Numa manhã de sábado outonal, indecisa entre a chuva e o sol, dois alunos vestidos com o equipamento desportivo escolar correm numa azáfama para o nº18 da Rua Nova da Trindade, no Chiado, seguidos pelos pais, porque aqui as aulas duram até ao fim de semana. Lá fora, um grupo geriátrico de turistas passa em frente a esta porta sem parar nem se aperceber de que também aqui se escreveu a história recente de Lisboa.
Estamos na Academia de Amadores de Música (AAM), uma das mais antigas instituições votadas ao ensino artístico na cidade, no ano em que chega ao 140.º aniversário. Parece, todavia, haver poucas razões para celebrar, porque se o passado se encontra repleto de feitos e conquistas, o futuro reveste-se de incerteza. Em 2022, pairava no ar a ameaça de um despejo da AAM destas instalações, que ocupa há mais de seis décadas; dois anos depois, esse destino parece mesmo definitivo.
Os novos desenvolvimentos desta história começaram por surgir no final de 2023, quando foi tornado público que, face a uma atualização de renda de 542 para 3.728 euros, a AAM tinha firmado um acordo com o senhorio para garantir a atividade na morada até agosto de 2025, altura a partir da qual o imóvel será vendido. Depois dessa data, é incerto para onde irão quatro funcionários, 37 professores e 317 alunos, além de 20 pianos e de todo um espólio histórico e arquivístico.
Sendo uma entidade de Interesse Histórico e encontrando-se sob a proteção do estatuto de Utilidade Pública Municipal, a AAM foi conseguindo permanecer neste local ao evitar as disposições do Novo Regime do Arrendamento Urbano, de 2013. Tal condição só estava garantida até 2023, mas o Orçamento do Estado desse ano prorrogou por mais cinco anos esse estatuto — ou seja, em teoria, a escola conseguiria manter-se na atual morada até 2027. No entanto, a mesma lei permitiu a atualização da renda na base do valor do imóvel, o que motivou a subida acima referida.
Perante o crescimento abrupto dos custos e falta de garantias de proteção para lá de 2027, a direção administrativa da AAM viu-se obrigada a optar pelo menor dos males e combinar com o senhorio a saída do espaço no próximo ano, mantendo a atual renda e recebendo uma indemnização mediante o valor da venda do imóvel. “Ninguém, na minha situação, poderia esperar até setembro de 2025 para ter uma resposta do poder político”, afirma Pedro Martins Barata, diretor da escola. “Fomos encostados entre a espada e a parede”, adianta.
O arrastar de uma situação “absolutamente patética”
Desde que começaram a sair as primeiras notícias sobre a situação da AAM, somaram-se também os fundamentos pela defesa da instituição e pela manutenção da sua atividade neste espaço. Afinal de contas, foi por aqui que passaram figuras como Fernando Lopes-Graça, Carlos Bica, Maria João Pires, Bernardo Sassetti, Luís de Freitas Branco ou Viana da Mota e elementos de bandas tão distintas como Madredeus, Xutos e Pontapés e Peste e Sida. Além disso, a academia tem recordado frequentemente o papel que desempenha como instituição educativa, providenciando ensino artístico a alunos de 18 escolas privadas e públicas do concelho de Lisboa com quem tem contratos de patrocínio — além de todos os outros estudantes em ensino supletivo, livre e de iniciação. No entanto, Pedro Barata não esconde a frustração de, até agora, tudo isto parecer ter sido em vão
“Há uma quantidade de argumentos que acho que são fortíssimos e que já deveriam ter levado a que alguém tivesse feito alguma coisa. Na prática, e sejamos muito honestos, muito pouco foi feito ou nada. E isso é uma enorme desilusão, até mais enquanto cidadão do que presidente. Não vou ficar parado, como não vai ficar a direção administrativa, como não vamos todos nós. Portanto, neste momento, temos uma situação que é absolutamente patética”, atira.
Em causa está a falta de resposta que a AAM tem obtido por parte não só da Câmara Municipal de Lisboa, como também de vários ministérios do Governo. A experiência de Pedro Barata e restante equipa tem sido a de sucessivas reuniões onde são os próprios a apontar potenciais locais que poderiam ocupar e a encontrar obstáculos burocráticos e estatutos indefinidos, além da indisponibilidade das entidades em identificar lugares. “Nós é que andamos de nariz no ar a olhar para diferentes soluções e tentar fazer a advocacia, digamos assim, do nosso interesse no espaço. Alguns, relativamente poucos, são de património da Câmara; outros são de património do Estado”, afirma. Foi o caso do Tribunal da Boa Hora, do Palácio de Valadares, do Palácio Pombal e do Palácio Marim-Olhão, apenas para citar alguns dos imóveis que, à partida, reuniriam as condições necessárias ao bom funcionamento da AAM, mas que se revelam inviáveis. “São variadíssimas situações que identificamos, ou alguém que conhecemos nos sinaliza, avançamos com essas hipóteses e a Câmara e as outras entidades, por uma maneira ou outra, dizem que não é possível”, conta.
Procurando não hostilizar o atual executivo camarário, Pedro Barata não só sublinha que “há de certeza milhentos problemas e só mesmo na Cultura há imensas instituições que têm problemas semelhantes ao nosso”, como afirma que os problemas de “falta de capacidade e de resposta” são já crónicos. “A primeira vez que reuni com alguém foi ainda no anterior mandato, com a vereadora Catarina Vaz Pinto, e na mesma altura, ainda nem sequer eu era presidente, foi-nos dito ‘a Câmara estava a tentar apagar uma quantidade de fogos e não há espaços’. Dando “de barato” que nesse período a AAM não se encontrava numa situação de emergência como a atual, o dirigente diz que “o efeito prático é o mesmo”. “Eu posso ter a maior condescendência para com este elenco camarário e com os anteriores, mas, no final, estamos a 10 meses e não tenho um espaço”, lamenta.
No que toca às instâncias do Governo, Pedro Barata revela que, da parte do Ministério da Cultura, as reuniões já se somam desde o anterior mandato governamental. “Há muito interesse no acompanhamento da nossa ação, inclusivamente em tentar junto de outros mistérios sensibilizar para a hipótese de haver alguma coisa, mas o Ministério da Cultura não tem património próprio e, portanto, o máximo que vai fazer é, se e quando houver essa oportunidade, exercer algum tipo de influência”, diz.
Já no que toca ao Ministério da Educação, o diretor da AAM diz ter finalmente conseguido uma reunião onde “pelo menos, houve a intenção de ajudar-nos, efetivamente, a procurar em tudo o que é património do Estado, seja do próprio ministério, seja de outras tutelas”. Uma das ideias, adianta, passa por “alguns espaços que o Estado Central vai libertar, com a centralização das Secretarias Gerais da Caixa de Depósitos”. “Esta primeira reunião correu muito bem e ficámos muito agradados com a forma como fomos recebidos, mas, até agora, são intenções”, afirma.
“Enquanto vou fazendo todas estas diligências, visto que não tive sequer um vislumbre de uma situação que pudesse ser compatível com a manutenção da Academia numa zona central, de Lisboa, já temos um monte de pessoas a procurar lugares que possamos comprar ou alugar. Sendo que, nessa situação limite, vamos para fora daqui da zona central e isso vai ter impactos extremamente negativos sobre a atividade da academia”, continua.
Em que sentido é que serão negativos? Aí entra-se numa questão espinhosa, que Pedro Barata diz não tratar-se de comodismo nem elitismo: o facto de que a AAM precisa de permanecer numa zona central de Lisboa, o que choca com a capacidade financeira da instituição (que, apesar de ter recuperado nos últimos anos, continua a ser a de uma entidade sem fins lucrativos). “Não é que sejamos uns elitistas e gostemos imenso de estar no Chiado, não tem nada a ver com isso. Tem a ver com o facto de que temos de estar num sítio central que tenha boas possibilidades de deslocação, porque temos permanentemente pais a virem entregar filhos aqui, temos professores que vão e vêm às escolas de patrocínio. Como no resto do país, os nossos professores são verdadeiros saltimbancos, andam com o seu trabalho às costas, em três ou quatro escolas onde dão aulas, na sua grande maioria”, diz o dirigente.
À parte do lamento que deixa por ver o centro de Lisboa cada vez mais desprovido de entidades culturais, Pedro Barata diz que é inviável a academia instalar-se num espaço em zonas como Marvila, Beato ou na Alta de Lisboa porque são zonas mal servidas de transportes públicos. “Não é apenas o Chiado, é a ideia de sair daquilo que é da zona central de Lisboa para ir para a Ameixoeira, por exemplo. Foi-nos sinalizada uma vez uma quinta lindíssima da Santa Casa por lá. Mas além de ficar ao lado da pista do aeroporto — pormenor ‘irrelevante’ para uma escola de música —, não há sequer nenhuma carreira de autocarro para lá. O metro ficava a um quilómetro. Não posso ter miúdos de 14 ou 15 anos a fazerem um quilómetro até ao metro em terrenos descampados, arrisco-me a ter problemas graves”, assume o dirigente.
No entanto, na pior das hipóteses, a AAM terá mesmo de recorrer a um local pouco central — o que também implicará a perda de alunos, por afastar-se das escolas com quem celebrou contratos de patrocínio — e com menos espaço do que os atuais 700 m2 que ocupa e que já não permitem mais crescimento. “Estamos nesta corrida, até porque a questão do plano de contingência é um bocadinho difícil. Isso quereria dizer que teríamos um espaço algures menos bom, mas que garantia a atividade. Ora, o que se passa é o seguinte: no momento em que sairmos, sairemos com uma indemnização que tem um valor mínimo e um valor mais ou menos aberto porque depende do valor de venda deste imóvel. Portanto, quando sairmos, essa indemnização, pelo que temos visto, permite-nos pensar apenas na compra de um espaço eventualmente em zonas bastante periféricas de Lisboa, muito provavelmente em instalações que são ou lojas ou garagens”, assume.
“A Câmara tem feito todo o possível”
A situação da AAM é uma que a Câmara Municipal de Lisboa já se comprometeu publicamente a analisar. Em 2022, foi aprovada por unanimidade uma recomendação por parte do grupo independente Cidadãos por Lisboa em sede de Assembleia Municipal em que responsabilizava o município a assegurar “uma situação definitiva para esta escola de música numa localização compatível com as atividades desenvolvidas pela Academia” até ao final de 2023, o que não aconteceu.
Questionada pelo Observador quanto ao falhanço em cumprir este compromisso e também quanto às dificuldades em auxiliar a AAM, a câmara responde apenas que “vai continuar a acompanhar a situação da AAM, mantendo a sua total disponibilidade para, dentro das suas possibilidades e capacidades, e em conjunto com a AAM, procurar encontrar uma solução para um espaço alternativo onde a mesma possa continuar a desenvolver a sua atividade”.
“Até agora não foi possível localizar um imóvel municipal com as características que a AAM considera necessárias e imprescindíveis para prosseguir as suas atividades, nomeadamente: centralidade; fácil acesso a transportes públicos; área disponível para albergar todos os alunos e professores; salas de aula e auditório”, termina a resposta do município, não respondendo também se tem algum plano de contingência para auxiliar a instituição.
Entretanto, um novo sinal político foi emitido, desta feita pelo próprio presidente da Câmara Municipal, Carlos Moedas, que acumula a função da vereação da Cultura desde que Diogo Moura suspendeu o seu mandato em maio deste ano. Falando aos jornalistas à margem da iniciativa “Preparar Lisboa para Grandes Emergências como Sismos ou Tsunamis” no dia 30 de outubro, Moedas defendeu que “a Câmara tem feito todo o possível”, deixando “também um apelo ao Governo, ao Ministério da Cultura, aos vários ministérios”.
“Lisboa pode ajudar, mas estamos aqui a falar de algo que é de âmbito nacional e de associações centenárias que merecem este espaço”, afirmou, citado pela agência Lusa. Na mesma comunicação, Moedas disse também estar a trabalhar com o diretor do Património “para encontrar uma solução”. “Neste momento ainda não a temos, mas vamos seguramente conseguir encontrar uma solução de espaço”, garantiu.
Não obstante o acumular de frustrações dos últimos anos, Pedro Barata continua a insistir junto das instâncias políticas, tendo reunido recentemente com a vereação da Cultura da CML. Seguem-se novos encontros com o Ministério da Educação na segunda-feira, 4 de novembro, e com o executivo camarário no dia seguinte, nos Paços do Concelho — encontro esse que também passará por uma visita às instalações da AAM.
Além destas diligências, foi também lançada uma petição pública online “pela manutenção e salvaguarda da Academia de Amadores de Música” que, no início de novembro, já tinha 5.135 assinaturas, assim como uma carta aberta assinada pelos pais e encarregados de educação dos alunos. Ambos os documentos sintetizam a história da AAM e apontam alguns dos argumentos cruciais para a preservação da instituição, mas a carta dos pais apresenta uma linguagem mais dramatizada, falando num “património histórico, artístico e educativo” na “iminência de ruir”.
O texto também aponta para o que considera ser um comportamento incongruente da parte da CML, dizendo os autores “compreender o critério que preside à decisão política de apoiar em cerca de um milhão de euros por ano o privado e lucrativo Festival Meo Kalorama, com a duração de apenas três dias”, mas não que “se deixe morrer uma instituição educativa e artística de utilidade pública e sem escopo lucrativo, cuja atividade se desenvolve ininterruptamente ao longo de 11 meses por ano”.
Outra crítica é dirigida à política camarária de apoiar projetos como o HUB Criativo do Beato e não de preservar instituições centenárias. “Os pais e encarregados de educação dos alunos da Academia de Amadores de Música podem compreender o critério que preside à decisão política de investir numa gigantesca ‘Unicorn Factory’ e na sua rede de hubs em Lisboa, com todos os apoios às startups e scaleups com escopo lucrativo. Mas não aceitam nem compreendem que ao mesmo tempo se deixe apagar do mapa da cidade uma verdadeira ‘incubadora de talentos’ com provas dadas ao longo de 140 anos e com contributos firmados no setor das “indústrias culturais e criativas”, contribuindo para gerar nestas indústrias inúmeros postos de trabalho diretos e indiretos”, lê-se.
Segundo Pedro Barata, estas são apenas algumas iniciativas ao que poderão juntar-se demonstrações e atuações musicais públicas. “Há uma quantidade de ideias de eventos que, para já, são só ideias. Não tivemos tempo ainda de mobilizar-nos para alertar para a nossa situação”, conclui.
“É de uma importância vital preservar esta casa, preservar este lugar”
Regressando àquela manhã de sábado, subindo ao segundo piso do n.º18 da Rua Nova do Trindade, a preocupação que tem tomado conta da direção não se vê espelhada na cara dos alunos nem dos seus professores ou pais, sentados à espera no hall de entrada para que as aulas terminem. É “business as usual”, com o ambiente típico de uma escola somado à vontade de aprender e ensinar até mesmo ao fim de semana.
No entanto, se a AAM tem conseguido manter atividade regular sem deixar que o seu futuro indefinido se traduza em instabilidade no ensino — pelo contrário, Pedro Barata afirma que a escola tem mais alunos do que nunca —, não é por isso que os pais não demonstram alguns temores quanto à eventual saída deste espaço em conversa com o Observador.
Pai de dois alunos da AAM, Diogo Gomes diz que é “cada vez mais difícil encontrar atividades de ensino artístico no centro da cidade”. “Para pessoas que aqui vivem e querem organizar a sua vida e das suas crianças também aqui nesta zona, há cada vez menos oferta, é cada vez mais difícil encontrar atividades culturais e de ensino para as crianças neste âmbito”, aponta, sublinhando que “o facto de haver pouca oferta e que seja pública ou semiprivada é um handicap que a cidade tem de resolver”.
Apesar de não ter grande experiência ou termo de comparação — os seus filhos só entraram neste ano, o mais velho no ensino articulado de violino, a mais nova no curso de iniciação de flauta —, Diogo diz que “ambiente da escola é fantástico” e “os professores são profissionais que estão habituados a lidar com crianças e a formá-las nesta área”, pelo que “é, para nós, fundamental que esta academia se mantenha a funcionar nestes moldes”.
Catarina Calazares tem uma experiência semelhante, com o seu filho a ingressar nas aulas de violino após recomendação de amigos quanto ao “ambiente familiar” que aqui se vive. “Começámos este ano letivo, mas temos-nos sentido sempre muito amparados”, adianta. Perante as notícias do despejo em agosto de 2025, diz-se “surpreendida e com preocupação — sobretudo porque é uma instituição já centenária”. “Esperava que houvesse um maior cuidado com algo que tão bem faz a todos nós, não é? E que tem um contributo muito grande no ensino da música, na formação das nossas crianças e jovens”, afirma.
No caso de Pedro Ramos, porém, a ligação é mais profunda e, por isso, sente-se também outra preocupação na sua voz. Coreógrafo, músico, bailarino e diretor artístico da Ordem do O, foi aluno da AAM dos 13 até aos 25 anos. Hoje é pai de uma menina a ter aulas de canto. “Cresci nesta casa, neste lugar. Não há só aprendizagens formais, é um contexto de crescimento, é um sítio onde também existe uma história, um legado, uma forma de olhar para o mundo, para as coisas. É todo um legado de sensibilidade, de saber e de sentir, e também uma rede de pessoas que fica. Portanto, eu acho que é de uma importância vital preservar esta casa, preservar este lugar”, defende.
Afirmando que a AAM tem um “valor incomensurável”, fala de uma “espécie de oásis que merece ser preservado”. “Não se cria isto do nada, é um contexto que não se fabrica, acontece, fruto de muitas gerações, muitos artistas, muita escola”, comenta. Pedro encara a situação atual “com preocupação, porque o tempo passa muito depressa”. “Houve várias janelas que foram-se abrindo mas parece que nunca é a derradeira oportunidade. Obviamente também encaro com esperança, porque também acredito, e aquilo que sentimos é que temos de estar muito vigilantes e temos também de estar todos alerta e de alguma forma dar voz a este nosso apelo à Câmara, ao poder político, ao nosso Governo, para que possa criar as condições para que possamos todos ter uma nova casa para continuar a criar futuro”, afirma.