Chegou ao colégio, então no imponente Palacete Boaventura, em plena Avenida da Boavista, na Foz do Porto, a 15 de outubro de 1945. Tinha 10 anos e nunca tinha estado muito tempo longe da mãe, do pai e da casa onde moravam, em Ovar. Mas a 4.ª classe estava feita e os liceus mais próximos ficavam no Porto. Só havia três opções: ou a mãe se mudava para lá para viver com ela; ou fazia mais de 40 quilómetros todos os dias para um lado e para o outro; ou ficava interna. Ganhou a terceira opção. “Não posso dizer que tenha sido um trauma, mas é porque na altura não havia traumas nem psicólogos”, recorda, entre risos, 73 anos depois, Maria Helena Ribeiro de Faria, ex-aluna do Colégio de Nossa Senhora do Rosário.
Naquele dia (e nos que se seguiram) não lhe faltou vontade, mas não chorou uma única vez. Não podia. O pai, dono em sociedade com os irmãos de duas fábricas na zona de Ovar, uma de moagem de arroz, outra de transformação de cortiça, avisou-a mesmo antes de chegarem: “Tu não choras, porque se chorares, nunca mais venho cá ver-te”.
Fez-se forte, arranjou amigas e aguentou a austeridade do colégio, gerido desde 1872 pelo Instituto das Religiosas do Sagrado Coração de Maria. “Era frio, não havia aquecimento, estávamos proibidas de usar casacos ou camisolas por cima dos uniformes e água quente só existia para os banhos. Tínhamos de tomar duche uma vez por semana, nas caves, mas fugíamos como o diabo da cruz. Era uma Irmã que controlava a água cá de fora, e nós berrávamos porque estava fria, berrávamos porque estava quente…”
Durante cinco anos, até completar o 5.º ano, atual 9.º, foi ali que Maria Helena viveu, com direito a uma visita dos pais por período e idas a casa nas férias — Carnaval excluído. “Tínhamos de ficar aqui, não só para haver assim uma brincadeira muito controlada, mas sobretudo para ‘compensarmos os pecados do mundo’. Ficávamos na igreja a manhã toda e depois um bocadinho durante a tarde, só depois é que podíamos brincar. Quando chegavam as férias e nos vestíamos todas para sair era uma animação. Mas depois custava muito vir outra vez, era tão triste quando começava a chegar o dia de voltar ao colégio…”
Durante o ano, os dias sucediam-se com organização e rigidez: antes de chegarem às aulas às 9h00, as alunas já tinham ido à missa, tomado o pequeno-almoço e arrumado os dormitórios; o estudo prolongava-se até às 19h00, hora de rezar o terço; e o silêncio era obrigatório assim que recolhiam para dormir e às refeições, pelo menos até todas terem acabado de comer a sopa. Os uniformes eram racionados e os laços coloridos a enfeitar os cabelos permitidos, mas de acordo com um código de cores para cada dia da semana.
“Era um sacrifício brutal, andávamos perfeitamente na linha, todas em filinha e bem direitas”, diz Maria Helena, 83 anos. Que, ainda assim, concede: em pleno rescaldo da Segunda Guerra Mundial e ao contrário do que acontecia no resto do país, nunca faltaram alimentos nem bens de primeira necessidade no colégio, frequentado na altura pelas filhas das famílias mais privilegiadas da zona do Porto e de Trás-os-Montes.
“Na altura havia falta de tudo mas as Irmãs, em termos alimentares, foram fantásticas, nós nunca percebemos de facto que houvesse tantas dificuldades, porque éramos muito bem alimentadas, nunca faltou nada”, garante. “Só havia uma coisa que não suportava: açorda. Era feita de pão escuro e sabia mal. Uma vez, depois de comer aquilo tudo, com um grande sacrifício, a engolir e engolir, disse que não gostava, e a Madre que estava a tomar conta de nós ouviu. Chamou a Irmã que estava a servir e disse-lhe: ‘Venha aqui dar mais a esta menina que ela gosta muito de açorda’. Julguei que morria, acho que foi a única vez que chorei no colégio.”
Avaliação às sextas-feiras, engraxamento de sapatos aos sábados
Sentada numa sala do atual Colégio de Nossa Senhora do Rosário, também na Avenida da Boavista mas uns quantos metros abaixo, Maria Helena recorda o dia de 1949 em que todas as alunas saíram do Palacete Boaventura, atrás de D. António Ferreira Gomes, histórico bispo do Porto que mais tarde seria forçado a abandonar o país por Salazar, para simbolicamente assentarem a primeira pedra do futuro colégio.
O edifício só viria a ser inaugurado em 1958 e desde então já sofreu inúmeras alterações, acrescentos e melhoramentos, mas a gestão continua a cargo da congregação religiosa fundada em 1849 no sul de França. Será das poucas coisas imutáveis desde os tempos em que foi aluna. O colégio que descreve não é o mesmo que há pelo menos quatro anos consecutivos alcança o primeiro lugar do ranking dos exames das escolas secundárias do país.
No seu tempo, o Rosário tinha cerca de 300 alunas, todas raparigas; atualmente a fasquia dos 1500 estudantes já foi ultrapassada. Quando andou no colégio, a maior parte das alunas entre o 1.º e o 5.º ano ficava em regime de internato; agora as únicas pessoas que vivem no edifício são as Irmãs do instituto, numa ala à parte. Não existia piscina, nem campo de futebol coberto, nem pavilhão de música, mas ainda havia, numa casa próxima, a escola para as crianças pobres da vizinhança. O corpo docente até já contava com algumas professoras leigas, mas a maior parte das aulas era assegurada por freiras de hábitos pretos completos, como mandavam as leis da Igreja pré Concílio Vaticano II; hoje, de entre as dezenas de professores do colégio, só uma é religiosa.
“É uma das facetas do Instituto: abertura e adaptação aos sinais dos tempos. Quem lida com educação tem de ter esta perspicácia de educar em relação ao futuro e não ao passado. Em cada época fomos ganhando projetos novos, mantendo sempre a nossa cultura de rigor, dedicação, trabalho e qualidade e um investimento forte na formação cristã”, explica a Irmã Teresa Nogueira, há quatro anos diretora do Colégio.
Se hoje o Rosário tem vários projetos de solidariedade e de envolvimento dos alunos com o meio que os rodeia — todos os dias da semana vários estudantes do secundário dão apoio escolar às crianças do bairro vizinho de Ramalde e Campinas; outros tantos saem à noite em grupos de socorro e apoio aos sem-abrigo; e no final do ano seis finalistas são escolhidos para um mês de missão em Timor-Leste –, antigamente as alunas eram chamadas a fazer “a caridade”, conta Teresa Nogueira. “Há registos em revistas dos enxovais que as alunas preparavam para as crianças de famílias pobres que estavam por nascer. Também visitavam famílias pobres e faziam coisas por elas ou adquiriam alimentos.”
Tendo em conta os 146 anos do colégio, é provável que tais registos sejam posteriores a 1952, ano em que Maria Helena Ribeiro de Faria, depois de 5 anos de internato e dois como aluna externa, saiu finalmente do Rosário. “No meu tempo não havia este aspeto atual de solidariedade, a educação era muito centrada na pessoa e depois, na parte religiosa, no pecado e no aperfeiçoamento do nosso ser. Só depois do Vaticano II é que começou a aparecer outro sentido de formação religiosa”, garante.
Exemplos? Os sábados eram dias de engraxar os sapatos e de fazer as camas de lavado e às sextas-feiras havia sempre avaliação. Detalhe: em análise não estavam as competências das alunas no português, na matemática ou nas línguas estrangeiras, então lecionadas por religiosas estrangeiras, mas o comportamento, a delicadeza e a arrumação das alunas. “A delicadeza era não só aquelas coisas de levantar quando uma Irmã chegava ou ser bem-educada, mas sobretudo o respeito pelos outros, ser gentil com as pessoas, ser afável, não propriamente só por delicadeza mas sobretudo por uma questão interior. De resto era o asseio, o andar com os uniformes muito bem arranjados e trazer as meias esticadas, que era uma regra muito complicada de cumprir, eram daquelas meias até ao joelho, estavam sempre a cair.”
“Vi o meu colégio, o da minha filha, e o da minha neta. Mudou muito”
Há pelo menos seis anos que todas as turmas da escola começam os dias com a oração do Pai Nosso, conta Joana Nunes, aluna do colégio entre 1980 e 1994 e desde 2000 parte da equipa de professores de Inglês, disciplina ensinada a partir dos 3 anos. Ainda assim, basta um passeio breve pelos corredores labirínticos do Rosário para perceber que a “delicadeza” caiu em desuso: ainda que ultra educados à passagem da diretora, são muitos os alunos que, afogueados e com as fardas em desalinho, se perseguem escadas abaixo numa corrida em direção ao refeitório. “Vão com calma, que o almoço chega para todos”, vai sorrindo e repetindo em tom pausado Teresa Nogueira. Os do secundário, fáceis de distinguir pela estatura, o passo mais calmo e as roupas sem monograma (os uniformes só são obrigatórios até ao final do 2.º ciclo), serão os últimos a chegar ao 2.º piso para comer. Também eles se distinguem do tempo em que Maria Helena ali estudou — e não apenas por haver tantos rapazes como raparigas.
Da sua turma, e de todas as outras, foi das poucas que continuaram os estudos depois de concluído o 5.º ano. “Em 1940, a maior parte das alunas preparava-se para casar e para ficar em casa, não havia esta preocupação com a formação universitária das filhas. O meu pai era uma pessoa muito atual e achava que eu devia formar-me ou tirar um curso qualquer para ser independente. Dizia que o dinheiro hoje podia existir, mas amanhã podia não haver e eu ia ter de trabalhar. E que, por outro lado, eu podia até casar, ser muito feliz e não precisar, mas que também podia não ser feliz, e para me divorciar tinha de poder ser autónoma”, explica.
Depois de terminar o secundário, e apesar de não saber sequer o que era Direito ou que disciplinas ia ter de estudar, seguiu para o ensino superior — tudo à conta da aversão que tinha a internatos: “O meu pai disse-me que ou ia para a universidade ou para um colégio interno na Suíça, tirar um curso de secretariado. Assim que ouvi falar em colégio outra vez, decidi-me: ‘Sigo para a universidade!‘”.
Entrou em Coimbra em 1952. Mas, contra todas as suas expectativas, não se despediu do Rosário para sempre. Em 1970 ou 1971, já casada com um professor assistente da Faculdade de Direito e mãe de uma rapariga com dois anos, regressou ao colégio, para dar aulas de História.
Nessa altura, lembra, ainda havia alunas internas e o ensino continuava a não ser misto mas até 2003, ano em que se reformou, mudou tudo. Tanto que acabou por, na convulsão do pós-25 de Abril e dada a falta de professores nas escolas públicas do Porto, matricular a própria filha no colégio. Que, por seu turno, fez o mesmo quando foi mãe.
“Vi o meu colégio, o da minha filha, e o da minha neta. Mudou muito. Aliás, até quando entrei já tinha mudado. Para já, as Irmãs tinham largado os hábitos, o que parece que não mas faz diferença. Também já não havia a distinção entre as Irmãs, que eram pessoas modestas e vinham das aldeias para trabalhar, e as Madres, que ou tinham cursos superiores ou tinham um nível social e económico mais elevado. Em 1975 acabou o internato e entraram os primeiros rapazes para o ciclo. E depois o colégio abriu-se a outro tipo de educação, a parte religiosa deixou de ser o mais importante, embora ainda hoje seja muito importante, mas numa vertente mais virada para a parte social e para a ajuda ao próximo. E o ensino manteve-se sempre a um nível muito alto de exigência”, recapitula Maria Helena.
Do colégio das elites para a escola pública
Quando em 1980, com apenas 3 anos, Joana Nunes foi admitida, o Colégio do Rosário já era uma referência no ensino privado do Porto. Mas as instalações continuavam ainda a anos-luz daquelas que estão hoje à disposição dos alunos: onde agora existe a piscina e o campo de futebol, há mais de 30 anos estava a horta do senhor Antonino, onde as religiosas iam colher frutos e legumes para as refeições. Onde atualmente está o Pavilhão de Música, existia o ginásio onde as turmas tinham aulas de Educação Física e que servia também para se fazerem as festas de fim de ano. “Ao fundo havia um palco muito velho, de madeira. Subíamos, puxávamos umas cortinas, e estava feito o balneário, para trocarmos de roupa”, recorda a agora professora de Inglês, também ela filha de uma professora do colégio.
“No meu tempo havia muito mais Irmãs a dar aulas e noutras funções. Eram as figuras a que devíamos mais respeito e atenção. Recordo-me da Irmã Maria Francisca, que era a única que usava hábito, e tomava conta da papelaria. Tínhamos de entrar, dizer bom dia, pedir por favor e receber o que queríamos e o troco, sempre com a mão direita. Se nos enganássemos obrigava-nos a sair e a fazer tudo de novo. E também me lembro muito bem da Irmã Maria Albertina, que nos ensinava Camões a gritar das janelas para o mar“, conta. “Hoje só em momentos festivos é que uma ou outra Irmã vai às salas dar o seu testemunho. Talvez no meu tempo fosse mais nítido o facto de sermos um colégio católico.”
O que não se alterou, acredita, foi o ambiente fechado e protegido do colégio, pouco consonante com a realidade exterior. No tempo de Maria Helena e até antes — Sophia de Mello Breyner foi aluna nos anos 30 — só entravam no Rosário as filhas das famílias mais privilegiadas; e em 1980, como atualmente, a maior parte dos alunos continua a pertencer à elite do Porto. “Temos filhos de ministros, de deputados e de jogadores de futebol. O filho do Vítor Baía anda cá, os do Ricardo Costa também, as filhas do Fernando Couto e os filhos do João Pinto e da Marisa Cruz”, revela Joana Nunes. Que foi colega de turma de outro ilustre: André Villas-Boas, treinador de futebol que também corre em rallys, que recorda como um rapaz tímido, pouco brilhante nos estudos e com uma predileção pela supermodelo alemã Claudia Schiffer. “Tinha tudo forrado com fotografias dela.”
A agora professora percebeu as diferenças da forma mais crua quando, no 12.º ano, e porque não existia a disciplina de Alemão no colégio, teve de sair para um liceu público, o Garcia de Orta, a pouco mais de um quilómetro de distância. “Nunca tinha tido na turma alguém que não fosse filho de médicos ou doutores e de repente tinha colegas que vinham de autocarro de longe para a escola. No colégio morávamos todos na mesma zona, tínhamos os mesmos interesses, encontravámo-nos nos mesmos sítios aos fins de semana. No Garcia até dois rapazes metaleiros havia — e eu nunca tinha visto metaleiros! Foi um choque entrar na escola pública, mas não digo que tenha sido mau. As pessoas eram diferentes, tinham objetivos de vida diferentes e não tinham as mesmas facilidades do que eu, o que me obrigou a adaptar a minha forma de estar. Mas no final ficámos amigos”, conta Joana Nunes. “Aqui há um tipo de proteção e de educação mais cuidada, sei que continua a acontecer o mesmo e que os nossos alunos, quando têm contacto com o mundo exterior, também sofrem algum choque.”
O sistema de ensino, que permitiu ao Colégio do Rosário estacionar no lugar cimeiro do ranking dos exames das escolas secundárias, também é diferente, garante a diretora Teresa Nogueira. “Preparamos os nossos alunos para que sejam pessoas competentes mas bem formadas na sua vida futura. Para além de qualidade profissional, dotamo-los de qualidades humanas e éticas, para que possam colaborar com a sociedade e contribuir para mudar as estruturas sociais em que vierem a integrar-se.” A professora Joana Nunes assina por baixo e com conhecimento de causa: “No 11.º ano tive 20 a Português, de resto tirei 19’s e 18’s. Quando cheguei ao Garcia tive de trabalhar de outra forma, não estava a ver o meu esforço recompensado. Os professores eram muito agarrados aos resultados dos testes e à média aritmética; aqui também temos em consideração o progresso dos alunos, a maneira de ser, a parte humana…”.
Na próxima semana, depois de os resultados do ano letivo 2016/2017 serem conhecidos, os mais de 1500 alunos do Colégio de Nossa Senhora do Rosário deverão ser chamados a festejar a nova conquista. Desde 1871, ano em que a pedido da irlandesa Margaret Hennessey, proprietária do precursor do colégio, chegaram ao Porto as primeiras Irmãs do Sagrado Coração de Maria, o que não lhes tem faltado são razões para isso. Se bem que, garante Teresa Nogueira, a História do Instituto de origem francesa, em Portugal e no Mundo, se tenha feito essencialmente a partir dos momentos adversos: “Se está a ser difícil, então é que é para nós”.
Nos últimos 146 anos, o colégio sobreviveu aos movimentos anticlericais, à aversão dos portuenses a tudo o que vinha de França, e à proclamação da República e ao consequente ataque às ordens religiosas, que levou à fuga das Irmãs para o estrangeiro e a um interregno da atividade escolar entre 1910 e 1926. O primeiro lugar no ranking será comemorado com parcimónia: “Somos capazes de cantar os parabéns ou qualquer coisa do género, mas não mais do que isso. Para nós os grandes rankings são aquilo que esperamos dos nossos alunos nas suas vidas futuras”.