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E se perguntarmos a Patricia Lockwood o que é a literatura? "É uma compulsão, um vício, um excesso"

Os blogs e o twitter, a poesia e a auto-ficção, a religião e Trump. Falámos com a autora de “Priestdaddy” e do finalista do Booker Prize “Sobre Isto Ninguém Fala”, Patricia Lockwood.

Aos 41 anos, é uma das mais destacadas e emergentes autoras da literatura norte-americana. Por vezes descrita como “poeta premiada do Twitter” – em referência aos tempos em que ainda deambulava pela rede social – Lockwood fez nome através de tweets melancólicos, mas sempre humorísticos, ao mesmo tempo que começou a publicar poesia e prosa a uma velocidade furiosa, como se estivesse num jogo com tempo limite.  A escrita, diz, é ato compulsivo e é hábito. “É aquilo que faço sempre, assim que acordo. (…) Aprendi que se não consigo conter algo dentro de mim, então terá de sair para algum lado. Neste caso, através da escrita, que é o meu escape.”

Pelo meio de “tempos obscuros”, marcados pela presidência Trump e alguns infortúnios familiares, publicou o livro de memórias Priestdaddy. Nomeado como um dos 10 melhores livros de 2017 pelo The New York Times, relata a sua educação como filha de um ministro luterano casado que se converteu ao catolicismo, tornando-se num dos poucos padres católicos casados. Mas o livro, onde trata questões de família, crença, pertença e idade adulta, foi apenas um marco. Antes já tinha publicado dois livros de poesia — Balloon Pop Outlaw Black e Motherland Fatherland Homelandsexuals — e, mais recentemente, um primeiro romance, intitulado Sobre Isto Ninguém Fala (2021), o único traduzido até agora em Portugal.

Neste título, Patricia Lockwood volta a debruçar-se sobre a relação do mundo digital com a realidade, colocando uma interrogação ao leitor: haverá vida depois da internet? Vencedor do Dylan Thomas Prize e finalista, entre outros, do Booker Prize, o livro conta a história de uma mulher que entra no portal (pode ser a internet em analogia), mergulhando num lugar estranho e aditivo onde a privacidade se vê revirada do avesso. Contudo, é nesse momento que as ameaças existenciais começam a ganhar forma – as alterações climáticas, a precariedade económica, a ascensão política de um “ditador” por nomear ou uma epidemia de solidão – tudo faz parte deste universo que, no final de contas, tem pouco de ficcional em relação ao mundo em que vivemos.

Mas voltemos à escrita como motor: Patricia Lockwood encontrou gatilhos narrativos nas memórias familiares e nas experiências que viveu. Ao Observador explica que escreve por necessidade, que parte da leitura e que a literatura está a mudar a com a Internet. As redes sociais deram-lhe o conforto para a escrita. “Gosto de estar num lugar onde sou apenas cérebro e onde sinto que estou a contactar com outras pessoas, mas só de forma cerebral. Uma vez mais, isto acontece porque nunca me senti muito conectada com o meu corpo.” Não esconde a preocupação com a política norte-americana e a sensação de dejá vu, reflete sobre o ressurgimento dos cultos religiosos e aponta para a importância da leitura e das artes.

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Ainda a entrevista não tinha começado e já Lockwood falava de um processo de escrita e revisão. “Chego a um determinado momento em que tenho de saber parar”. Desde 2019, como colaboradora da London Review of Books, tem-se destacado como uma pujante ensaísta, que lhe acrescenta mais uma faceta como autora prolífica. E é por aí que começamos.

"Sobre isto Ninguém Fala", o único livro de Patricia Lockwood publicado em Portugal (2022; Bertrand)

Tem-se debruçado ultimamente sobre os ensaios e a crítica literária. Como é que este processo é diferente do resto da sua escrita?
Começo de imediato a ler o livro que me proponho a analisar e identifico o que sei sobre o escritor. O que sei sobre os seus antecedentes; se tenho um forte conhecimento dos seus trabalhos anteriores; se gosto realmente dele ou se me sinto apaixonado pelo que escreve de alguma forma. E continuo a ler. Leio coisas relacionadas com o autor. Geralmente, não costumo aprofundar a biografia. Na maior parte das vezes, limito-me a tratar a obra que tenho diante de mim.

Já escreveu ensaios sobre David Foster Wallace ou Elena Ferrante. Um autor é, em primeiro lugar, um bom leitor de outros?
Sim, sem dúvida. O David Foster Wallace e a Elena Ferrante são ambos ótimos leitores. Leitores de primeira linha. Diria que muitas das minhas ideias surgem de manhã, quando me sento com o meu café, com um bloco de notas ao lado, a ler… Não me sento apenas com os meus próprios pensamentos. Começo geralmente com o livro de outra pessoa. É um estímulo para mim. Há um livro chamado The Triggering Town, do Richard Hugo. É ensinado por vezes em programas de escrita criativa nos Estados Unidos. Explora a noção de que se pode estar a conduzir por um lugar e ver alguma coisa, um raio de luz ou uma música como a que vem da rádio, e isso torna-se gatilho para um poema ou um texto. É assim que sempre funcionou para mim, embora os meus estímulos sejam geralmente literários. São textuais. São aquilo para que estou a olhar, logo de manhã.

Nesse sentido nunca se está sozinho, mesmo que a escrita seja geralmente um processo bastante pessoal e íntimo.
Na verdade, admiro as pessoas que conseguem escrever sem terem tido este processo que, como diz, é mais coletivo e menos solitário. Se eu fosse largada numa espécie de ilha deserta ou algo do género, não escreveria… Preciso de algo que me estimule e de algo que me faça reagir ao que acabei de sentir.

Como escritora, considera que é importante haver este lado mais comunicativo com o público ou em entrevistas? Há autores que não gostam de falar do seu processo.
Não tenho problemas em falar do meu processo ou daquilo que me estimula. Na verdade, continuo a ter aquela sensação quando leio, por exemplo, a Ferrante. Penso: “podia ter sido eu, se tivesse tido a ideia”. Infelizmente isso não sucede desta forma. Como escritora, tenho muitas vezes esta sensação, que não teria se estivesse unicamente no papel de leitora.

É importante para si manter uma forma de comunicar com os seus leitores?
Nem por isso, mas acho que seria mais honesta com eles. Acho que não sou uma pessoa capaz de guardar um segredo. Mais uma vez, sou muito transparente. Se estou a falar com alguém e me perguntam algo, respondo honestamente. Não acho que seja uma necessidade para todos os escritores manterem esse canal. No meu caso, a escrita é o canal. Não é algo que se precise de abrir artificialmente. Além disso, creio que há uma sensação de drenagem do escritor moderno devido a esse acesso em demasia e ao facto de permitir que todas as partes da sua vida sejam conhecidas. Para mim, é mesmo que deixar que os nossos rascunhos sejam vistos antes mesmo de se ter algo de concreto.

É por isso que, como já o disse, é muito reservada em relação a entrevistas?
Acho que quero algo diferente das outras pessoas nas entrevistas. Sinto sempre que quero estar a ajudar o entrevistador a fazer o seu trabalho. Não se trata necessariamente de tornar claras os meus argumentos ou de iluminar algo sobre mim. Talvez isso aconteça porque conheço muitos jornalistas. O meu marido foi jornalista. Estou nas entrevistas como sujeito, como material, mas sinto que é uma colaboração mútua. Não se pode ser combativo ou demasiado reticente, tenho uma abertura quase patológica, mas é por isso que as considero de alguma forma momentos sagrados.

"Acho que me ensinei a ler quando tinha três anos de idade. Nem sequer me lembro. Gostava muito de ter uma memória mais concreta dessa aprendizagem inicial. Tenho memória de livros que foram formativos, mas gostava de ter recordações de imagens ou coisas que vi e que foram decisivas."

Voltemos à sua infância e aos seus antecedentes. Nasceu em Fort Wayne, no Indiana.
Isso diz-lhe alguma coisa? [risos] É uma cidade industrial terrível. Se passar por lá vai ver como é bastante feia.

O ponto a que queria chegar é que cresceu em diferentes locais.
Sim, em vários locais.

Como é que recorda essa época e de que forma é que a levou à escrita?
Acho que mudou a forma como me relaciono com outras pessoas. Simplesmente tornei-me capaz de cultivar intimidade muito rapidamente. Porque se mudava para um sítio novo, deixava toda a gente para trás e rompia esse ciclo. Mas quando ia para um sítio novo era capaz de falar com as pessoas e criar relações rapidamente, como forma de sobreviver. A escrita era algo que estava sempre presente. Manteve-se estável e como parte de mim. Desse tempo, retiro o meu gosto de ver muitas coisas diferentes… experimentar esse tipo de rutura vezes sem conta pode tornar-nos mais solitários, em última análise, e talvez nos torne mais estranhos em certos aspetos, mas também nos torna observadores.

Já se interessava por livros e por arte, em geral?
Absolutamente. Era uma leitora compulsiva. Acho que me ensinei a ler quando tinha três anos de idade. Nem sequer me lembro. Gostava muito de ter uma memória mais concreta dessa aprendizagem inicial. Tenho memória de livros que foram formativos, mas gostava de ter recordações de imagens ou coisas que vi e que foram decisivas.

Pode ter sido um quadro ou um espetáculo de teatro ou dança.
Na verdade, acabei de terminar um ensaio sobre A Sagração da Primavera, da Pina Bausch. Vai sair num próximo livro. Parte de uma experiência mais recente, depois de ter estado doente, em 2020, quando estava numa fase em que me sentia despersonalizada. Parte da minha experiência, que senti muito fortemente quando estava a ver outros corpos humanos a fazer algo elaborado e artístico. Sentia que entrava nesses corpos e que os sentia de uma forma distinta. Foi nessa altura que falei dessa experiência a uma amiga bailarina e ela me mostrou a peça da Pina Bausch. Senti tudo aquilo que falava. A terra no chão, os corpos, a intensidade… até o cabelo das bailarinas. Estava obcecada com a ideia de que elas podiam tomar decisões com o seu cabelo esticado até às pontas. Sempre tive esse tipo de experiência artística, em que me sentia mais fortemente identificada com o corpo do bailarino, ou do artista, do que com o meu próprio corpo.

Faz parte desse processo de auto-observação, como se estivéssemos fora do nosso próprio corpo?
Sem dúvida e acho que é por isso que sempre reagi muito fortemente à arte, como um processo físico.

Cresceu num ambiente marcadamente religioso – aquele que descreve em Priestdaddy. Como é que se relacionava com este ambiente?
Era um ambiente rigoroso, sim, mas também era excêntrico. Era idiossincrático. Como mulher não podia mostrar os ombros. Mas isso era uma coisa pessoal que vinha da minha mãe e não necessariamente do meu pai. O meu pai não nos deixava ouvir a nossa própria música, não nos deixava ver [a série] Boy Meets World, porque havia aquele receio de que podia acontecer alguma coisa de extravagante na série. Havia coisas que ele não gostava, mas a minha mãe conseguia ser mais puritana. Essa era a base do rigor. Quando se tratava de arte, esse sentimento estímulo que eu tinha, ligava-se de alguma forma à religião porque era uma performance formalizada. Em analogia, era como ver o corpo do meu pai que estava a passar por essa dança ritualizada. Pensemos no que é uma missa e na forma como cada padre ou pastor aborda esse mesmo ritual. Não há uma missa igual, são todas distintas entre si.

Via as missas como se se tratasse de um espetáculo?
Absolutamente. Há momentos em que só se fala, outros em que se canta. Na maioria dos casos, se tivermos essa predisposição, torna-se numa experiência artística. Para mim, pelo menos inicialmente, era dessa forma que olhava para aqueles rituais.

Embora já publicasse em revistas e noutro tipo de plataformas, as redes sociais acabaram por ser decisivas na sua carreira literária, nomeadamente o Twitter.
Que morreu. Ou melhor dizendo, foi morto. Tornou-se ainda mais um esgoto face ao que já era.

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"Os blogs contribuíram mais para a mudança, com um certo tipo de voz que agora vemos mesmo na escrita crítica ou ensaística"

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Porque é que as redes sociais foram um gatilho para a escrita?
Sempre adorei a Internet, porque gosto de estar num lugar onde sou apenas cérebro, e onde sinto que estou a contactar com outras pessoas, mas só de forma cerebral. Uma vez mais, isto acontece porque nunca me senti muito conectada com o meu corpo. Por outro lado, também era um sítio onde se podia escrever. Quero dizer, no tempo dos blogs, especialmente no início, bastava saber um pouco de HTML para fazer uma pequena animação e ter um contador de visitas, para se começar algo de muito pessoal onde podia existir essa conexão com outras pessoas. Escrevia-se basicamente numa caixa em branco. E não era nada parecido com o que se vê agora.

Os blogs transformaram mais essa experiência de escrita do que as redes sociais?
Os blogs contribuíram mais para a mudança, com um certo tipo de voz que agora vemos mesmo na escrita crítica ou ensaística. Os meios de comunicação social mudaram outras coisas. Nunca tive um smartphone até 2011, quando o meu marido me ofereceu um no meu aniversário. Perguntou-me se queria que ele instalasse o Twitter. Nem sequer prestei atenção, mas de facto agarrou-me logo, porque podia escrever o que me apetecesse. Nessa altura só conhecia uma pessoa no Twitter, o Greg Erskine, e que era uma das pessoas mais engraçados que conhecia na forma como utilizava aquela rede. Foi a minha porta de entrada para um tipo de humor que exista naquela rede social. O tipo de piadas e de coisas que escrevíamos era por vezes surreal e incongruente, mas não havia limites. Só mais tarde é que começou a ser um tipo de escrita mais formalizada, até pelo contexto político que foi emergindo nos Estados Unidos.

Numa altura, em que, paralelamente, publica o seu primeiro livro de poesia, Motherland Fatherland Homelandsexuals [2014].
Nos primeiros anos, provavelmente até 2015, fui buscar ideias a sítios como o Twitter, especificamente ao tipo de escrita que estávamos a fazer lá e às preocupações que tínhamos. Algo mudou, provavelmente em 2015, no período que antecedeu, as eleições presidenciais de 2016. Mas, nesta altura, ainda era um espaço muito livre. Já há muitos anos que eu enviava e publicava em revistas e já tinha conseguido entrar no mercado editorial. Já tinha sido aceite antes disso, mas acho que depois houve a perceção de que eu tinha sido notada no Twitter e que essa era a minha entrada. Na verdade, fui retirado da pilha, como tanto outros autores que querem publicar.

Portanto, mesmo sem redes sociais, teria sido esse o seu caminho?
Foi tudo o que sempre quis. Comecei muito jovem a escrever. Era a única coisa que me via a fazer e que sabia fazer. Não havia a sensação, como existe porventura agora nas redes sociais, de que ia conseguir um contrato para um livro a partir dessa exposição online. Mas também isso está a mudar.

Até com o TikTok, concorda?
Está a mudar outra vez. E não sabemos como é que vai ser. De qualquer forma, eu estava sempre a escrever poesia. Não estava a escrever ficção porque não tenho essa capacidade natural para a ficção. Não sou imaginativa de uma forma narrativa. Mas estava sempre a escrever fragmentos. E quando me casei, foi o meu companheiro que me incentivou a publicar. Nem isso era uma dimensão com a qual me tinha envolvido.

Nas últimas décadas, existe uma linhagem de autores que parece ter estado sempre ligado às revistas e jornais, à publicação por fragmentos. Essa herança tem peso?
Nunca foi particularmente importante para mim. Gosto de ler a Joan Didion e a Susan Sontag. Truman Capote é muito interessante por si só. E hoje em dia, vemos como os leitores estão mais interessados nalguns contos dele do que propriamente com o A Sangue Frio. Estas pessoas mudaram imenso o jornalismo também e a chamada autoficção, que sempre existiu. Basta ler historicamente e ver como alguns destes nomes transmutam a sua experiência de vida em literatura. Não é um termo muito significativo para mim… Se alguém me colocar nesse espectro, acho que é correto para um livro do como Sobre Isto Ninguém Fala, mas não invisto propriamente a minha atenção nesse tipo de categorias.

Mas esse tipo de escrita mudou a literatura?
As questões éticas mudaram, certamente.

Um poema seu, como o famoso The Rape Joke, leva-a a refletir sobre essas questões de que fala?
Era muito diferente do tipo de coisas que tinha escrito antes, tanto pelo formato como pelo tema, sobre o qual eu não escreveria em determinadas épocas. Mais pelo facto de eu não me considerar um tema legítimo, talvez. Ou o sítio onde cresci não era, para mim, uma área de investigação legítima. Não achava que estas dimensões fizessem parte da poesia ou da literatura. Essas eram as coisas que eu lia de outras pessoas. Por isso, foi preciso algo como uma anedota de violação para me fazer entrar nisso. Agora, considerando as questões éticas ou algo do género, não o fiz na altura, foi como que escrito numa espécie de calor do momento e saiu bastante intacto. Só depois é que tive de considerar mais as questões éticas porque envolve outras pessoas.

"Quando era criança, tinha a ideia de que se escrevia de forma séria porque nos sentimos muito sérios. Se tivéssemos uma experiência profunda do mundo, da beleza ou da arte, tínhamos de a fazer parecer séria para que as pessoas soubessem como era séria para nós. Hoje sei que isso não é verdade, mas continua a ser um instinto."

Consegue dar-me um exemplo mais concreto?
Quer dizer, se estou a escrever sobre a minha família, vou querer saber se tenho autorização deles. Depois, vou ter em conta as coisas que escrevo e que pessoas é que isso pode impactar.

No caso de Priestdaddy, falou com os seus pais? Já disse que o seu pai nunca demonstrou interesse em ler o livro.
E eu sabia que ele não ia ler. Ele disse: “Podes escrever o que quiseres porque cada pessoa pertence a si própria”. Isto é o que ele diz em Priestdaddy… se isso se aplica de facto, se ele lê o meu livro e ainda pensa nisso? Não sei.

Ele não leu, de facto?
Oh, não. Conhecendo o meu pai… Nem sequer sei se ele tem uma cópia. A minha mãe finalmente ouviu o audiobook, o que é muito querido, porque ela queria ouvir-me a ler e a imitá-los. Depois disso disse-me “é exatamente assim que eu me lembro”. O que é engraçado, porque ela não se conseguiria lembrar de certas coisas, porque são as minhas experiências mais íntimas. Mas o importante é que ela confia em mim e eu tento retribuir essa confiança. Quando escrevo um romance vou um pouco mais longe, porque é possível ficcionar as coisas. Mas no caso de um livro como o “Priestdaddy” era importante contar com essa confiança da parte deles.

Na sua escrita há sempre um humor latente e uma escrita não-linear. São forma de amenizar o que pode ser um lugar mais obscuro e sobre o qual é difícil falar ou escrever?
Sim, acho que não conseguiria escrever sempre num tom profundo, seria insustentável. Mas também acho que é verdade que o humor é uma parte tão importante da reação que tenho à minha infância e uma parte tão importante do tipo de linguagem que eu e os meus irmãos e irmãs desenvolvemos, que seria incorreto se não marcasse de alguma forma o tom dos meus livros. Quando era criança, tinha a ideia de que se escrevia de forma séria porque nos sentimos muito sérios. Se tivéssemos uma experiência profunda do mundo, da beleza ou da arte, tínhamos de a fazer parecer séria para que as pessoas soubessem como era séria para nós. Hoje sei que isso não é verdade, mas continua a ser um instinto. É sempre difícil para mim introduzir humor no meu trabalho e garantir que soa da mesma forma que eu estou a sentir quando escrevo sobre alguns destes temas.

Também está presente a questão do tempo nessa não-linearidade.
Podemos pensar em Nabokov e na forma como ele aborda a questão do tempo. Numa palestra que deu, fala da inação do tempo em Anna Karenina. E ele repara em coisas que muitas vezes as pessoas, por viverem uma ideia de tempo linear, não entendem. No caso do meu livro, Sobre Isto Ninguém Fala, estamos perante uma piscina de tempo, em que tudo acontece ao mesmo tempo, em que o que acontece impacta todos os personagens envolvidos. Não há uma linha cronológica que limita. É por isso que adoro ler livros de autores que vivem nesse tempo de ficção, porque também é a forma como olho e vivo o tempo.

Gosta de respeitar as regras formais da escrita ou encontra na literatura um espaço de liberdade e transgressão?
É um lugar de liberdade, mas não sei se tenho a intenção de transgredir conscientemente. A verdade é que não aprendi nenhum formato em concreto. Há muitas pessoas que estudam literatura e partem daí para a escrita. Eu não enveredei por esse percurso académico.

Foi autodidatismo?
Sim, de alguma forma e está sujeito aquilo que o momento e a matéria literária ditar. Sentimos o nosso caminho fisicamente através do nosso material, movo as peças para os lugares que me parecem mais ajustados e daí nasce uma forma de narrativa.

Parece que estamos a falar de montar um puzzle ou de utilizar a técnica de cut-up, tão celebrada por escritores como o William S. Burroughs e outros membros da Beat Generation.
E eles tinham uma certa razão. Quero dizer, acho que essa fisicalidade, a materialidade dessas notas, o facto de as podermos mover, depois de as baralharmos, pode levar-nos a lugares inesperados.

Quando é que entendeu que as memórias eram um material de escrita importante? No caso de Priestdaddy foi isso que sucedeu?
O Priestdaddy foi escrito porque eu tinha de o fazer. Foi escrito sob coação, de alguma forma. O meu marido desenvolveu cataratas subcapsulares, que são muito raras. E ele teve de ser operado e não estava coberto pelo seguro por causa da sua idade. Nós não tínhamos forma de arranjar esse dinheiro. Na verdade, angariámo-lo no Twitter, muito antes de existir algo como o GoFundMe ou algo do género. Foi um exemplo muito precoce de crowdfunding. Isso permitiu que o meu marido fizesse um transplante, mas impedia-o de trabalhar no jornal. Foi isso que nos levou a ir viver, durante algum tempo, com os meus pais. É daí que nasce o tema do meu livro.

"Fomos criados assim, mas saímos e deixamos de ser religiosos. Deixámos de ser religiosos, mas transportamos o julgamento ou as normas para a política e para a esfera social"

Marcou um regresso a casa.
Sim e foi quando pensei que realmente tinha de fazer alguma coisa com a minha escrita. Ele apoiou-me o tempo todo, incentivou e deu-me liberdade para escrever. Daí que sentisse que aquele era o momento apropriado para me lançar num projeto de escrita.

Foi uma espécie de catarse?
Mudou de facto a minha perspetiva sobre muitas coisas. Isto foi antes daqueles anos políticos realmente loucos. Olho para o Priestdaddy como uma espécie de ilha onde estávamos juntos, onde pude reviver a infância, e onde havia a sensação de poder consertar algumas coisas ou pelo menos voltar atrás e ter outro ângulo de visão sobre elas. Esse sentimento está bem presente no livro. Foi uma experiência singular, porque não tinha nenhuma perspetiva de continuar a escrever depois. O mais importante de todo este processo é que me levou a fazer as pazes com algumas coisas do meu passado, nomeadamente com a religião.

Mas atualmente é uma pessoa religiosa?
Não. Mas mantenho interesse naquela linguagem. É uma língua, uma cultura. Não nos libertamos dela facilmente. Foi um pouco perturbador para mim, naquela situação de regresso a casa e ver a facilidade com que voltei a cair em certas normas católicas. Coisas como ter um jantar com o bispo no dia seguinte e imediatamente estivesse a pensar no que ia vestir. Estas situações são engraçadas, mas também são desconfortáveis e inquietantes. Depois descobrimos algo de sórdido sobre esse bispo e também tenho de ter uma postura sobre isso. Todas estas dimensões estavam presentes e isso foi perturbador, porque me fez entender o papel que a religião tinha tido na minha infância e no meu crescimento.

O livro mudou a relação que tem com os seus pais?
Talvez tenhamos ficado um pouco mais próximos depois. Acho que ganhei uma certa ternura para com o meu pai. O meu pai tinha sido uma pessoa muito zangada ao longo da minha vida, especialmente na minha adolescência, e as minhas primeiras memórias são de homem que estava sempre aos berros. Agora já não é assim, mas acho que é normal descobrirmos novamente os nossos pais à medida que os vemos envelhecer.

Há uma certa pacificação.
Acho que acontece a toda a gente. A diferença é que eu fui confrontada com isso porque estava do outro lado do corredor do quarto deles. Por outro lado, já sou adulta, casada e eles não percebem nada da minha vida. Mesmo aí, quando regressei àquela casa, a minha mãe era inimiga da escrita. Vinham ter comigo e perguntavam-me se precisava de algo para comer. Ria-me. Só queria escrever, mas de repente lá estava eu novamente a ser tratada como uma criança.

Volta-se a cair nessa agenda familiar?
Voltamos a entrar no ritmo familiar. Não se pode preservar o próprio tempo da mesma forma. Não se pode preservar o próprio eu. Não se pode preservar o próprio silêncio. Já me tinha esquecido o quão alto o meu pai via filmes na televisão ou o barulho que fazia a tocar a sua guitarra. Tudo naquela casa era tocado no volume máximo. Tive de me refugiar e encontrar um lugar onde podia controlar tudo o que havia nesta biosfera, onde podia ter os meus pensamentos e escrever. Não sei se essa é a melhor maneira de um escritor, estar tão enclausurado, mas foi o que tive de fazer.

Por falar em religião, a verdade é que as ideologias e as grandes narrativas acabaram por dominar o século XX. Concorda?
Penso que sim, e penso que o que aconteceu a muitas pessoas da minha geração, especificamente na América, é que saímos de uma espécie de tradição evangélica ou fundamentalista religiosa. O engraçado é que fomos criados assim, mas saímos e deixamos de ser religiosos. Deixámos de ser religiosos, mas transportamos o julgamento ou as normas para a política e para a esfera social. Aspetos que experimentámos enquanto crianças como a vergonha, o pecado, o bode expiatório, a culpa, a confissão, e quando já não nos apercebemos disso, transferimo-los para as nossas vidas.

Portanto, essas narrativas continuam muito presentes, como herança.
Concordo plenamente. Voltava ao que disse antes sobre a vergonha que sentia sobre alguns destes temas não serem adequados para a literatura. Começa aí… basta pensarmos, o que é a Madame Bovary? Está sempre presente o peso destas grandes narrativas. Mas foi também por conseguir desprender-me disso que consegui escrever um livro como o Sobre Isto Ninguém Fala. Precisamente por me dizerem à partida que aquilo não era tema para um romance.

Mas voltando ainda à religião: parece que assistimos hoje a um certo regresso, especialmente dos mais jovens, a este tipo de grupos religiosos.
Houve definitivamente um regresso nos Estados Unidos. Mas penso que é cíclico… passam cerca de 20 anos depois do último apogeu destes movimentos, que foi a década de 90. Houve um enorme ressurgimento da cultura dos grupos de jovens na religião. E o último apogeu antes disso foi nos anos 70, com os chamados jesus freaks. Por isso, honestamente, acredito que é um período cíclico de 20 ou 25 anos pelo qual passamos, que vai para um lado e depois volta para trás. Talvez pelo medo, ou pela falta de controlo sobre as suas vidas. O que vemos agora é que os cultos se tornaram enormes, algo que eu não esperava que acontecesse.

"Há formas de escrever sobre estes eventos, sem que haja uma forma direta de os nomear. Essa forma de escrita, mais criativa e inteligente, ainda está para surgir relativamente aquele período de governação. Talvez quando isso acontecer, estejamos mais bem preparados para lidar com Trump ou com quer que venham a governar."

Porque é que acha que isto atrai pessoas mais jovens?
Não quero falar pelos jovens. Tudo o que sei é que eu própria não gostaria de estar na situação deles. Acho que pelo peso da Internet e da exposição digital, as relações se alteraram. Perdeu-se um certo sentido de identificação e talvez por isso muito se sintam atraídos por alguns destes grupos, onde existem dinâmicas mais definidas de relacionamento entre pessoas, sem a pressão que as redes sociais tem na vida de muitos jovens.

Como é que surgiu a ideia para o Sobre Isto Ninguém Fala?
Houve um período em que estive a escrever a primeira metade do livro durante vários anos. Tive a ideia ao ler, na verdade, Rachel Ingalls, e o seu romance Mrs. Caliban. É uma história surrealista sobre uma dona de casa que, de repente, começa a ouvir transmissões de um rádio, dizendo que, basicamente, uma grande criatura fugiu de um instituto. De repente o monstro aparece na sua casa e apaixonam-se. É uma história de amor, mas é maravilhosa porque a forma como a protagonista aparece inicialmente na história é a lavar a loiça, a ouvir rádio, a fazer uma salada para o jantar. Simplesmente pelo seu quotidiano. Está apenas a descrever o que está a acontecer na sua vida antes deste momento em que tudo vai mudar de uma forma que é quase inacreditável. É daí que surge a ideia para a minha protagonista que entra num portal e onde parece que tudo está a acontecer ao mesmo tempo. Parece que está só a fazer scroll, onde vê os vídeos mais ridículos, memes, notícias falsas, até que, de repente, também essa sua passividade é posta em causa.

Segundo consta, há a possibilidade de continuar o livro?
Isso é verdade, sim. Acho que neste momento tenho de pensar bem na estrutura que quero dar ao livro, caso lhe dê seguimento. Talvez num enquadramento ainda mais fictício e que não se ligue tanto como a minha vida diretamente.

Está também a preparar um livro de contos?
Sim. É um livro que parte da minha experiência de despersonalização quase total. Depois de ficar doente com Covid [com sintomas que ainda sente hoje], senti que o meu corpo tinha sido substituído. Foi a experiência mais estranha que tive e precisava de escrever sobre isso.

Volta sempre a essa necessidade de escrita?
É aquilo que faço sempre assim que acordo. É uma compulsão, um vício, um excesso. Aprendi que se não consigo conter algo dentro de mim, então terá de sair para algum lado. Neste caso, através da escrita que é o meu escape.

Também falou dos anos que antecederam as presidenciais norte-americanas de 2016. Preocupa-lhe os próximos tempos em termos políticos?
Seria muito estranho se lhe dissesse que não! Estamos a ter uma sensação de déja vu. E pergunta é: ninguém se lembra de como foi? Sou supersticiosa, por isso não quero traçar nenhum retrato futuro. Nunca achei que Trump pudesse ser eleito e foi. Foram tempos negros. Vemos como a literatura e arte não sabiam bem o que fazer com ele. Se o deviam ignorar ou satirizar. Basicamente, ficámos todos presos nas nossas bolhas.

Às vezes é preciso uma certa distância?
Sim, acho que posteriormente surgirá uma escrita mais articulada sobre esse período e que nem precisa de ser sobre ele diretamente. Basta pensarmos nos romances da Magda Szabó… são sobre o holocausto, mas não necessariamente sobre o que aconteceu. Há formas de escrever sobre estes eventos, sem que haja uma forma direta de os nomear. Essa forma de escrita, mais criativa e inteligente, ainda está para surgir relativamente aquele período de governação. Talvez quando isso acontecer, estejamos mais bem preparados para lidar com Trump ou com quer que venham a governar.

 
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