dia-a-dia que os museus fazem em permanência e mediante as possibilidades e os recursos de que dispõem. Todas as peças do Museu de Etnologia respondem de registos de inventário e depois existe toda esta documentação que de uma forma mais ágil, uma vez digitalizada, permitirá fazer a pesquisa e o aprofundamento da documentação existente para identificar cada peça em particular. O inventário é um trabalho que não começou nem ontem, nem no ano passado, nem há 10 anos. Essa é uma preocupação permanente dos museus. Temos neste momento a felicidade de ter em curso a digitalização e a inventariação do nosso arquivo histórico. É um meio fundamental podermos, precisamente, aprofundar a documentação do inventário de todas as nossas coleções. A primeira fase estará concluída, espero que em novembro próximo. Todas as coleções do Museu de Etnologia estão inventariadas, dispõem de registos de inventário individuais, desde sempre a organização do inventário deste museu é algo absolutamente exemplar, mas, de facto, este trabalho que temos agora, graças a este projeto em que foi possível contratar uma empresa especializada na inventariação, descrição e digitalização de arquivos históricos, será uma matéria fundamental, quer para fins internos, para aprofundarmos o inventário das nossas coleções, fazermos pesquisas de proveniência, assim como para facultarmos esta documentação a investigadores externos que recorrem ao museu constantemente, não apenas de Portugal, mas de muitos outros países. Será uma informação fundamental para podermos, no futuro, logo possível, irmos a partilhar também com todo o público para se perceber a história deste museu e os processos como as suas colações foram constituídas de uma forma completamente transparente.

De acordo com o depoimento de Dalila Rodrigues na Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, as obras que existem no Museu da Etnologia, no contexto das ex-colónias, “foram recolhidas num registo de igualdade, sem qualquer superioridade”.
Absolutamente.

As peças adquiridas em contexto de missões científicas, como a liderada pelo histórico antropólogo Jorge Dias entre os Macondes de Moçambique…
Sim, a primeira que dá origem à coleção, quando ainda não havia museu nem ideia de museu.

A questão que lhe coloco é se qualquer transação feita neste tipo de contexto não exige questionamento. Isto é, os Macondes poderiam ter dito “não vendemos”?
Poderiam e por vezes disseram. Temos casos. No caso da coleção dos macondes isso está muito bem identificado. Tal como sucedia com peças adquiridas em Portugal por todos os municípios do país por onde a equipa andava, quando compravam peças. Há casos destes nos macondes, por exemplo, de um instrumento musical em que o instrumentista, o músico, concorda em vender a peça à equipa do Jorge Dias e da Margot Dias, mas, para além de pagarem a peça propriamente dita, o Jorge Dias e a Margot Dias pagaram a feitura de um novo instrumento musical para o músico continuar a poder a tocar. É algo que é fundamental nas coleções deste museu. Ao contrário, por exemplo, das coleções do Museu de Arte Popular, em que entravam peças que não tinham marcas de uso. Um critério fundamental neste museu, desde o primeiro momento, para uma peça poder ser considerada uma peça etnográfica, é ser uma peça que tem marcas de uso. É um instrumento musical que foi tocado, é uma panela que esteve ao lume a fazer sopa ou a fazer um guisado, é um assador de castanhas que tem as marcas do lume e das raspagens da grelha que pertence ao próprio assador de castanhas. Não são peças que são compradas à boca do forno do oleiro que faz o assador de castanhas ou que faz a panela de barro.

Portanto, não compreende as reservas sobre a possível desigualdade de poder entre as partes envolvidas na transação?
Considero que isso é uma outra questão. Aqui houve um outro critério fundamental para compreender a especificidade e a vanguarda com que este museu foi pensado nos anos 60 por comparação com os museus de etnologia que existiam então, e que eram, na sua grande maioria, museus efetivamente coloniais. Este é um museu que dá um novo estatuto ao objeto indígena, apresentando a par de uma peça produzida na metrópole, com o mesmo estatuto. Este museu aparece com este espírito de valorização das culturas indígenas, independentemente do local de proveniência da cultura. É algo que rompe com o paradigma dos museus de etnologia, que efetivamente consideravam que os povos que apresentavam nesses museus eram povos primitivos em relação à população da metrópole dessa colónia. Nada disso se passa aqui no Museu Nacional de Etnologia. Nunca. E isso é fundamental para compreender o que este museu é hoje e foi desde o primeiro momento da sua idealização.

"Tem de haver fundamentos absolutamente sólidos para haver restituição de peças aos países de origem. Fala-se muito de restituição num contexto ideológico, mas presta-se muito pouca atenção a toda a massa de bens culturais que circulam pelo globo em contexto de tráfico ilícito e que continua a circular para o primeiro mundo a partir do terceiro mundo."

O museu começou por ter como nome Museu da Etnologia do Ultramar.
Pois foi. Foi uma imposição do Ministério do Ultramar, que foi a primeira entidade tutela do museu, até 1974, que funcionava aqui em frente neste edifício que é o atual Estado-Maior das Forças Armadas. E, de facto, foi uma imposição da tutela.

Foi criado no contexto de ditadura.
Foi criado, sim. A missão organizadora do museu foi implementada em 1962. O museu foi formalmente criado em 1965 como Museu de Etnologia do Ultramar. Infelizmente, o Jorge Dias não conseguiu mudar o nome, por causa destas enormes tensões que existiam entre ele e a tutela, expressas nestas questões. Por exemplo, o Ministério do Ultramar demorou mais de quatro anos a autorizar a compra da coleção da Amazónia, feita pelo Vítor Bandeira, na Amazónia entre 1964-1975, precisamente porque, não sendo já o Brasil colónia portuguesa desde 1822, não havia razão para o Museu de Etnologia do Ultramar ter uma coleção proveniente do Brasil. Mas o museu tinha conseguido adquirir coleções. Das primeiras coleções que o museu adquire, logo em 1963, são coleções portuguesas e são coleções de países africanos que não eram colónias portuguesas. Portanto, o museu em 1974, quando se dá o 25 de Abril, tinha já grande parte dos povos e culturas que estão aqui representados.

Não é justo dizer que este começou por ser um museu do colonialismo?
Nunca foi. Na prática nunca foi. Apesar do nome que lhe tinha sido imposto pela tutela, nunca foi um museu só do Ultramar, nem era de todo o que a equipa queria fazer.

Queriam fazer um museu de etnologia dedicado a toda a humanidade. Não era de todo um museu apenas para as colónias. A grande batalha do Jorge Dias e da sua equipa foi ter aqui um maior número de culturas representadas. Veja bem que uma das nossas principais coleções é, por exemplo, a coleção da Indonésia. É a coleção da Indonésia foi constituída ainda no tempo em que o museu era o Museu de Etnologia do Ultramar. E o Museu de Etnologia do Ultramar abandonou essa designação por proposta do Dr. Ernesto Aguinaldo Oliveira, que sucedeu a Jorge Dias como diretor do museu, quando o Jorge Dias morreu. É ele que, em 1974, poucos dias depois do 25 de Abril, envia uma carta à tutela a dizer que este museu não deve ser o Museu de Etnologia do Ultramar, porque a verdade é que nunca foi vocacionado só para o Ultramar. As suas coleções transcendem muito o Ultramar. Tudo o que fazemos aqui todos os dias é para valorizar a diversidade cultural da humanidade.

Nos últimos anos, têm sido várias as ocasiões em que as autoridades do património portuguesas têm garantido que não houve qualquer pedido de devolução por parte das antigas colónias. Em 2019, numa altura em que o debate sobre o assunto já estava em curso, em particular a nível europeu, disse à agência Lusa que, até ao momento, não tinha recebido qualquer pedido de restituição de peças. Passaram seis anos, o MNE recebeu algum pedido entretanto?
Não.

Aguinaldo Cristóvão, secretário de Estado da Cultura de Angola, garantiu estarem já identificadas várias peças em coleções públicas e privadas portuguesas que o governo angolano gostaria de ver regressadas ao país [Público, 2020]. O MNE nunca foi contactado para devolver quais peças provenientes de Angola?
Nunca. Nem formalmente, nem informalmente.

Em 2004, o colecionador Francisco Capelo fez uma doação de máscaras e peças de teatro do Mali, uma incorporação de relevo na coleção de arte africana do museu

Rita Chantre / Observador

Há muito que se fala na necessidade de restituir o património a África, com países e organizações a fazer esforços nesse sentido, nomeadamente a França e a Alemanha. Porque demorou tanto tempo a que o assunto fosse debatido em Portugal?
Julgo que não demorou tanto tempo, francamente. Porque os efeitos do denominado relatório Macron fizeram-se sentir, até mediaticamente, com grande impacto, uma semana depois do relatório ter sido conhecido em França. Esse relatório, como sabemos, é um relatório da autoria de um economista senegalês e de uma historiadora francesa — Bénédicte Savoy e Felwine Sarr — e nunca foi adotado como um instrumento técnico estratégico pela República Francesa. Portanto, continua a ser um relatório que tem dois autores e que exprime a posição e as opiniões individuais dos seus autores.

Discorda daquilo que é apresentado no documento?
Não, estou a constatar um facto, apenas isso. Nesse primeiro impacto que a divulgação do relatório Macron teve foi dado a entender muitas vezes, ou quase sempre, que era um documento oficial da República Francesa. Não. Foi um relatório encomendado pelo Presidente Macron, mas o relatório nunca foi adotado como posição oficial da República Francesa ou do Ministério da Cultura Francês.

Daí também que aquilo que o relatório preconizava, os efeitos práticos até ao momento foram muitíssimo reduzidos em relação àquilo que se perspetivava em 2017. A discussão chega imediatamente trazida pela imprensa, que deu muita atenção a isto. Desde então têm sido relativamente constantes as atividades que têm sido desenvolvidas, nomeadamente em meio académico e não só, em museus também e nós também o temos feito. Por exemplo, no ano passado fizemos aqui um encontro internacional dedicado ao tema da descolonização das coleções europeias, com várias comunicações dedicadas à questão da restituição.

Portanto, defende que faz sentido haver restituição de coleções aos países de origem?
Faz sentido nos casos em que deve haver.

Que não é o caso das peças que estão no Museu Nacional de Etnologia?
Não, porque não temos identificado nenhuma proveniência lícita, precisamente porque o museu nasce muito tardiamente. O museu tem processos de constituição de coleções que não eram os processos de constituição de coleções para os museus imperiais do final do século XIX e início do século XX. São processos ancorados na investigação científica, no caso das coleções que decorrem de missões de pesquisa do próprio museu. O museu tem critérios de constituição das coleções, inclusivamente dizer o que é um objeto etnográfico. Não é todo, é aquele que tem marcas de uso. O que era muito diferente daquilo que eram 80 anos antes, ou 60 anos antes, os critérios na constituição das coleções para os principais museus de etnologia da Europa. É uma outra coisa completamente diferente. Não temos aqui identificados quaisquer casos desse género.

Como observa a discussão, cada vez mais premente, não apenas da importância da descolonização das coleções, mas da cultura e do pensamento?
Parece que se está a descobrir uma coisa que foi sempre uma preocupação fundamental de alguns museus. Infelizmente, não foi de todos, mas foi de alguns museus. Por outro lado, parece-me também que neste contexto atual se caem facilmente em radicalismos que são totalmente dispensáveis e que tiram a atenção daquilo que os museus deviam estar a fazer como tarefa fundamental.

Que é?
É fazer este trabalho todos os dias, de forma serena e para todas as coleções. E, por tal, é necessário que tenham os meios, desde logo os humanos, necessários para o fazer. A verdade é que há muito tempo que nem todos os museus, e alguns em particular, não têm de todo os meios suficientes para o fazer com a serenidade necessária.

É diretor do Museu Nacional de Etnologia desde 2015. O seu antecessor, Joaquim Pais de Brito, esteve no cargo por 23 anos. Como observa a longevidade nas direções de museus?
Há dois planos de questões que esta longevidade evoca. Por um lado, sobretudo quando não existem os meios humanos necessários, é preciso algum tempo para concretizar algumas coisas. É preciso muita resiliência para não desistir perante tantos obstáculos e dificuldades, tanta morosidade para conseguir alguns projetos que por vezes têm muito pouca visibilidade imediata. Por exemplo, este projeto de digitalização do arquivo histórico, algo que identifiquei como absolutamente prioritário quando aqui cheguei em 2015, tem sido feito internamente com as poucas pessoas que aqui existem continuamente. Estamos a acumular esses ganhos para que, expectavelmente, em 2025, os possamos partilhar ao público, promovendo e divulgando esses arquivos online. Foi necessário aguardar oito anos até conseguir que este projeto, que exigia ser feito exclusivamente por recursos externos, por uma empresa especializada, e tinha custos financeiros associados. Isto é um dos planos das questões, é preciso paciência, resiliência e é preciso não abandonar o barco facilmente. Mas há um outro lado da moeda. Apesar da experiência que se adquire no cargo, podem-se perder facilmente algumas coisas, desde logo a energia. Portanto, estes cargos não podem ser exercidos indefinidamente. Gostaria de ver concretizadas algumas linhas de trabalho que tenho vindo a trabalhar e com as quais tenho tido muita paciência no decurso dos últimos anos. Agora com o PRR, tanto no Museu de Etnologia como no MAP, vão-se concretizar até 2026, mas esse é o meu horizonte. É concluir esta fase de trabalho e depois é tempo de passar a pasta a outra pessoa.

Portanto sairá da direção dos museus após as obras?
Queria concluir este trabalho que é a minha preocupação agora. E vai ser uma enorme dificuldade concluir isto com as 20 pessoas que somos.

A data-limite para executar o Plano de Recuperação e Resiliência é 2026.
É, mas não é algo fácil. A verdade é que um museu não se esgota na obra. O problema de grande parte dos equipamentos culturais, concretamente dos museus, é que criam esta expectativa quando se faz algo de vultoso, mas depois para a vida ser assegurada com normalidade é necessário que exista uma equipa qualitativamente e quantificavelmente considerável para fazer a instituição funcionar. Esses meios é que têm de ser assegurados. Essa é a questão vital.

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