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Texto publicado inicialmente a 12 de novembro do ano passado e actualizado após ser conhecida a condenação de El Chapo, considerado culpado dos 10 crimes de que estava acusado
El Chapo estava a ficar paranoico antes do julgamento arrancar em Broklynn. Só via a luz do sol uma vez por dia, era obrigado a dormir com lâmpadas ligadas e sentia dores de cabeça, de ouvidos e de garganta por causa do ar condicionado a toda a hora. Emagreceu muito e revelava falhas de memória, segundo os advogados. Mas tudo isto soou a canção do bandido. O juiz responsável pelo caso não recuou um milímetro nas medidas de segurança e isolamento: apenas os juristas que o defendem o podiam visitar e a única exceção foi a visita de duas filhas menores. Estava trancado desde janeiro de 2017 numa cela solitária de 15 metros quadrados no 10.º andar do Metropolitan Correctional Center, em Lower Manhattan – uma ala conhecida como “pequena Guantánamo”, em alusão à base americana do Pacífico onde presumíveis terroristas estão detidos.
El Chapo, de 61 anos, aliás, Joaquín Archivaldo Guzmán Loera, tido como o maior líder mundial do narcotráfico, depois de décadas como senhor do Cartel de Sinaloa, dono de submarinos, barcos, aviões, ranchos e exércitos, responsável pela chegada aos EUA de duas toneladas de cocaína e 10 mil toneladas de canábis todos os meses. Quando começou a ser julgado em Nova Iorque no início de novembro do ano passado, apresentava-se como um pobre diabo. Eduardo Balarezo e Jeffrey Lichtman, os advogados, quiseram fazê-lo passar por mero operacional do cartel, e não líder todo-poderoso. Sublinharam a falta de tempo e de condições para prepararem a defesa, sugeriram até que El Chapo Guzmán era inimputável.
Mas como chegou a tal estatuto um dos homens mais ricos do mundo?
Recibimos una carta de los abogados de “EL Chapo” Guzmán, aseguran que lleva dos años sin poder dormir y detallaron las condiciones en las que vive en una cárcel de #NY pic.twitter.com/qpOgJXJXNS
— Ciro Gómez Leyva (@CiroGomezL) October 27, 2018
O maior criminoso do século XX
A imprensa mexicana anunciou o “julgamento do século”, calculando logo que durasse os quatro meses que durou e pudesse custar mais de 50 milhões de dólares, tal o aparato de segurança envolvido. Nos últimos tempos, sempre que o juiz Brian M. Cogan precisou de ouvir El Chapo durante a fase de instrução do processo, o caos instalou-se na ponte de Brooklyn, com o trânsito totalmente cortado para prevenir atentados, com elementos das forças armadas nas ruas e franco-atiradores nos telhados.
O maior criminoso do século XX, assim descrito pelo procurador Richard P. Donoghue, era acusado de liderar o Cartel de Sinaloa entre 1989 e 2014, de distribuição e venda de drogas ilegais nos EUA, de lavagem de dinheiro e de porte ilegal de armas. Arriscava a prisão perpétua, mas sempre disse que não se considera culpado. É voz corrente que ordenou ou participou diretamente na morte de 100 mil pessoas durante décadas. Neste particular, o procurador reuniu provas da ligação de El Chapo a pelo menos 33 homicídios. O juiz Cogan, que conduziu as audiências e o júri – constituído por pessoas cuja identidade não foi revelada, uma medida excepcional e polémica nos EUA, escreveu o New York Times, porque os júris anónimos podem pôr em causa a imparcialidade do julgamento — consideraram-no agora culpado de dez crimes.
Mas não era apenas El Chapo que estava em causa, eram sobretudo décadas de guerra das autoridades americanas e mexicanas contra o narcotráfico, como observava um jornalista da Vice News (no primeiro de oito episódios de um “podcast” dedicado ao caso El Chapo e distribuído pela plataforma Spotify). Já a edição mexicana da Blooomberg perguntava: quantos nomes de políticos, militares e polícias corruptos poderá El Chapo denunciar em tribunal?
El Chapo era o mestre do disfarce, pequeno e simpático, expressão de jogador de póquer e pose de menino, ilusionista que as autoridades mexicanas mal conseguiam apanhar, implacável rei da droga que por duas vezes conseguiu evadir-se de prisões de alta segurança.
O filho de María Consuelo
Archivaldo, como lhe chama a mãe, 1m72 de altura – e daí o apelido El Chapo, “o baixinho” –, é quase analfabeto, tem uma caligrafia tremida, mas é obviamente astuto. Nos anos 90 também lhe chamaram “El Rápido”. Nasceu a 5 de abril de 1957 – e também corre que foi a 25 de dezembro de 1954 – em La Tuna, uma aldeia perdida na Sierra Madre, estado de Sinaloa, zona noroeste do México. “Uma família muito pobre, a minha mãe fazia pão para nos sustentar e eu vendia laranjas, refrescos e doces e guardava o gado da minha avó”, contou em 2016 numa famosa entrevista à “Rolling Stone”.
Filho de María Consuelo Loera Pérez e Emilio Guzmán Bustillos, teve 10 irmãos: sete homens e três mulheres. Iniciou-se no pequeno tráfico aos 15 anos. “Não havia trabalho, a forma que tinha de comprar comida e sobreviver era cultivar e vender papoilas e marijuana.”
No início dos anos 80, chega ao narcotráfico pela mão do amigo Miguel Ángel Félix Gallardo, El Padrino, que hoje cumpre 37 anos de prisão e à época praticamente detinha o monopólio do negócio da droga no México. Guzmán começa por ser correio de droga, depois opera em grupos de crime organizado que sustentavam o Cartel de Guadalazara, as “células delitivas”, como se diz no México: Los Hechos, Los Negros, Los Lobos, e outros, meros braços armados do cartel. Héctor Palma Salazar é outro dos companheiros de estrada.
Com a detenção de El Padrino no fim da década de 80, Guzmán cria ele próprio o Cartel de Sinaloa e livra-se como pode de todos os antigos aliados ou rivais. Na história dele há muitas suposições misturadas com factos. As alianças que fez com traficantes da Colômbia permitiram-lhe uma ascensão sem precedentes. A rapidez e eficácia com que fazia transportar estupefacientes para os EUA tornaram-no de confiança: inovou nos métodos de expedição, com túneis subterrâneos que atravessavam fronteiras e latas de pimentos carregadas de estupefacientes.
Maio de 1993 marcou um ponto de viragem na vida de El Chapo, então alvo de tentativa de homicídio por parte de rivais do Cartel de Tijuana. Apanhado num tiroteio no Aeroporto Internacional de Guadalajara, conseguiu escapar-se, mas por motivos nunca esclarecidos quem ali morreu foi o arcebispo Jesús Posadas Ocampa, que se encontrava num carro junto à pista, assassinado juntamente com o motorista Pedro Pérez Hernández. De narcotraficante silencioso, cuja existência era então mal conhecida dos mexicanos, Guzmán passou a figura de destaque internacional, com retratos-robô a circularem na comunicação social. Acusaram-no da morte do líder religioso e ele tornou-se um fugitivo.
Primeiro foi para a Guatemala, mas em poucas semanas acabou detido pelas autoridades e extraditado para o México. Numa conferência de imprensa improvisada perguntaram-lhe se se dedicava ao tráfico de droga e ele respondeu que não. “Sou agricultor, cultivo milho e feijão.” Foi condenado a duas décadas de prisão, primeiro na cadeia de Altiplano, depois na de Puente Grande. Desta conseguiu evadir-se em 2001.
Uma das testemunhas de acusação no julgamento que agora se inicia deverá ser precisamente Dámaso López, El Licenciado, subdiretor da cadeia de Puente Grande à época em que El Chapo ali esteve. El Licenciado, braço direito de El Chapo no narcotráfico, terá tido um papel na fuga. Uns dizem que Guzmán escapou dentro de um carro de roupa da lavandaria, outros garantem que se vestiu de mulher, com peruca e saltos altos, e saiu da cadeia pelo próprio pé. Parece certo que subornava guardas prisionais e outros detidos. Reza a lenda que gastou cinco milhões de dólares só nesses esquemas. Biógrafos do criminoso garantem que prostitutas, cocaína e Viagra circulavam à vontade em Puente Grande.
El Chapo, estrela pop
No início dos anos 2000, já o cartel estava por toda a América Latina, Guatemala, Honduras, El Salvador, Costa Rica, Panamá, com pistas aéreas clandestinas utilizadas por pequenos aviões. A droga viajava de um lado para o outro sem qualquer impedimento.
Até há quatro décadas, existiriam no México apenas dois grandes grupos de narcotraficantes: Cartel de Guadalajara e Cartel do Golfo, com presença em 10 dos 31 estados federados. Em 2015, eram nove os grupos, todos com origem naqueles dois primeiros e presença em 25 estados, segundo a publicação “NarcoData”, do portal de notícias “Animal Político”.
“Nos últimos 40 anos, sob gestão de sete presidentes, os grupos de crime organizado não fizeram mais que multiplicar-se.” O narco é hoje a única realidade em muitas partes do México. Os carros, as mulheres, as casas, as roupas, a impunidade – gerações de crianças e adolescentes pobres crescem a querer exatamente o mesmo que os traficantes exibem. É também por isso que El Chapo é uma estrela pop, mote para cantigas e livros, ícone de pagelas, tatuagens, t-shirts e máscaras de carnaval. A plataforma Netflix dedicou-lhe uma série baseada em factos reais, com estreia marcada para 16 de novembro.
https://www.youtube.com/watch?v=VBLcYJ7C4F0
Com o tempo, a ambição desmedida de El Chapo fez do Cartel de Sinaloa um polvo que agarrou quase todo o território mexicano. “Nenhuma outra organização teve tantas operações em tantos estados e resistiu com tanta força aos embates do governo federal para a debilitar”, lê-se no “NarcoData”. “Foi a única organização mexicana que conseguiu participar com êxito no tráfico das quatro principais drogas: marijuana, cocaína, heroína e metanfetaminas”. Tornou-se uma multinacional, com operação direta nos EUA e no Canadá, laboratórios em África e na China, lucros calculados em 14 mil milhões de dólares.
Com a primeira fuga, em 2001, inicia-se o jogo do gato e do rato. El Chapo procura fortalecer o cartel com duas alianças, El Mayo e El Azul, enquanto as autoridades norte-americanas oferecem cinco milhões a quem denuncie o seu paradeiro. O filho Edgar é assassinado em 2008, mas a ele ninguém o apanha. Na imprensa mexicana diz-se que ninguém estava realmente à procura dele, que as instituições do estado não tinham capacidade ou interesse. Em agosto de 2011 nascem duas gémeas da relação com Emma Coronel (já terá casado por três vezes e será pai de 13 filhos). O departamento americano anti-droga, Drug Enforcement Administration, descreve-o então como o Osama Bin Laden do narcotráfico, para demonstrar o quanto vale a cabeça de El Chapo. Depois de várias tentativas, finalmente, a 22 de fevereiro de 2014, é encontrado e preso num “resort” em Mazatlán, no México, com a ajuda da DEA, que lhe controlava o sinal do telemóvel. O presidente Enrique Peña Nieto garante que ele não volta a escapar e não será extraditado para os EUA, duas afirmações que terá de engolir.
Poucos dias depois da captura, o canal televisivo Univisión consegue uma entrevista exclusiva com María Consuelo, a mãe octogenária que vive numa pobre casa de La Tuna, e quando lhe perguntam que mensagem quer transmitir ao filho, ela não hesita: “Que se entregue ao Senhor, antes que seja tarde, porque já experimentou o mundo e agora que procure Deus, para que saiba que só Deus o pode proteger e ajudar em todos os problemas.” Sentada numa cadeira de rodas, a idosa acrescenta: “Que Deus lhe perdoe.”
Um túnel de 1,5 km
Na cabeça do filho, começa a desenhar-se o túnel que o devolverá à liberdade. Em julho de 2015, foge pela segunda vez de Altiplano. Através de um túnel subterrâneo na casa de banho, com um quilómetro e meio de extensão, um metro e 70 de altura e 80 centímetros de largura, no qual havia um veículo motorizado sobre carris. Entre cumplicidades e subornos, ninguém viu nada, mesmo se as imagens de videovigilância mais tarde divulgadas mostravam os momentos anteriores à fuga e a passividade dos vigilantes. Mais uma vez, as instituições caíam em descrédito. “Uma afronta ao estado”, lamentou-se Peña Nieto.
Pela segunda vez em fuga, o rei da droga arranjou tempo para se encontrar em outubro de 2015 com Sean Penn e gravar uma entrevista para a “Rolling Stone”. O contacto foi feito pela atriz Kate del Castillo, admiradora de El Chapo e protagonista da novela de 2011 da Telemundo “La Reina del Sur” (inspirada no romance sobre narcotráfico “A Rainha do Sul”, do espanhol Arturo Pérez-Reverte).
No improvável encontro, criticado por jornalistas e autoridades, El Chapo disse que “as drogas destroem as pessoas”, mas, para ele, “não havia e não há outro caminho”. “No dia em que eu desapareça, o tráfico de droga não vai desaparecer”, argumentou. E será que se considera uma pessoa violenta? “Não, senhor. Nunca ando à procura de problemas.” O vídeo da entrevista a Sean Penn só seria divulgado meses mais tarde. Mais precisamente, dois dias depois de El Chapo ser novamente apanhado, a 8 de janeiro de 2016, em Sinaloa. O presidente mexicano rejubilou com a captura.
Misión cumplida: lo tenemos. Quiero informar a los mexicanos que Joaquín Guzmán Loera ha sido detenido.
— Enrique Peña Nieto (@EPN) January 8, 2016
A 19 de janeiro de 2017, Guzmán foi extraditado para os EUA e é por isso que o julgamento decorreu em Nova Iorque. Por um lado, o governo mexicano parecia não confiar na independência e autoridade do sistema de justiça, por outro, os americanos queriam fazer de Guzmán um troféu, segundo Keegan Hamilton, jornalista da Vice News. Isso pouco mais que simbólico. Segundo a DEA, o Cartel de Sinaloa continuou a expandir-se a nível internacional mesmo depois da detenção de El Chapo. Especialistas assinalam que se trata de uma organização horizontal, sem hierarquia vertical, preparada para sobreviver a qualquer decapitação. Os dois filhos dele, Iván e Jesús, em aliança com El Mayo, tornaram-se cabecilhas da organização. A nível interno, a ação do grupo parecia mais reduzida e o grau de violência também baixou, ainda que no estado de Sinaloa ainda sejam mortas cinco pessoas por dia, com a justiça a arquivar quase todas as investigações por alegada falta de provas.
Cártel de Sinaloa sin El Chapo: de tener presencia en 11 estados, ahora lo ubican en 7 y con menos células operando https://t.co/R5j2Tmbh36 pic.twitter.com/zIyNdQqBF1
— NarcoData (@NarcoData) June 30, 2017
Até ser detido, em 2016, e extraditado para os EUA, em 2017, Guzmán converteu-se no narcotraficante mais poderoso do mundo e uma ameaça extraordinária para a comunidade, porque protegeu os seus negócios multimilionários com um exército de sicários prontos para assassinar e torturar grupos rivais, autoridades e cidadãos”, resume o “NarcoData”.
Um salvador em tribunal
No estado de Sinaloa passou a herói romântico. Gostava de organizar festas, casamentos e batizados para os amigos – em que participavam prostitutas colombianas escolhidas por catálogo. A lenda confunde-se com a realidade. Pagou os estudos aos mais pobres e deu-lhes emprego e saúde, mandou construir igrejas, escolas e hospitais, pagou esgotos e estradas, foi o estado dentro do estado, assim comprando a cumplicidade e o silêncio de milhares de mexicanos. No “podcast” da Vice News, vendedores ambulantes recentemente entrevistados num mercado de Culiacán, capital de Sinaloa, glorificaram-no porque “ajudou os humildes e os doentes”, “fez aquilo que o governo não faz”. Mas o apoio popular de pouco lhe serve.
A acusação americana juntou vários inquéritos e apresenta mais de 300 mil páginas, de acordo com o “Guardian”, incluindo milhares de escutas telefónicas, fotografias, depoimentos, “e-mails” e mensagens que El Chapo enviava do seu BlackBerry. O procurador explicou em tribunal como é que Guzmán corrompeu funcionários públicos a nível local, nacional e internacional para que o negócio nunca deixasse de prosperar. Jesús Zambada Niebla, membro arrependido do Cartel de Sinaloa, foi uma das principais testemunhas. Os irmãos Pedro e Margarito Flores, em tempos líderes da célula de Chicago, aceitaram uma colaboração premiada e também falaram contra o antigo patrão. Por razões de segurança, alegou o tribunal, os nomes das testemunhas foram apagados dos documentos judiciais, algumas estiveram detidas sob vigilância apertada e outras usaram identidades falsas por temer que Guzmán, ou alguém por ele, os pudesse eliminar.