Lisa Alberts tem um funeral esta segunda-feira. No sábado foi à morgue pedir a confirmação da morte de Benjamim, nascido em 1986. Tem com ela a pulseira branca que confirma o óbito a 7 de novembro de 2024, quando Maputo viveu um protesto sem precedentes. A família ainda não tinha qualquer informação oficial e foi esta moçambicana de ascendência sueca que a conseguiu. Benjamim morreu quando estava a passar perto de uma esquadra amiga. “Ele era amigo dos agentes, até lhe davam comida”, mas “foi baleado por outros agentes”, conta ao Observador Lisa Albert, ao enviar uma foto com a identificação do corpo.
No domingo, os amigos, os familiares e os vizinhos choravam a morte de um homem que não estava na “Manifestação contra o assassinato do povo moçambicano”, no final dos “Sete dias de libertação de Moçambique do colono preto”. Era para isso que o fim de semana servia: para cuidar dos feridos, começar o luto pelos que morreram, descansar dos dias de greve e protestos.
Maputo viveu cenário de guerra mas não sabe o que vai ser o dia seguinte
Foi isso que Venâncio Mondlane disse na última comunicação que fez a partir do exílio: estes dois dias seriam para recuperar forças, não para protestar na rua. O candidato independente às eleições presidenciais — que reivindica a vitória nas urnas enquanto a Comissão Nacional de Eleições a dá ao candidato da Frelimo, Daniel Chapo —, agendou para esta segunda-feira o anúncio da quarta fase da luta, que será a “mais dolorosa” e que vai “afetar a economia nacional”.
Uma “quase normalidade” voltou às ruas de Maputo, neste domingo, dia da cidade, descreve ao Observador uma residente. “Está tudo tranquilo, há muito trânsito, o comércio está aberto, embora as ruas ainda não estejam todas limpas do que sobrou da manifestação de quinta-feira”, continua uma outra moradora. “Estamos todos em suspenso à espera de amanhã [segunda-feira]”, sublinha.
O anúncio de VM7 (alcunha de Mondlane) pode chegar esta segunda mas as manifestações “só devem recomeçar lá para quarta-feira” até porque “as pessoas também precisam de trabalhar”, diz uma fonte ligada aos protestos.
“Hoje [domingo] o país está calmo, mas não volta à normalidade enquanto a verdade eleitoral não for reposta”, começa por avisar um nome bem conhecido dos moçambicanos, principalmente dos jovens e da polícia: Quitéria Guirengane. Para logo a seguir lamentar: “Hoje foi o dia da caça às bruxas”.
Quando as pessoas “estão a cuidar dos feridos, a reabastecer-se, as esquadras estão numa atividade intensa, a varrer bairro a bairro, em todo o país, a identificar e a deter jovens que estiveram (ou que acha que estiveram) na manifestação”, denuncia ao Observador a ativista política e social.
“Temos relatos que em Mucuba foram buscar jovens de 17 e 18 anos às camas do hospital e levaram-nos para celas, mesmo contra a vontade dos médicos”, continua a também líder do Observatório das Mulheres de Moçambique.
Quitéria Guirengane, que é membro do Movimento de Defesa da Liberdade de Associação (plataforma que junta organizações não governamentais) e dirigente do Nova Democracia, adianta que “esta caça às bruxas está a acontecer em Cabo Delgado, Tete, Inhambane, Gurua, Inharrime, entre outros locais”, pelo que se percebe “que não é um caso isolado mas generalizado” de quem está à procura de “culpados para um problema criado pelo governo e a Frelimo”.
Fundadora do Geração#18 de Março, organização que dá apoio a vítimas de manifestações, Quitéria tem recebido na sua “central de denúncias” muitos pedidos de ajuda e sabe que o número de mortos nestes protestos estão “muito acima dos 16 oficiais” — Mondlane ontem apontava para 100 na CNN Portugal — e que há “bem mais do que uma centena de feridos”.
Quitéria adianta que “muitos jovens estão no hospital com 6, 8, 10 balas no corpo, em partes sensíveis que os médicos não arriscam tirar”, prova da forte repressão policial. “Não é uma bala no corpo, são várias, como é que isso é uma polícia preventiva?”, pergunta, antes de traçar dois cenários para os dias que se seguem. Nos dois, há um denominador comum: violência.
Os jovens perderam o medo e não têm nada a perder
O primeiro decorre da narrativa do Presidente Filipe Nyusi e do governo. “Está a lançar mais combustível para a contestação, avisa. “Está a tentar dividir para reinar, a convidar grupos sociais e vários atores políticos para o palácio, a tentar isolar o Venâncio Mondlane. Convidou até o pastor da igreja que ele frequenta”. Quitéria não acredita que seja para promover o diálogo, pois ao mesmo tempo estão “a deter pessoas — a conta já vai em 2.300 —, a dizer que é um movimento de vândalos e marginais, a dizer que nada vai mudar, que ganharam doa a quem doer”.
Por outro lado, continua a ativista, “as pessoas que lhe são próximas estão sempre no Facebook a escrever que estão a controlar os passos do Mondlane, que o vão apanhar, que ele está na Nigéria e que o vão caçar”. Ora, considera Quitéria, isto ainda está a “revoltar mais os jovens”. Nos bairros, sublinha, “as pessoas perderam filhos mas não perderam a força, pelo contrário, estão a dizer não se pode desistir, não podem vencer o povo com armas”.
Assim, se o governo mantém este discurso, “vai haver uma escalada, os jovens perderam o medo e não têm nada a perder”, frisa.
O segundo cenário vai desembocar no mesmo. “Nós vamos continuar a protestar e o governo não gosta de manifestações pacíficas ou não. E acham que nos vão reprimir pela força mas nós percebemos onde está a fragilidade do regime: na economia”. Por isso começaram a dizer que “pobre não vai ter que comer”, que vem a “fome”, que “os protestos fizeram perder milhões”, que “a economia vai colapsar”, mas “é tudo uma falácia”. Quitéria vai buscar o exemplo da pandemia da Covid-19 para tentar desmontar o argumento do governo: “Ficámos três meses em casa e a economia não colapsou”.
Agora, não é só “o pobre que vai sofrer”, como “não é só o pobre que está nas ruas”. Nas avenidas onde vive a elite, o protesto já chegou, com o bater de panelas, por exemplo. “A classe alta já está em pânico com medo de que os bens alimentares faltem, mas nós sabemos que não há liberdade barata, que não há luta sem sacrifício”, frisa Quitéria.
O perigo das milícias de bairro, da guerrilha urbana
Ou seja, a ativista está a prever um aumento da repressão policial. Ora, como sempre disse aos polícias em outras marchas, a “violência gera violência”. E se o governo “desacredita Mondlane como interlocutor válido, se ele deixar de dirigir o protesto, então vamos ter milícias de bairro, ninguém vai controlar este ódio que as pessoas têm a quem os está a matar de diversas formas, e vai ser a luta individual de cada cidadão”.
Quitéria dá um exemplo: “No bairro Luís Cabral, elementos da UIR [Unidade de Intervenção Rápida] foram a uma barraca [bar informal de Moçambique] e as pessoas que lá estavam mandaram-nos sair e com um recado: ‘Digam ao vosso chefe que nós sabemos quem ele é’. Se se perde o controlo de todo o processo de contestação, vamos ter guerrilha urbana, vamos ter mais linchamentos e queimadas [já houve casos de comunidades que queimaram casas e família de polícias que mataram manifestantes]”.
A revolta dos jovens está em crescendo, alerta. “Dizem-me: ‘Quitéria, estamos fartos de ser abusados, de apanhar. Queremos olho por olho, dente por dente, também queremos bater em quem nos bate“.
A Frelimo “perdeu o contacto com o povo, com esta geração que não passou pela guerra civil, que não compreende a linguagem das armas, que tem um grande anseio por ser livre e que invoca o passado de luta anti-colonial — aprenderam que apesar dos massacres, os combatentes continuaram a lutar, por isso agora também não vão parar”, assegura.
Mas desta vez, com uma certeza e uma esperança: “O mundo inteiro está a ver o que o governo de Moçambique sempre fez e como a nossa polícia é uma força de violência”.
A Frelimo pensa “que os jovens não pensam”, diz Quitéria apontando o dedo ao que diz ser uma “campanha de desinformação” promovida por forças do partido histórico. “Inventaram que o Mondlane é um agente da Jihad. Os jovens riem. Que eu sou paga pela CIA. Os jovens riem. Ninguém acredita e isso só acicata mais a indignação”.
O governo tem de mudar, insiste, “dentro da Frelimo há vozes a dizerem isso”, e pode caminhar no sentido da “reconciliação, repondo a verdade — números não se negoceiam, contam-se — , admitindo que falharam, pedindo desculpa, prontos para recomeçar, reconstruir, virar a página”.
A tempestade perfeita que vai alterar os cálculas da Frelimo
Por isso, enquanto isso não acontecer, os protestos na rua vão continuar e a polícia vai continuar a reprimir. Até quando? Até uma das partes se cansar? Paula Cristina Roque acredita que as forças de segurança e de defesa não aguentam mais cinco dias de protestos na rua. Do outro lado, “as pessoas perceberam que têm uma voz, que têm um poder, e não vão abdicar disso facilmente”, salienta ao Observador a investigadora, especialista em assuntos africanos. Daí que antevê “uma intensificação da contestação”.
Considera que “a pressão diplomática vai crescer”, que “há pressões internas dentro da própria Frelimo que dizer que isto não é sustentável”, pelo que “toda esta tensão vai provocar uma tempestade perfeita que vai alterar os cálculos” do partido que está no poder há 49 anos. “Não podem continuar a reprimir violentamente moçambicanos aos olhos de todo o mundo. As atenções do mundo estão centradas em Moçambique”.
Paulo Cristina Roque lembra que nem a União Europeia nem os Estados Unidos da América “reconheceram a vitória da Frelimo e de Daniel Chapo”. E que a contestação em Moçambique foi mais longe do que a ocorrida em Angola, quando, em 2022, a UNITA e outros partidos da oposição não aceitaram os resultados eleitorais.
“Em Angola o reconhecimento internacional não foi automático mas havia uma predisposição de Portugal, EUA e UE para aceitarem a vitória do MPLA. E vendo a moderação da UNITA, para evitar um banho de sangue, mantiveram o status quo e os interesses económicos e não quiseram pressionar”, explica a investigadora.
Quem mata também morre
Porém, Moçambique é diferente. “A Frelimo está enfraquecida e internamente fraturada, houve uma repressão violenta, a população está unida nesta guerra, sociedade civil e igreja católica vão na mesma direção”, destaca.
Aliás, a SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) convocou uma reunião de emergência para dia 16 e a Conferência dos Bispos Católicos da África Austral (SACBC, na sigla em inglês e que é composta pelos bispos da África do Sul, Botswana e Eswatini) também se manifestou num carta de apoio aos bispos moçambicanos.
“Será difícil continuar a reprimir a vontade do povo que quer ser livre”, referem os bispos católicos, ao mesmo tempo que alertam: “Se o governo em exercício continuar por este caminho, será impossível governar o país e a vida tornar-se-á mais miserável.”
E este domingo o Papa incluiu o país nas sua mensagem Angelus. “As notícias que chegam de Moçambique são preocupantes. Convido todos ao diálogo, à tolerância e à busca incansável por soluções justas. Rezemos por toda a população moçambicana, para que a situação atual não faça perder a fé no caminho da democracia, da justiça e da paz“, disse Francisco, no Vaticano.
Quitéria Guirengane não vai desistir “até à revolução triunfar”. Habituada a confrontos com a polícia, pois há vários anos que organiza manifestações e marchas, aprendeu “a viver confortável com uma ideia: quem mata também morre”.