Índice
Índice
Uma pequena operação para ascender ao estrelato
Quando a Igreja Católica interditou que as mulheres cantassem nas igrejas e nos teatros, tinha por intuito a defesa do pudor, da modéstia e do que entendia ser o lugar da mulher na sociedade, mas, inadvertidamente, criou um sério problema à prática musical: as vozes agudas só podiam ser asseguradas por rapazinhos (ou, mais raramente, por falsetistas); e acontece que as leis da vida ditam que os rapazinhos crescem e a partir da puberdade as suas vozes angelicais dão lugar a uns grasnidos grosseiros, antes de migrarem de vez para o registo grave. Houve quem descobrisse que a remoção dos testículos na idade apropriada – oito a dez anos – permitia, com alguns “danos colaterais”, que a voz se mantivesse angelical ao longo da adolescência e da idade adulta e que a caixa pulmonar de um homem associada à laringe de uma criança permitia feitos vocais que não estavam ao alcance de nenhuma outra criatura.
Claro que o proprietário da voz angelical e dos testículos era demasiado novo para poder decidir, em consciência, da manutenção da primeira a custo da perda dos segundos, pelo que a decisão recaía sobre os pais. Se estes fossem pobres, não haveria lugar para grande hesitação: num prato da balança estava a mesma vida miserável de sempre, no outro um filho que, no lisonjeiro quadro pintado pelo professor de música do petiz, estava destinado à fama e à fortuna – omitindo que nem sempre a operação produzia os resultados desejados, que uma bonita voz aos oito anos e treino intensivo não garantiam uma bonita voz aos 18 anos e que uma bonita voz nem sempre assegurava uma carreira generosamente remunerada.
Mas mesmo que o miúdo não estivesse destinado ao estrelato, a castração e a admissão num conservatório ou num coro de igreja representavam um alívio do fardo dos pais: era menos um filho para alimentar, vestir e calçar – e educar, já que o treino como cantor nessas instituições vinha acompanhado de rudimentos de instrução, variáveis segundo as circunstâncias. É significativo que a maioria dos castrati proviessem das regiões mais pobres do Sul de Itália, em particular da Apúlia (o tacão da “bota” italiana).
Este tipo de atitude em relação à castração é, claro está, uma generalização, já que também houve casos como o de Caffarelli e Luigi Marchesi, que insistiram em fazer-se castrar para poder seguir a carreira que almejavam.
Da igreja para o teatro
O Vaticano não aprovava oficialmente a castração, mas era um dos seus principais beneficiários e o coro da Capela Sistina foi um dos seus primeiros e mais assíduos empregadores. Foi também o último, uma vez que aí cantaram castrati até ao início do século XX, embora a castração fosse proibida em Itália desde 1870 e, em 1878, o papa Leão XIII tivesse interditado a contratação de novos castrati pelo Vaticano. Pertencem a um castrato desse coro, Alessandro Moreschi (1858-1922), os únicos registos conhecidos desse tipo de voz, realizados entre 1902 e 1904. Pela mesma altura – Novembro de 1903 – o papa Pio X assestou mais um golpe nesta tradição secular, ao decretar que as vozes agudas passassem a ser asseguradas “por rapazes, em conformidade com as mais antigas tradições da Igreja”.
Ainda assim, Moreschi, que começara carreira aos 15 anos como solista no coro da basílica de S. João Latrão, em Roma, continuou a ser membro da Cappella Giulia, na basílica de S. Pedro, até 1913.
Os registos de Moreschi não dão uma imagem minimamente aproximada do que seria a voz dos castrati idolatrados pelo público da ópera setecentista: não só a qualidade de som é péssima como Moreschi era um cantor sofrível e, quando as gravações foram realizadas, a sua voz estava já em franco declínio. Além do mais, Moreschi nunca fora sujeito ao treino intensivo em acrobacias vocais a que eram sujeitos os castrati que seguiam carreira operática.
[“Crucifixus” da Petite Messe Solennelle de Rossini, por Alessandro Moreschi, em 1902]
Na verdade, a quebra da qualidade do cantores nas igrejas começara muito antes: em meados do século XVII, o público da ópera começou a ficar fascinado com as vozes dos castrati e os empresários de ópera começaram a aliciar os melhores cantores com remunerações com que as igrejas não podiam competir. A febre pelos castrati foi subindo na primeira metade do século XVIII e as remunerações pagas pela ópera também, de forma que, na década de 1770, Charles Burney, que viajou intensivamente pela Europa a fim de obter material para a sua pioneira e ambiciosa História da Música, afirmava que “todos os músicos nas igrejas [de Itália] são o refugo dos teatros de ópera e é muito raro encontrar nelas uma voz aceitável”.
Burney talvez exagerasse, pois apenas uma pequena fracção dos castrati conseguia integrar o número restrito de cantores que se apresentava nos teatros de ópera e menos ainda conseguiam manter-se entre essa elite durante muito tempo, já que os gostos do público eram volúveis, a ópera era um ramo de negócio sempre à beira da ruína financeira e as tournées europeias eram extenuantes e perigosas, já que as redes de transportes eram relativamente incipientes. Assim, muitos castrati acharam prudente manter a ligação a um coro de igreja, mesmo que se ausentassem, por vezes por longos períodos, para actuar na ópera. Outros tentavam regressar aos coros quando a fortuna nos palcos os abandonava ou quando a voz já não lhes permitia as acrobacias requeridas na ópera.
O lugar das mulheres
Apesar da sua extraordinária popularidade, os castrati não monopolizaram os palcos dos teatros: é verdade que a ópera barroca não costumava atribuir papéis importantes às vozes de tenor e baixo, mas no registo agudo os castrati tinham a competição das sopranos, mezzo-sopranos e contraltos, pois a interdição da Santa Sé relativa à participação de mulheres em espectáculos musicais apenas tinha efeito prático nos Estados Pontifícios e nos países mais devotamente católicos, como Espanha e Portugal.
No caso português, a interdição de mulheres em palco manteve-se até muito tarde, o que permitiu que os castrati mantivessem o domínio absoluto dos palcos até ao final do século XVIII, quando no resto da Europa a sua voga entrava já no ocaso. Luísa Todi, a cantora portuguesa de maior projecção internacional de todos os tempos, foi aclamada nos mais prestigiados teatros da Europa (e viu-se envolvida numa acesa rivalidade com Luigi Marchesi, um dos últimos castrati de grande popularidade), mas quando regressou a Portugal, em 1793, necessitou de uma autorização especial para actuar em público.
No Real Teatro de São Carlos viu-se pela primeira vez uma mulher em palco a 28 de Julho de 1799, contracenando com Crescentini (1762-1846), outro dos derradeiros castrati de relevo, o que causou alguma agitação. Porém, em Novembro desse mesmo ano, a interdição da presença de mulheres foi finalmente revogada pelo príncipe regente D. João.
Em França, cuja ópera seguiu uma linha evolutiva independente da italiana e não recorria a castrati, as vozes agudas eram domínio feminino exclusivo, enquanto no resto da Europa (salvo Estados Pontifícios, Espanha e Portugal, como referido) os palcos eram partilhados por mulheres e castrati. Mesmo em Roma, a interdição só se aplicava a espectáculos públicos, pelo que as récitas privadas nos palácios de cardeais e aristocratas recorriam por vezes a cantoras.
Um palco cheio de equívocos sexuais
O que pode parecer mais desconcertante aos olhos e ouvidos de hoje é que a distribuição de mulheres e castrati pelos diversos papéis de uma ópera não correspondia a critérios “realistas”. As convenções da opera seria – cujos enredos assentavam na mitologia greco-romana, em episódios históricos da Antiguidade Clássica e da Idade Média ou em romances de cavalaria – impunham que os heróis masculinos – como Júlio César ou Alexandre – tivessem vozes agudas, podendo ser assumidos, indiferentemente, por um castrato ou por uma mezzo-soprano ou contralto.
Também os papéis femininos tanto podiam ser entregues a mulheres como a um castrato (de preferência jovem e bem-parecido). A incongruência podia ir ao ponto de um papel masculino secundário – um general ou um príncipe – ser concebido para voz de soprano, enquanto a sua apaixonada – invariavelmente uma princesa – era composta para voz de contralto, mais grave. Aos tenores e baixos estava quase sempre confiado o papel de vilão ou de pai (quase sempre um rei idoso) ou ainda de braço direito/confidente do herói.
Quando a opera seria começou a regressar aos palcos em meados do século XX, os papéis que dantes eram dos castrati foram atribuídos a mezzo-sopranos e contraltos ou foram transpostos para o registo de tenor. Porém, na década de 80 os contratenores começaram a ganhar espaço e foram progressivamente tomando conta dos papéis de heróis masculinos.
Quando Gérard Corbiau decidiu rodar um filme (supostamente) biográfico sobre Farinelli, o mais célebre dos castrati, e precisou de recriar a voz do cantor (descrita nos relatos da época como prodigiosa), usou uma solução de compromisso: fundiu digitalmente as vozes da soprano Ewa Malas-Godlewska e do contratenor Derek Lee Ragin.
[Trailer de Farinelli (1994), de Gérard Corbiau]
Quando em 2002 René Jacobs, um antigo contratenor que se converteu num brilhante maestro de música antiga, concebeu Arias for Farinelli, que foi pioneiro na vaga de discos “conceptuais” dedicados a grandes castrati, recorreu a Vivica Genaux, uma mezzo-soprano originária de Fairbanks, no Alaska, que era então pouco conhecida e se tornou entretanto numa estrela de primeira grandeza do canto barroco.
[Ária “Qual guerrieroin campo armato”, de Idaspe (1739), ópera de RiccardoBroschi, irmão de Farinelli, por VivicaGenaux, Akademiefür Alte MusikBerlin & RenéJacobs (Harmonia Mundi)]
Também o maestro Alan Curtis, o mais empenhado advogado das óperas de Handel, com extensa discografia na Virgin e Archiv, tem vindo a confiar os papéis de castrati preferencialmente a vozes femininas. No extremo oposto, a primeira gravação mundial de “Catone in Utica”, de Leonardo Vinci (c.1696-1730, sem parentesco com o pintor renascentista), dirigida por Riccardo Minasi em 2014 para a Decca, conta com um elenco exclusivamente masculino, e a mesma opção foi tomada por Diego Fasolis para o Artaserse, do mesmo compositor, que gravou em 2011 para a Virgin.
As discussões sobre se são as mezzo-sopranos, as contraltos ou os contratenores que se aproximam mais da mítica sonoridade dos castrati é vã e está condenada a ser inconclusiva: por um lado, porque as vozes de castrato assumiram variadas formas, por outro porque as descrições que nos chegaram não permitem reconstituí-las. O que importa é que hoje estamos magnificamente servidos de mezzo-sopranos, contraltos e contratenores que cantam as árias de ópera barroca com uma agilidade e expressividade que nada deixam a desejar.
[“Anch’il mar par che sommerga”, ária de Idaspe na ópera Bajazet (1735), de Antonio Vivaldi, originalmente destinado ao castrato soprano Giovanni Manzoli. Por Cecilia Bartoli, Il Giardino Armonico & Giovanni Antonini]
Música feita por medida
Na ópera barroca, mais relevante do que a coincidência entre o sexo do intérprete e o sexo da personagem, era o acerto entre as capacidades vocais do intérprete e as árias que lhe eram confiadas. Os compositores compunham as diferentes partes tendo em mente intérpretes concretos, cujas virtudes e limitações conheciam – para mais, durante os ensaios, podiam aferir da adequação da partitura e fazer ajustes onde entendessem necessário, ou onde o intérprete, se tivesse estatuto para tal, exigisse.
Quando, no final de 1722, a soprano Francesca Cuzzoni, que deslumbrara Itália, chegou a Londres, para desempenhar o papel de Teofane, filha do imperador bizantino, em Ottone, de Handel, entendeu, durante os ensaios, que a sua primeira ária, “Falsa imagine”, não convinha à sua voz e pediu que o compositor compusesse uma ária nova. Handel, que era um homem corpulento e irascível, respondeu-lhe: “Madame, bem sei que vós sois um verdadeiro demónio, mas informo-vos de que sou Belzebu, chefe de todos os demónios”. E tomando a cantora pela cintura, ergueu-a no ar e fez menção de a atirar pela janela. Cuzzoni conformou-se em cantar a ária e acabou por ser muito aplaudida.
O cuidado em ajustar as árias aos cantores levava a que, quando a ópera era reposta com outro elenco, o compositor se desse ao trabalho de rever as árias ou até de substituir algumas delas por outras mais adequadas aos novos intérpretes. Alguns cantores tinham inclusive uma mão-cheia de árias favoritas – as arie di baule – que punham em evidência os seus particulares dotes vocais e com as quais tinham ganho fama, que tratavam de inserir em qualquer ópera que cantassem. Os compositores opunham-se a tal prática, mas o público, que, em geral, estava marimbando-se para a coerência dramática da ópera e queria era ouvir os seus ídolos cantar os seus greatest hits, entrava em delírio.
Birras, amuos e tumultos
O interesse do público estava sobretudo focado nas acrobacias vocais das vozes agudas, pelo que eram os castrati e as cantoras que obtinham os contratos mais vantajosos: as estrelas ganhavam mais do que toda a orquestra e que o próprio compositor, por muito prestigiado que este fosse, e eram essas remunerações principescas que tornavam o negócio da ópera uma actividade financeiramente arriscada.
Em Londres, na década de 1720, a Royal Academy of Music, dirigida por Handel, conseguiu reunir três super-estrelas: as sopranos Faustina Bordoni e Francesca Cuzzoni e o castrato Senesino. A concentração de estrelas fez sensação mas a companhia acabaria por falir. Handel, que nutria forte paixão pela ópera (comporia cerca de 40), não desistiu e fundou a Second Academy, que, na década de 1730, entrou em feroz competição com a Opera of the Nobility. A primeira assegurou os serviços do castrato Carestini (depois substituído por Caffarelli) e a segunda contratou os castrati Farinelli e Senesino. Os vencimentos destes elencos “galácticos” acabaram por levar ambas as companhias à bancarrota.
É tentador ver neste estrelato e nestas remunerações milionárias um paralelo com o que se passa hoje com as estrelas do pop-rock e do futebol. O paralelo tem ainda outra faceta: a idolatria de que eram alvo e o facto de, tendo origem humilde, se verem catapultados para o convívio com reis, aristocratas e cardeais – a conjugação destes factores costumava dar a volta à cabeça dos cantores, desencadeando manifestações de vaidade e arrogância e levando frequentemente a atritos com maestros, compositores e colegas. As picardias entre cantores pretexto para a criação de facções rivais entre o público, que não só ovacionavam entusiasticamente todas as intervenções do seu ídolo como apupavam e gracejavam quando cantava o seu rival.
Quando o elenco de uma ópera tinha duas cantoras de estatuto idêntico, o compositor era obrigado a distribuir com rigorosa igualdade o número, a duração e a dificuldade das árias, de forma que nenhum das prime done se sentisse menosprezada. Embora já tivessem partilhado o palco em Itália, a coexistência de Francesca Cuzzoni e Faustina Bordoni na Royal Academy of Music foi tornando-se cada vez mais difícil, com a tensão a ser acicatada pelas respectivas claques, que perturbaram as récitas de Admeto, de Handel, em Janeiro de 1727.
As coisas foram ainda mais longe a 6 de Junho de 1727, numa récita de Astianatte, de Giovanni Battista Bononcini, e nem a presença da princesa Carolina entre o público dissuadiu as claques de criar um tumulto inaudito, que levou à suspensão da representação e de toda a temporada de ópera. Correu na imprensa a notícia de que Cuzzoni e Bordoni se teriam insultado e puxado pelas perucas uma da outra, mas investigações recentes permitiram apurar que as desordens foram sobretudo entre as claques e que a imagem das duas divas engalfinhadas só terá ocorrido nas textos satíricos publicados pela imprensa londrina, que não perdia uma oportunidade para ridicularizar a opera seria, as suas estrelas caprichosas, os libretos pretensiosos e o espalhafato da maquinaria cénica
Quatro primeiras damas
Em 2015, a orquestra barroca Armonia Atenea, de George Petrou, tinha lançado The 5 Countertenors (Decca), cujo título, embora parodie “Os três tenores”, nada tem a ver com esse projecto que reuniu Pavarotti, Domingo e Carreras a cantar greatest hits da ópera e da cançoneta sentimental para as massas (a estreia, nas Termas de Caracala, em Roma, destinou-se a providenciar verniz cultural à final do Campeonato do Mundo de Futebol de 1990) e que obteve reconhecimento planetário e pingues lucros mas que é de nula relevância artística.
Petrou e os contratenores Max Emanuel Cenčić, Yuriy Mynenko, Valer Sabadus, Xavier Sabata e Vince Yi propunham-se recordar ao mundo a assombrosa exuberância e variedade da música composta para os castrati da ópera barroca e pré-clássica, recorrendo a árias compostas por Ferdinando Bertoni, Johann Christian Bach, Baldassare Galuppi, Christoph Willibald Gluck, George Frideric Handel, Johann Adolf Hasse, Niccolò Jommelli, Josef Mysliveček e Nicola Porpora.
[Apresentação e excertos das gravações de The 5 countertenors, pela Armonia Atenea]
Petrou e a sua Armonia Atenea propõem agora algo de similar, mas, em contraste com o CD anterior, estritamente masculino, Baroque divas (Decca) recorre a um quarteto de notáveis cantoras de música barroca da actualidade, três mezzo-sopranos – Romina Basso, Vivica Genaux e Mary-Ellen Nesi – e uma contralto – Sonia Prina –, para dar a ouvir árias compostas por Giovanni Battista Bononcini, Antonio Caldara, Christoph Willibald Gluck, Johann Adolf Hasse, Giovanni Porta/Giuseppe Sellitto, Francesco Maria Veracini, Leonardo Vinci e Antonio Vivaldi para os maiores virtuosos do seu tempo.
Entre essas estrelas estão os castrati Nicola Grimaldi (1673-1732), mais conhecido pelo nome artístico de Nicolini, Giovanni Battista Minelli (1689-1762), Giovanni Ossi (activo em 1716-34) e Carlo Broschi (1705-1782), que ficou na história com o nome de Farinelli.
Caffarelli (1710-83), um dos poucos castrati que rivalizou em fama com Farinelli, está representado por “Ti parli nel seno speranza ed amore”, uma ária “em segunda mão”, já que Giovanni Porta a destinou originalmente a Farinelli, na sua ópera Farnace (1731), mas acabou por ser reutilizada, em forma profundamente revista, por Giuseppe Sellitto para um Siface (1734) composto a várias mãos (as óperas colectivas e o pasticcio – uma ópera que reaproveita trechos de óperas pré-existentes – eram práticas correntes no barroco e davam resposta ao insaciável apetite do público por novas produções operáticas).
A maioria das árias de Baroque divas foram originalmente destinadas a castrati e a única grande “diva barroca” em destaque no programa do CD é Faustina Bordoni, que está representada com “Spera che questo cor”, de Astianatte (1727), de Giovanni Battista Bononcini, a ópera em que a rivalidade Bordoni/Cuzzoni atingiu as vias de facto. Bordoni é agora reencarnada por Mary-Ellen Nesi.
[“Spera che questo cor”, por Mary-Ellen Nesi, Armonia Atenea & George Petrou]
Outra das raras árias incluídas em Baroque divas que se destinou originalmente a uma cantora interpretando um papel feminino é “Daranno all’ira mia” (cantada no CD por Romina Basso), que provém de Euristeo (1724), de Antonio Caldara, uma ópera composta para corte imperial de Viena e que teve a particularidade de ter sido concebida para um elenco vocal de membros da família imperial e da nobreza, dirigidos a partir do cravo pelo imperador Carlos VI.
Como é usual nestes florilégios de árias de ópera barrocas, a maioria dos compositores amostrados em Baroque divas são desconhecidos do público não-especializado de hoje. É também o caso de Francesco Maria Veracini, que abre o CD com “Amor, dover, rispetto”, de Adriano in Siria (1735), que foi concebida para que Farinelli exibisse a sua fenomenal agilidade vocal. Vivica Genaux passa a prova com distinção, mostrando que, desde o seu surpreendente Arias for Farinelli, com René Jacobs, em 2002, subiu alguns degraus no domínio do virtuosismo pirotécnico farinelliano.
[“Amor, dover, rispetto”, de Vinci, por Vivica Genaux, Europa Galante & Fabio Biondi, num concerto ao vivo]
Do napolitano Leonardo Vinci (1690-1730), hoje também esquecido, o CD inclui “Ti calpesto, o crudo amore”, da ópera Astianatte (1725), uma ária enérgica, abrilhantado pela sonoridade faiscante das trompas. A carreira de Vinci como compositor durou apenas 11 anos (entre 1719 e 1730) durante os quais compôs 35 óperas (parte das quais são óperas bufas em dialecto napolitano) e Charles Burney gabou-lhe a forma como colocou a voz em relevo, desemaranhando-a de floreados e laboriosos procedimentos composicionais.
[“Ti calpesto, o crudo amore”, de Vinci, por Sonia Prina, Armonia Atenea & George Petrou]
Antonio Vivaldi (1678-1741) ganhou fama no século XX pela copiosa produção de concertos (quase quatro centenas) e só mais recentemente se revelou como não menos prolífico compositor de óperas: o próprio reclamava ser autor de 90, das quais chegaram aos nossos dias 40 (20 sob forma incompleta). Desta riquíssima produção, o CD elegeu “Vedrò con mio diletto”, da ópera Giustino (1724), uma ária de atmosfera velada, cantada com sumptuosa lentidão por Romina Basso.
[“Vedrò con mio diletto”, de Vivaldi, por Romina Basso, Armonia Atenea & George Petrou]
O compositor mais representado em Baroque divas é Johann Adolph Hasse (1699-1783), que foi um dos mais afamados, bem pagos e prolíficos (mais de 60 óperas!) do seu tempo mas que passou por um longo período na sombra até à recente recuperação da ópera barroca. Hasse foi amigo chegado de Metastasio, o libretista n.º1 da opera seria, e casou-se em 1730 com Faustina Bordoni, para cuja voz compôs numerosos papéis.
Hasse representa bem o carácter cosmopolita da opera seria setecentista: nasceu em Hamburgo, obteve, na qualidade de tenor, um posto na corte de Brunswick, onde compôs a sua primeira ópera e, aos vinte e poucos anos, rumou para Itália, como Handel, com a intenção de aperfeiçoar a sua técnica de composição, tendo estudado em Nápoles com o renomado Porpora. E como Handel (ver link Handel em Itália), assimilou tão rápida e completamente a linguagem italiana, que em pouco tempo estava a disputar a primazia aos compositores italianos em Nápoles, uma das capitais europeias da ópera.
Foi para esta cidade que compôs Tigrane (1729), de onde foi extraída para o CD a ária “Solca il mar e nel peligro”, aqui cantada pela contralto Sonia Prina. “Solca il mar e nel peligro” é uma “ária de tempestade”, embora a acção decorra em terra firme e bem seca – o enredo envolve a sucessão no trono da Arménia – mas não há aqui contradição: as ondas alterosas e a ventania que quase faz soçobrar o navio que são evocadas neste tipo de ária são uma metáfora da agitação psicológica da personagem e das emoções contraditórias que a assolam.
Em 1730, Hasse foi nomeado Kapellmeister da magnificente corte de Dresden, onde ficou, intermitentemente, até 1763, com numerosas e prolongadas escapadelas para dar a ouvir as suas óperas em Itália. Em 1734, passou brevemente por Londres, onde o seu antigo mestre Porpora, que entrara ao serviço da Opera of the Nobility, preparou um pasticcio do Artaserse que Hasse estreara em Veneza em 1730, enxertando-lhe trechos de outros compositores (nomeadamente de Riccardo Broschi, irmão de Farinelli). Este Artaserse de 1734, com Farinelli e Senesino, nos papéis de Arbace e Artabano, respectivamente, fez sensação em Londres.
A selecção do CD contempla a ária “Pallido il sole”, proveniente do pasticcio londrino de 1734 e destinada à personagem de Artabano, cantada por Senesino e não por Nicola Grimaldi, como se escreve nas notas do livrete (até porque este já há muito regressara a Itália, tendo falecido em Nápoles, em 1731, nos ensaios de Salustia, a primeira ópera de um rapaz de 21 anos, Giovanni Battista Pergolesi, que cruzaria como um meteoro o firmamento operático barroco). “Pallido il sole” é interpretada no CD pela contralto Sonia Prina, cuja voz escura assenta na perfeição à atmosfera sombria e inquietante da ária.
[“Palido il sole”, por Sonia Prina, Armonia Atenea & George Petrou]
Esta ária de Senesino seria depois celebrizada por Farinelli, que em 1737 se retirou dos palcos, por ter sido contratado pela corte espanhola – Elisabetta Farnese, a mulher de Filipe V, convencera-se de que só a voz prodigiosa de Farinelli seria capaz de curar o rei da sua profunda depressão. Conta-se que, todos os serões, durante anos a fio, Farinelli terá cantado para Filipe V as mesmas três ou quatro árias, duas das quais eram do Artaserse de Hasse: “Per questo dolce amplesso” e “Pallido il sole”.
O prestígio de que Hasse disfrutava não impedia que o seu vencimento fosse muito inferior ao da esposa: a composição de uma ópera podia render a Hasse 50 ducados, mas Bordoni cobrou 3300 ducados por uma temporada em Nápoles. Em 1751, Bordoni retirou-se dos palcos com Ciro riconosciuto e Hasse teve de encontrar outra musa. A primeira, Regina Mingotti (1722-1808), que se estreou em Adriano in Siria (1752), foi de curta duração, pois entrou em conflito com Hasse e Bordoni, sendo substituída por Teresa Albuzzi-Todeschini como prima dona do teatro da corte de Dresden. Mingotti seria, provavelmente, muita senhora do seu nariz e independente, já que depois de passar brevemente pela corte de Madrid, onde Farinelli dirigia as representações de ópera, foi parar a Londres, onde assumiria a direcção do King’s Theatre – a primeira vez na história em que uma mulher desempenhou este tipo de cargo.
A ópera seguinte de Hasse para Dresden, Solimano (1753), está representada pela ária “Fra quest’ombre”, cuja orquestração já prenuncia as óperas “da reforma” de Gluck. A ária, destinada à personagem Selim, interpretada na estreia pelo castrato Angelo Maria Monticelli, é confiada no CD a Vivica Genaux.
O que não é possível restituir em CD, nem nos teatros de ópera de hoje, é a sumptuosidade da encenação de Solimano, que, tirando partido da temática oriental (a acção decorre em Babilónia e envolve questões dinásticas otomanas), colocou em palco dezenas de animais vivos, incluindo camelos e elefantes.
No programa do CD, Christoph Willibald Gluck (1714-87) representa a transição para um novo estilo de ópera, sem os excessos de ornamentação e o virtuosismo exuberante típicos da primeira metade do século XVIII. A ária “Le belle immagini d’un dolce amore”, cantada no CD por Vivica Genaux, provém de Paride ed Elena (1770), que constitui, com Orfeo ed Euridice (1762) e Alceste (1767), a trilogia de óperas “de reforma”. A textura da orquestra ganha densidade e dá papel mais relevante aos sopros, ao mesmo tempo que a linha vocal se torna mais linear.
“Jupiter, lance ta foudre!” vem da ópera seguinte de Gluck, que regista um desvio ainda mais acentuado ao padrão da opera seria barroca: Iphigénie en Aulide (1774), a primeira ópera que Gluck compôs para Paris, mescla elementos das óperas francesa e italiana. “Jupiter, lance ta foudre!”, uma ária da personagem Clytemnestre, é uma das três árias do CD que se destinou originalmente a uma personagem feminina e a uma voz feminina.
O texto do livrete, é omisso sobre as circunstâncias que rodearam a composição, estreia e recepção das árias, óperas e compositores seleccionados e fornece escassos elementos sobre os cantores que as estrearam. É uma debilidade difícil de compreender num disco em que música, intérpretes e engenharia de som estão acima de quaisquer reparos.
Outros discos dedicados a super-estrelas do canto barroco
Na última década, sopranos, mezzo-sopranos e contratenores de topo têm vindo a gravar discos com selecções de árias de ópera barroca, onde convivem compositores consagrados e nomes entretanto caídos no mais completo olvido, cuja música não é escutada há três séculos. Entre essa abundante oferta, recomendam-se em seguida discos cujo programa foi articulado em torno de uma grande estrela do canto barroco (ou de um par de rivais).