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Lee Miller na sua faceta de modelo, vestida de Chanel e fotografada para a Vogue

Conde Nast via Getty Images

Lee Miller na sua faceta de modelo, vestida de Chanel e fotografada para a Vogue

Conde Nast via Getty Images

Dos palcos da arte às trincheiras da guerra: a vida que Lee Miller esteve sempre a reinventar

Entre Nova Iorque, Paris e Londres, Lee Miller foi modelo, artista, repórter de guerra e, por fim, cozinheira. A sua vida deu um filme que se estreia esta 5ª, "Lee", e continua a inspirar.

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Kate Winslet diz que “a atenção ao detalhe foi extraordinária”, que houve “um trabalho muito específico” e até a fotógrafa Annie Leibowitz quis estar presente para registar o momento. A atriz refere-se a uma cena do filme “Lee”, no qual é protagonista e, pela primeira vez produtora, na qual se recria uma fotografia em que Lee Miller está a tomar banho na banheira de Hitler. Naquela altura Miller era repórter de guerra, antes tinha sido modelo e artista, depois viria a ser esposa, mãe e cozinheira.

A fotografia foi tirada a 30 de abril de 1945 no número 16 Prinzregentenplatz, o apartamento de Hitler em Munique, que o exército norte-americano tinha requisitado. Lee Miller posou e David E. Sherman, também fotojornalista, captou a imagem. O banho que Lee Miller decidiu tomar naquela banheira foi encenado, ou não estivesse o local cheio de significado à mercê de dois fotógrafos que andavam há sabe-se lá quanto tempo a registar as atrocidades da guerra. As botas sujas de Lee deixaram o tapete branco manchado com a terra de Dachau e o retrato de propaganda de Hitler foi colocado na borda da banheira, na qual Lee, despida, lava o ombro. A imagem está carregada de simbolismo. Naquela noite, em Berlim, Hitler e Eva Braun acabaram com as próprias vidas.

“Naquela manhã, Lee e o camarada jornalista David E. Scherman tinham testemunhado e registado a devastação em Dachau, pouco depois de o campo de concentração ter sido libertado”, lê-se na legenda da imagem publicada há alguns meses pelos Arquivos Lee Miller na sua conta de Instagram. A sua vida, preenchida com momentos de extrema luz e profundas sombras, continua a despertar curiosidade e interesse. O filme “Lee” chega esta quinta-feira aos cinemas portugueses e traça um retrato de uma mulher icónica do século XX que continua a ser descoberta.

E tudo começou na moda

Elizabeth Miller nasceu a 23 de abril de 1907, em Poughkeepsie, Nova Iorque, e tinha um irmão mais velho. O pai, Theodore Miller, era um engenheiro de ascendência alemã e um fotógrafo amador que adorava fotografar a filha. A mãe, Florence, tinha ascendência escocesa e irlandesa. Os contrastes na vida de Lee começaram cedo, quando foi violada aos sete anos por um conhecido da família e apanhou uma doença sexualmente transmissível que a fez sofrer durante anos.

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Aos 18 anos a jovem Lee já tinha no currículo académico várias escolas e expulsões. Foi enviada para estudar no estrangeiro e partiu no SS Minnekahda para atravessar o Atlântico. O plano era passar um mês em Paris e depois seguir para uma escola em Nice, mas não foi cumprido. Miller viajava acompanhada por duas senhoras para tomar conta dela. Uma delas seria uma condessa polaca sem dinheiro contratada pelo pai de Miller, segundo conta Vogue, e terão ficado instaladas num hotel que era na verdade um bordel. Lee disse à revista que as suas guardiãs demoraram cinco dias a aperceber-se da situação, mas ela adorou.

“Eu estava ou pendurada numa janela a ver os clientes a chegar e a ir embora ou a ver os sapatos a serem trocados no corredor com extraordinária frequência”, lembrou a própria. “Embora eu parecesse um anjo, era realmente um demónio.” As senhoras voltaram para os Estados Unidos e a jovem foi trabalhar para um teatro em Montmartre e entrou na École Madgyes pour la Technique du Théâtre. No ano seguinte, em 1926, recusava-se a voltar a casa e o pai foi buscá-la. Já instalada em Nova Iorque continuou a estudar dança na Art Students League.

Certo dia, em 1927, a jovem Lee Miller ia na rua em Nova Iorque, quando se pôs sem querer no caminho de um carro. Por sorte, um cavalheiro bem vestido que por ali passava puxou-a, para fora de perigo e para dentro do mundo da moda. Era o Sr. Condé Nast, o fundador do grupo de media com o seu nome, e viria depois a sugerir que Miller trabalhasse para a Vogue. A editora da época, Edna Woolman Chase pediu ao artista francês Georges Lepape que desenhasse Miller. O resultado foi um plano aproximado da cara com um chapéu cloche roxo e um colar de pérolas, e como fundo o que parece ser uma cidade escura com janelas iluminadas. O desenho foi capa da revista na edição de 15 de março de 1927. Continuou a trabalhar como modelo e foi fotografada inúmeras vezes para a publicação. A experiência dos movimentos viria a revelar-se útil quando trabalhou como modelo e interpretava história de moda para os fotógrafos.

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Lee Miller na sua primeira capa da Vogue, numa ilustração em 1927. A modelo numa fotografia de moda

Conde Nast via Getty Images

E em Paris fez-se fotógrafa

Em 1928 Lee Miller regressou a Paris e foi à procura de Man Ray para se tornar sua aprendiz. O fotógrafo, famoso pelo trabalho como surrealista, disse que nunca aceitava aprendizes, mas alguma coisa o encantou porque acabou por aceitar ensiná-la. Viveram juntos durante três anos e ela viria a ser também amante, musa e colaboradora. Desenvolveram juntos o processo de “solarização”, uma forma de inverter luzes em pretos, que terá acontecido por acaso. Enquanto Lee estava a trabalhar algo a fez dar um salto e acender a luz numa altura crucial, embora a tenha apagado de imediato o efeito fez-se notar deixando as zonas escuras claras e também o oposto.

Fez autorretratos e um deles, de seu de nome “Lee Miller por Lee Miller”, foi publicado na Vogue Paris. Também assinou retratos (alguns de nus que estão incluídos no movimento surrealista), fotografava cenas na rua, e concebeu desenhos satíricos. Além de fotografar, Lee continuou a posar para fotógrafos como o próprio Man Ray, George Hoyningen-Huene e para o assistente deste na época e futuro grande nome da fotografia, Horst P. Horst. Totalmente envolvida na cena surrealista, também entrou no filme de Jean Cocteau “The Blood of a Poet” (1930).

Quando em abril de 1932 Man Ray teve a sua primeira exposição individual em Nova Iorque, na galeria de arte de Julien Levy, contava com imagens de Lee, que não passaram despercebidas à revista Time. Num artigo sobre a exposição pode ler-se que ela era “a modelo favorita” de Man Ray, que era conhecida como Lee-Girl pelos seus íntimos, “amplamente celebrada como a possuidora do umbigo mais bonito de Paris” e que também era fotógrafa. Uns meses mais tarde no mesmo ano Miller teve a sua própria exposição naquela galeria.

Foi também em 1932 que a artista regressou a Nova Iorque onde abriu o seu próprio estúdio, no qual se orgulhava de ter instalado ela própria o sistema elétrico. Ainda se faziam sentir os efeitos da grande depressão de 1929, mas Lee conseguiu trabalho a fazer retratos de celebridades, a fotografar moda e publicidade e viria a aparecer novamente numa produção fotográfica da Vogue norte-americana, mas desta vez como modelo e fotógrafa. Foi-lhe também pedido que fotografasse o elenco da ópera avant-garde “Four Saints in Three Acts”, com música de Virgil Thompson e libreto de Gertrude Stein.

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Lee Miller durante a sua fase de modelo de moda, em fotografias tirada no apartamento de Condé Nast

Conde Nast via Getty Images

Em julho de 1934 casou com Aziz Eloui Bey e a lua de mel foi nas Cataratas do Niagara. O marido era de uma família proeminente no Cairo, conheceram-se numa festa e ela mudou-se com ele para a capital egípcia. Miller dedicou-se a registar o país através da lente da sua máquina fotográfica e com o olhar de quem viveu e participou no surrealismo. “Estávamos sempre fora em expedições no deserto, à procura de novos oásis, aldeias perdidas, rastos de civilizações desconhecidas. Claro que nunca encontrámos nada”, contou à Vogue.

Regressou a Paris em 1937 onde conheceu o pintor surrealista britânico Roland Penrose numa festa. Dois anos depois, 1939, seria um ano de grandes mudanças. Por um lado, a guerra foi declarada a 1 de setembro e, por seu lado, Lee deixou o marido e mudou-se para Londres onde se ofereceu para trabalhar como fotógrafa para a Vogue. Ao início não a levaram a sério, mas viriam a contratá-la no ano seguinte.

Uma mulher a relatar a guerra

Em 1940 lançou o livro “Grim Glory: Pictures of Britain Under Fire” e começou a contribuir com intensidade para a Vogue britânica, aceitando diferentes trabalhos que lhe davam. Em dezembro de 1942 estava acreditada pelo exército dos Estados Unidos da América como correspondente de guerra para as Publicações Condé Nast. Lee acreditava ser a primeira mulher naquela função e como não havia nenhuma correspondente na Europa, diz que criou a função para si e apenas pediu que a tratassem “como um dos rapazes”.

Depois de ter estado no Blitz em Londres e nos combates na cidadela de Saint Malo, esteve também na libertação de Paris e dos campos de Buchenwald e Dachau. “Estava com as primeiras tropas norte-americanas na libertação de Paris e a primeira coisa que fiz foi ir ver o meu velho amigo Picasso. Picasso dizia sempre que fui o primeiro soldado americano que ele viu”, relatou Miller citada na Vogue. Tinham-se conhecido na capital francesa na década de 1930 e, ainda os conflitos vinham longe, ele pintou-a e ela fotografou-o. Miller foi parar a Saint Malo, na Bretanha, numa mudança de roteiro de última hora e achava que seria um local calmo, mas acabou por ir fotografar um combate aceso. De Dachau viria a destruir inúmeros negativos para que mais ninguém visse o que ela tinha tido que ver, mas deixou o suficiente para que não houvesse dúvidas sobre o que lá se passou.

Segundo o filho de Miller, quando alguém perguntava à sua mãe sobre o seu tempo como correspondente de guerra para a Vogue ela desvalorizava. “Oh, não fiz grande coisa, não teve importância e foi tudo destruído”, respondia e preferia falar de artistas como Picasso ou Man Ray.

Além das imagens, Miller pôs também por escrito aquilo que viu. A Vogue publicou uma reportagem num hospital de campanha em França, relatou o que se passava no Luxemburgo e em Bruxelas e viria a publicar também o perfil da estrela de rádio norte-americana Ed Murrow e outro da escritora francesa Colette.

Depois da guerra, a culinária

Lee Miller casou-se com Roland Penrose em 1947 e, apesar de lhe terem dito que não poderia ter filhos, Anthony nasceu naquele mesmo ano. Lee sofreu de depressão pós-parto e teve um grave problema com o álcool que o filho diz que viria a superar. Dois anos depois, o casal comprou Farley Farm House, em Sussex. A quinta foi o refúgio de Lee depois da guerra, onde lidou com o stress pós-traumático e recuperou do que tinha visto e vivido.

Farleys Farmhouse passou a ser a casa da família Penrose, mas não foi idílico como se possa hoje pensar. “Durante os primeiros seis a oito anos não havia aquecimento. A água era de um poço e parecia sopa de tomate por causa do ferro”, conta Anthony Penrosen na BBC. Foi Lee quem se dedicou a renovar a construção do século XVIII. Na década de 1950, a destemida artista arrumou as câmaras fotográficas, dedicou-se à culinária e até estudou na Cordon Bleu. “Livros de culinária são a minha leitura preferida antes de dormir”, disse em entrevista à Vogue e tinha mesmo uma coleção com dezenas. “Houve racionamento de comida até 1954, por isso os cinco primeiros anos em Farleys foram passados a cozinhar como louca e a transportar uma série de coisas para Londres para distribuir pelos amigos”. Havia vegetais, porcos e leite e o filho conta que a mãe “usava todas as suas capacidades e engenho com o objetivo de alimentar as pessoas”, uma atitude que só depois percebeu ser uma reação a toda a fome e desespero que tinha visto na guerra.

Farleys Farmhouse foi paragem de vários artistas que se juntavam à família, como por exemplo Picasso, que fez um desenho depois pendurado sobre a mesa onde também ele esteve a cortar vegetais. O último trabalho de Lee para a Vogue é o reflexo disto mesmo. Em julho de 1953 foi publicado o seu último trabalho fotográfico para este título. O ensaio fotográfico de nome “Working Guests” resultou de pôr os seus ilustres convidados e o marido a fazer tarefas domésticas na quinta e terminava com uma imagem de Lee a dormir a sesta.

Em 1966 Roland Penrose foi condecorado Commander of the British Empire e o casal passou a ser Sir e Lady Penrose. Lee viria a morrer em 1977, vítima de cancro do pulmão. O filho e a nora descobriram cerca de 60 mil negativos e impressões no sótão e decidiram começar a fazer um arquivo, a documentar a sua vida e a promover o trabalho como fotógrafa de moda e de guerra. A casa de Sussex tornou-se num arquivo da obra de Lee e do marido e tem também uma morada online, no site Lee Miller Archives. Em 1985 Antony Penrose, também ele fotógrafo, publicou o livro “The Lives of Lee Miller”. “A Lee que descobri era muito diferente daquela com que me tinha debatido durante tantos anos”, escreveu o filho na biografia da mãe. “Fico com o profundo arrependimento de não a ter conhecido melhor”, cita o Guardian. O livro viria a inspirar o filme “Lee”, que chega aos cinemas a 26 de setembro. O autor disse à Vogue que Kate Winslet era a sua atriz de sonho para interpretar a mãe.

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