Lula da Silva preferiu ser prudente, atirou uma decisão para mais tarde e insistiu que ainda é cedo para anunciar qualquer candidatura, mas, entre analistas e dentro do próprio Partido dos Trabalhadores (PT), é quase uma certeza: livre de condenações e com a ficha limpa, o homem que liderou o Brasil entre 2003 e 2011 vai voltar a eleições para desafiar Jair Bolsonaro em 2022.
“Muito feliz” por ter visto as suas condenações anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), Lula da Silva regressou em força à vida política, afirmando que a “verdade prevaleceu”. E até parecia já em campanha: numa entrevista coletiva em São Paulo, atacou a gestão da pandemia do governo brasileiro, um primeiro passo para um embate com Bolsonaro e para o aumento da polarização política no Brasil.
“Lula e o Partido dos Trabalhadores [PT] regressam com força à disputa presidencial”, afirmou ao Observador, por WhatsApp, Cláudio Couto, cientista político e coordenador do Programa de Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas na Fundação Getúlio Vargas, referindo-se à decisão do juiz Edson Fachin, na última segunda-feira, que surgiu qual terramoto na vida política brasileira, abrindo a porta a que Lula seja o candidato a desafiar Bolsonaro no final do próximo ano.
“Sendo candidato novamente, Lula altera completamente as condições da disputa”, acrescenta.
Lula da Silva: “Fui vítima da maior mentira jurídica contada em 500 anos de história”
Na entrevista coletiva desta quarta-feira, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, após mais de uma hora e meia a discursar, questionado sobre se é candidato à presidência em 2022, Lula foi prudente e disse que a sua hipotética candidatura será anunciada “quando chegar o momento” e disse que tal só vai acontecer “bem para a frente”, não descartando uma frente de esquerda.
No entanto, apesar de não se ter comprometido (para já), o ex-presidente, de 75 anos, tem vindo a sinalizar que se sente “muito jovem” e esta quarta-feira insistiu que a palavra desistir não faz parte do seu dicionário. Para os analistas, é “inevitável” que Lula venha a ser candidato.
“A candidatura de Lula é inevitável, porque ele tem muito mais intenções de voto do que qualquer outro político de oposição a Bolsonaro. Não sei se é o único candidato capaz de derrotar Bolsonaro, mas é, certamente, o político com mais chances”, sublinhou ao Observador, por telefone, Sérgio Praça, cientista político do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas.
O analista remete para uma sondagem publicada no passado fim-de-semana, em que 50% dos entrevistados disseram que votariam em Lula da Silva, enquanto Bolsonaro só reunia 38%. A rejeição do ex-Presidente, contudo, é também bastante elevada (44%), mas ainda assim inferior à do atual Chefe de Estado (56%).
Candidatura fará aumentar a polarização. Lula diz que isso é positivo
Humberto Dantas, cientista político e gestor de educação no Centro de Liderança Pública, uma organização não-governamental que forma líderes políticos, considera que a anulação das condenações de Lula da Silva “muda tudo” e antevê um aumento da polarização no Brasil.
“Vai ser uma eleição muito violenta. Se for Lula contra Bolsonaro, vai ser de um extremismo absurdo. Bolsonaro é um animal político indócil e o Lula é o rancor em pessoa”, afirma o investigador, por Skype, ao Observador, comparando um eventual confronto entre o atual e o ex-Presidente a um combate de boxe: “Dois Mike Tyson no ringue. É isso que vai ser Bolsonaro contra Lula”.
A polarização, porém, até é bem vista pelo próprio Lula, que esta quarta-feira sublinhou que “o PT polariza desde 1989” e que isso só significa que o partido é “muito grande”: “Não pode ter medo de polarizar, tem que ter medo é de ficar esquecido”.
O ex-presidente, de resto, não hesitou em começar os ataques a Jair Bolsonaro e esta quarta-feira teceu fortes críticas à gestão da pandemia do Presidente brasileiro, afirmando que “muitas mortes poderiam ter sido evitadas se tivéssemos um governo que fizesse o elementar”.
“Este país não tem governo. Este país não tem ministro da Saúde. Este país não tem ministro da Economia. Este país tem um fanfarrão”, atirou o ex-Presidente, que, ao longo do seu discurso, manifestou solidariedade com as vítimas da Covid-19 e, revelando que vai receber a vacina na próxima semana, apelou aos brasileiros para se vacinarem e não seguirem “nenhuma decisão imbecil do Presidente da República ou do ministro da Saúde”.
“Lula está a encontrar um contraponto esperado numa liderança que polariza com Bolsonaro”, considera Humberto Dantas. “O PT está preparado para se reconstruir num ambiente economicamente frágil, de um governo com dificuldade em governar, muito verborrágico. O PT vai tentar ser o contraponto absoluto deste governo”, acrescenta.
Condenações de Lula da Silva na justiça anuladas. Pode candidatar-se em 2022
Para o cientista político Cláudio Couto, a quase certa candidatura de Lula da Silva à presidência é uma dor de cabeça para Bolsonaro, cuja popularidade “erode em decorrência da gestão catastrófica da pandemia, do colapso económico, dos indícios de corrupção que envolvem a sua família e da traição dos seus compromissos de campanha”.
Apesar da elevada rejeição de Lula por uma parte do eleitorado, o analista considera que o regresso do ex-Presidente à ribalta não vai favorecer Bolsonaro. “Pelo contrário. Não se tira a atenção de quase 300 mil mortos com uma candidatura antagonista que irá, justamente, criticar essa coisa. É o fracasso retumbante e deliberado de Bolsonaro que fortalece Lula, não o oposto”, sentencia.
Candidaturas ao centro já fazem contas para 2022
A entrada em cena de Lula da Silva fez alvoroço não só no Palácio do Planalto, mas também no centro político brasileiro, levando a que, inevitavelmente, candidaturas alternativas e mais moderadas tenham de ser apressadas, numa corrida muito difícil para ultrapassar os dois principais candidatos à vitória.
“Se o Lula for candidato, ele está quase automaticamente no segundo turno. E dois candidatos de esquerda ou centro-esquerda no segundo turno é algo muito improvável”, afirma o analista Sérgio Praça, considerando que Ciro Gomes, candidato do centro-esquerda que já concorreu em eleições anteriores, pode ser um dos principais prejudicados.
No entanto, ao contrário do que aconteceu nas presidenciais de 2018, Sérgio Praça acredita que, desta vez, Ciro Gomes se renda e apoie o candidato do PT. “A oposição de centro-esquerda vai acabar por se render ao Lula, e não por outro motivo além de ele ser o candidato com mais chances de ganhar”, sublinha Sérgio Praça que, no entanto, adivinha nova “rivalidade” entre Ciro Gomes e o ex-Presidente.
Essa rivalidade, aliás, ganhou força esta quarta-feira, com Lula da Silva a afirmar que Ciro Gomes “precisa de se reeducar”, isto depois de o pré-candidato ao Planalto ter acusado o ex-Presidente de só pensar em si próprio. Adivinha-se, por isso, muita tensão no centro-esquerda.
Já no centro-direita, a emergência de uma candidatura capaz de chegar à sua segunda volta parece uma hipótese cada vez mais longínqua, sendo João Doria, um dos nomes na calha. Com a entrada em cena de Lula, o governador de São Paulo criticou de imediato a “polarização que favorece os extremistas” e afirmou que “o Brasil é muito maior do que Lula e Bolsonaro”.
Doria, contudo, foi um dos apoiantes de Bolsonaro em 2018, e apesar de estar em choque o atual Presidente, isso pode dificultar o seu plano político. “O que sobraria ao Doria, apresentar-se como um antipetista menos radical? Se Lula conseguir murchar esse antipetismo que existe, Doria corre o risco de ficar sem discurso”, diz o cientista político Humberto Dantas, que também é investigador na Fundação Getúlio Vargas.
Na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Lula tentou ainda falar para vários setores do país, tentando conciliar “um tom moderado com críticas agressivas a Bolsonaro”, conforme escreve a Folha de São Paulo, piscando o olho ao centro, ao manifestar abertura para dialogar com os partidos políticos e com os empresários: “Não tenham medo de mim, eu sou radical porque quero ir na raiz dos problemas deste país.”
Casos contra Lula ainda podem voltar na Justiça
Todos estes cenários em cima da mesa dependem, no entanto, da imprevisibilidade do sistema judicial brasileiro, cuja incerteza, até às eleições, ainda é muita — basta pensar que a decisão de uma só pessoa, o juiz Edson Fachin, virou o cenário político de pernas para o ar.
Além disso, convém realçar que a anulação das condenações não faz com que Lula fique completamente livre da justiça, até porque a decisão não implica que o ex-Presidente seja inocente — o caso pode voltar a ser analisado por um outro tribunal.
Paralelamente, decorre também o julgamento sobre a suspeição do ex-juiz Sergio Moro na condenação do antigo Presidente brasileiro, no qual, caso o STF decida que o também ex-ministro da Justiça de Bolsonaro foi parcial no seu julgamento, muitas provas contra Lula podem ser invalidadas, dificultando uma futura condenação.
Num coletivo de cinco magistrados, dois (incluindo Fachin) votaram para defender Moro, enquanto outros dois acusaram o antigo juiz de ser parcial e teceram duras críticas à forma como decorreu o processo da Lava Jato. Na terça-feira, o juiz Nunes Marques, que tem o poder de desempate, pediu mais tempo para decidir e o julgamento acabou adiado, sem data para ser retomado.
Lula da Silva, que esta quarta-feira disse ser “vítima da maior mentira jurídica contada em 500 anos de história” do Brasil, já fez saber que vai continuar a lutar para que “Moro seja considerado suspeito”, acusando o ex-ministro de ser “o maior mentiroso da história do Brasil”.
O “político injustiçado” pode ser a maior arma para 2022
Caso Moro venha a ser considerado suspeito de parcialidade (o cenário mais provável, segundo analistas e a imprensa brasileira) e as provas venham a ser invalidadas, Lula da Silva surge ainda com mais força para uma candidatura em 2022.
“Significaria uma imensa vitória política e judicial para Lula, afinal, ele sempre alegou que havia uma perseguição judicial contra si por parte do ex-juiz [Moro]”, realça Cláudio Couto.
“Assim, Lula poderá apresentar-se na eleição, ainda mais claramente, como um político injustiçado, vítima de um complô judicial e político, que teve como desfecho a eleição de um extremista de direita cuja gestão da pandemia produziu centenas de milhares de mortes evitáveis. Não é pouca coisa politicamente”, afirma o cientista político.
Adiado julgamento sobre suspeição de Sérgio Moro na condenação de Lula da Silva
Humberto Dantas acrescenta que, a partir de agora, o PT vai tentar fazer passar o discurso de que “Sérgio Moro destruiu o Brasil”: “O argumento mais importante para o PT é dizer que tudo o que foi dito contra o partido e contra Lula não se sustenta em termos jurídicos, e que o Sérgio Moro era um agente mal intencionado dentro da justiça.”
Em plena pandemia, que está a devastar o Brasil, e quando ainda falta mais de um ano e meio para as eleições, todos os cenários estão em cima da mesa e tudo pode mudar rapidamente. Certo é que Lula da Silva está de volta à ribalta e adivinham-se grandes embates com Jair Bolsonaro.
“Se o Lula conseguir passar o discurso de que foi injustiçado e de que tudo o que falaram sobre ele era mentira, isso vai dar uma eleição muito intensa e disputada em 2022. Muda tudo”, conclui Humberto Dantas.