Chegámos a meio do ano, altura ideal para um primeiro balanço da produção musical de 2020, ano maldito. Não tem sido uma época propriamente frutuosa: faltam discos de génio, pedradas no charco, clássicos instantâneos. Mas há excepções – e é delas que falamos aqui.

“RTJ 4”

Run the Jewels

Todos os discos dos Run the Jewels (que são a dupla El-P and Killer Mike) são distopias sonicamente sujas, em que os MCs cospem os seus pesadelos sociais com uma fúria e sageza que é rara. Mas o que antes soava a ficção hoje é a mais cruel realidade – é que o presente (neo-nazis nas ruas, democracias musculadas na Europa, EUA e América do Sul, pandemias) alinhou-se com o lirismo dos RTJ, tornando 4 (que, apesar da sua violência, é o mais próximo que a dupla chegou de uma bomba acessível ao mainstream) ainda mais pungente e doloroso.

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“Punisher”

Phoebe Bridgers

Phoebe Bridgers começou por ser uma canção – “Motion Sickness”, do seu álbum de estreia, Stranger in the Alps, um tema que reportava a relação abusiva que alegadamente o músico Ryan Adams manteve com ela. “Motion Sickness” explodiu no Spotify, tornando Bridgers uma das figuras do movimento que levou uma série de raparigas novas (Lucy Dacus, Julia Jacklin) ao topo do indie-rock. Três anos depois, Punisher é um disco ainda mais conseguido que Stranger in the Alps, com a sua folk dorida a ser debruada a meticulosos arranjos que nunca tiram espaço ao sussurro etéreo de Bridgers – que se arrisca a chegar ao panteão das estrelas antes a meio dos vintes.

“A Written Testemony”

Jay Electronica

Passaram 13 anos desde que Jay Electronica lançou a sua primeira mixtape, Act I: Eternal Sunshine (The Pledge), no MySpace e ela tornou-se tão popular que uma estrela foi parida logo ali. Mas nos 13 anos subsequentes Jay só lançou colaborações e canções dispersas e só agora, em 2020, temos direito ao disco de estreia – que nunca poderia estar à altura das expectativas. E ainda bem, porque A Written Testimony é um caso único, um disco estranho e explorador, em que o rap lento e meditativo de Jay se sustenta numa produção suja e psicadélica. E, pelo meio, ainda há um Jay-Z com uma fúria e verve como não lhe conhecíamos há muito.

“Every Bad”

Porridge Radio

O indie-rock entrou em autofagia quando começou a reduzir-se a guitarrinhas que podiam pertencer a um lado B dos Byrds, melodias delicodoces e letras eternamente sobre-sensíveis. O que o indie-rock precisa é de libertar-se do indie-rock, o que o indie-rock precisa é de Every Bad, um disco em que logo na primeira canção, “Born confused”, há acordeões e violinos e berraria em conjunto e um êxtase como há muito não saía de seis cordas eletrificadas. Logo a seguir, em “Sweet”, estão a fazer uma barulheira danada, e em “Don’t ask me twice” oferecem-nos um petardo de violência que descamba num dos mais grandiosos refrões do ano. Chega de sensibilidade, o mundo está a precisar de insensíveis barulhentos, eles também têm coração.

“It Is What It Is”

Thundercat

Por esta altura já devia ser consensual que Thundercat é uma figura incontornável da música (chamemos-lhe) negra exploratória. It Is What It Is não rompe com Drunk, o seu disco terceiro disco (e o mais bem sucedido), antes leva mais fundo a vontade de fundir jazz, soul e funk numa viagem psicadélica em que cada compasso se torna uma curva rumo ao inesperado. Mais um grande disco de um músico maior.

“Saint Cloud”

Waxahatchee

Um disclaimer honesto: nunca fui propriamente fã de Waxahatchee, a banda de uma mulher só, Katie Crutchfield, pelo menos enquanto ela brincou ao indie-rock; confesso até que ela é, possivelmente, da geração de fêmeas indie, a que mais me aborrecia (só superada por Mitski). Mas um período na sua terra natal, Waxahatchee Creek, no Alabama, trouxe ao de cima os demónios de Crutchfield, os do passado (a sua infância) e os do presente (a necessidade de beber em excesso). Saint Cloud nasce da tentativa de se manter sóbria – e afunda por completo na «americana», a música de raízes dos EUA, revelando uma grande escritora de canções, ao nível da rainha Lucinda Williams.

“We’re New Again – A Reimagining by Makaya McCraven”

Gil Scott-Heron & Makaya McCraven

Em 2010 Gil Scott-Heron editou I’m New Here – um ano depois morria, após décadas a depender de crack e a transportar o vírus do HIV. Em vida Scott-Heron foi um poço de contradições: culto, politizado desde criança, criou uma espécie de fusão entre spoken work e jazz afunkalhado que o tornou rapidamente uma estrela. O seu tema mais conhecido, “The bottle”, alerta a comunidade negra para não se deixar cair na tentação do vício. Mas a partir dos anos 80 Scott-Heron sucumbiu às drogas, foi parar à prisão, e quando Richard Russell, o dono da XL Records, propôs que fizessem I’m New Here, fê-lo pela oportunidade de trabalhar com o seu ídolo antes que fosse tarde de mais. O resultado misturava eletrónica e versões (de Bill Callahan, até), a que a voz vivida de Heron conferia autoridade. Mas tal como ele teve muitas vidas também I’m New Here insiste em não morrer: primeiro foi Jamie XX a criar um novo disco, We’re New Here, a partir do tomo de despedida; agora foi a vez de Makaya McCraven, que estraçalhou por completo o original aproximando-o do som do Scott-Heron do início – e A Reimagining é um clássico imediato.

“Sideways To New Italy”

Rolling Blackouts Coastal Fever

É sempre fim de verão, no mundo dos Rolling Blackouts Coastal Fever, aquela altura em que nos preparamos para arrumar as tralhas na mala do carro e voltar a casa e ao trabalho. Arrancamos e sentimos já a melancolia de sabermos que a pele bronzeada vai sair e no dentro de dias tudo (o mar, a leveza, as imperiais) será apenas memória. As belíssimas melodias das guitarras indie-rock, que ecoam os Byrds e os Go-Betweens, estejam sempre carregadas de uma qualquer imponderável saudade. E que banda tão bela, eles são, e como é boa a melancolia durante meia hora.

“Have We Met”

Destroyer

Cada novo disco dos Destroyer (que na realidade é Dan Bejar com os músicos que houver à mão naquele momento) constitui uma guinada face ao anterior, mantendo-se apenas um elo comum (além da voz de Bejar): a permanente homenagem à obra dos Apartments, de David Milton Walsh. Desta feita Bejar junta elementos glam e de eletrónica ao que não deixam de ser torch songs, trágicas, desesperadas, em que a solidão se esconde por entre o fumo de demasiados cigarros e solos disfuncionais de guitarra. Estranhamente, funciona.

“Countless Branches”

Bill Fay

Cada novo disco de Bill Fay é um acontecimento, que mais não seja porque o homem esteve 41 anos sem editar, entre Time of the Last Persecution (1971) e Life Is People (de 2012). Em Countless Branches encontramos peças delicadas ao piano, com discretos arranjos de cordas em torno da voz, num disco introspetivo e cósmico, que implora pela redenção humana. Tudo aqui é feito de fragilidade e beleza, com ecos de David Ackles ou Dennis Wilson a solo, só que estas canções – como a espantosa “Filled with wonder once again” – estão cheias de uma esperança tal que nem parecem humanas.

Cinco discos importantes

Por estranho que pareça, o mundo não se reduz ao meu gosto (sendo que isso talvez explique o atual estado da humanidade): há discos que eu não consigo ouvir sem absoluta irritação ou sem cair no tédio mas que encontraram falanges, falanginhas e falangetas de apoio que não se contam pelos dedos da mão. A humildade obriga-nos a reconhecer mérito até aos objetos com que implicamos. Assim sendo, aqui seguem cinco discos importantes da primeira metade do ano, mesmo que soem a 1940 ou nos deem vontade de partir a casa ao pontapé.

“Rough and Rowdy Ways”

Bob Dylan

Completamente desfasado dos tempos, imerso nos seus heróis musicais e nos géneros com que cresceu, assombrado pela morte que não tarda, Rough and Rowdy Ways, o mais recente tomo da obra de Dylan, é inqualificável: as canções, quando não são assustadoras, encantam e no entanto não consigo imaginar nenhum jantar com menores de 70 anos em que alguém ponha a tocar isto; e se há momentos em que Dylan parece raiar o pastiche há sempre algo de tortuoso nesse exercício, porque Dylan distorce os géneros que pilha e injeta-lhes a sombra da morte a cada passo. Se isto for o adeus será, como sempre com Dylan, um adeus que demoraremos muito tempo a escrutinar e tentar perceber.

“Fetch the Bolt Cutters”

Fiona Apple

Honestamente? Não consigo. Nunca consegui: cada vez que lhe ouço a voz sinto vontade de magoar coelhinhos fofinhos. Não que Fiona Apple tenha uma má voz (tem uma grande voz), é simplesmente uma questão de sensibilidade – e cada guinchinho dela amofina-me a delicadeza. Já dei por mim a pensar que Fiona é uma Dave Mathews Band com delírio de histrionismo, já dei por mim a pensar que se podia substituir cada letra dela por «eu, eu, eu, eu, eu», que ia dar ao mesmo, mas acabei por concluir que o problema deve ser meu: ela sabe compor, as canções dão voltas inesperadas, é imaginativa nos arranjos e é fácil de ver que tem um imenso talento (até porque ela está sempre a exibi-lo), pelo que seria errado não destacar o seu regresso.

“Circles”

Mac Miller

Mac Miller nunca parou – desde 2010, quando lançou a mixtape K.I.D.S., a sua música esteve em constante mutação, como se ele andasse à procura de algo que não sabia o que era. O que é mais bonito é que nesse trajeto ele foi aprendendo o mais possível sobre o passado (o jazz, o funk, a soul) e incorporando esses sons numa música que nunca deixou de ser rebelde e liricamente brilhante. Infelizmente, Miller nunca conseguiu parar de se drogar e morreu de uma sobredose em 2018. Circles era o disco em que estava a trabalhar aquando da sua morte – e as saudades que vamos ter dele, o Cobain desta geração.

“Græ”

Moses Sumney

Depois de Aromanticism, o disco de estreia, o ter tornado uma estrela do dia para a noite, Moses Sumney podia ter-se limitado a explorar a fórmula, exibindo a sua belíssima voz soul. Mas resolveu que o segundo disco, græ, seria segundo e terceiro (ou seja: existe em græ I e um græ II) e bem diferente da estreia. græ Part II é ligeiramente mais calmo e menos desvairado que Part I, mais bonito, por assim dizer (como é facilmente comprovável em “Bystanders”, que começa só com a voz e torna-se numa balada atmosférica com synths e corda e coros); entre as duas partes Moses Sumney deixou de ser um baladeiro clássico para pertencer ao mesmo universo de gente esquisita como Arca ou Angel Olsen ou da violoncelista Kelsey Lu, com quem encontro notórias semelhanças.

“The Loves of Your Life”

Hamilton Leithauser

É definitivo: Hamilton Leithauser deixou de viver nesta época e barricou-se num mundo feito de doo-wop, Gershwin, Rodgers and Hart, Hank Williams – isto é, aquele imenso canyon que é a canção clássica americana. The Loves of Your Life percorre esse imenso espectro sem nunca se preocupar a soar a 2020 – aqui não há polarização política, pandemias, wokeness, apenas melodias extraordinárias que hão-de unir um qualquer casal que vai conhecer-se ao balcão de um honky-tonk. Reaccionário e belíssimo, vai ser o disco esquecido do ano.