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“Antes tínhamos amigos que nos ajudavam. Mas já temos 10 anos. Chega a um certo ponto que, se não se começa a ter uma engrenagem que funciona, ao nível dos recursos humanos e dos recursos financeiros, torna-se mesmo muito difícil manter uma estrutura artística", diz o coletivo SillySeason
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“Antes tínhamos amigos que nos ajudavam. Mas já temos 10 anos. Chega a um certo ponto que, se não se começa a ter uma engrenagem que funciona, ao nível dos recursos humanos e dos recursos financeiros, torna-se mesmo muito difícil manter uma estrutura artística", diz o coletivo SillySeason

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Antes tínhamos amigos que nos ajudavam. Mas já temos 10 anos. Chega a um certo ponto que, se não se começa a ter uma engrenagem que funciona, ao nível dos recursos humanos e dos recursos financeiros, torna-se mesmo muito difícil manter uma estrutura artística", diz o coletivo SillySeason

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"É um sistema muito fechado, cheio de gatekeepers": históricas e emergentes, como sobrevivem as pequenas companhias de teatro portuguesas?

Falam de uma “máscara” de apoio e de programações “pouco claras”, para "democratizar a arte sem a banalizar". No Dia Mundial do Teatro, eis o retrato de quatro companhias que lutam por sobreviver.

Apesar de ter suspendido a atividade desde 1 de janeiro por ter ficado de fora dos apoios concedidos pela DGArtes, a Seiva Trupe, histórica companhia do Porto, que celebra o 50.º aniversário este ano, está em clima festivo. Esta segunda-feira, 27, comemora o Dia Mundial do Teatro e o primeiro aniversário da instalação na nova casa, depois de nove anos sem sala própria de residência. Haverá poesia, um site a estrear, muito teatro e festa, tudo com entrada livre. Mas mantêm-se as preocupações do diretor da companhia fundada em 1973.

“Não deixa de ser paradoxal que a Seiva Trupe, criada ainda antes do 25 de abril, no tempo da ditadura, tenha passado por todos os governos provisórios e constitucionais e que seja um governo de maioria socialista liderado pelo Dr. António Costa a querer acabar com a Seiva Trupe”, comenta Jorge Castro Guedes, diretor artístico desde 2019. “Ele decidirá se quer ficar com o seu nome manchado na história do teatro português.”

A Seiva Trupe é uma das companhias históricas em risco (tal como A Barraca, em Lisboa, com 46 anos de atividade) depois de, no último concurso aos apoios quadrienais da Direção-Geral das Artes, a companhia portuense ter obtido uma classificação que a tornava elegível para apoio, mas o montante se ter esgotado antes de lhe chegar. Castro Guedes mantém “alguma esperança”, “embora seja totalmente diferente a atitude que a antiga ministra [Graça Fonseca] tinha relativamente à atitude de alguma sobranceria que tem o Dr. Pedro Adão e Silva”, acusa. “Não diria que é impossível. Tenho-o em conta como um homem culto, inteligente e esclarecido, penso que se precipitou e armou uma armadilha a si mesmo, ao dizer que não regulava nesta situação dos concursos.” No início do ano, na sequência da divulgação do Programa de Apoio Sustentado, os autores da petição “Não deixaremos morrer a Seiva Trupe” apelaram ao ministro da Cultura “na esperança de uma breve resolução da situação”, imputando a Pedro Adão e Silva “a responsabilidade e decisão políticas do caso”.

Hoje, Jorge Castro Guedes espera mais compreensão no poder local. “Temos alguma expectativa que através das autarquias, especialmente a Câmara Municipal do Porto, possa vir a surgir alguma solução que permita à Seiva Trupe sobreviver”, diz ao Observador. O responsável diz que já se reuniu com o chefe de gabinete do presidente da CMP, Rui Moreira, “para transmitir a vontade do senhor presidente para ajudar a encontrar uma solução para esta situação”.

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Jorge Castro Guedes é diretor artístico da Seiva Trupe desde 2019

(Rui Oliveira/Observador)

Neste meio século de existência, o financiamento tem sido um desafio permanente para a companhia de teatro da Invicta, mas há outros, como “a inexistência de uma certificação profissional”. “Uma pessoa qualquer resolve dizer que é profissional do teatro, concorrer, e concorre em pé de igualdade com o Carlos Avillez, com a Maria do Céu Guerra, comigo, seja com quem for”, diz. Faz sentido que estas companhias históricas concorram a apoios com outras emergentes? “As candidaturas não pedem uma certificação profissional de ninguém. Pedem um currículo vitae não confirmado, onde posso dizer que fui diretor da Royal Shakespeare Company que ninguém vai verificar”, sugere. Jorge Castro Guedes diz que o futuro tem de estar na construção de público de teatro, “massa crítica capaz de constituir um público que ajude a que essa dependência do Estado possa ser menor”.

Nos últimos meses, a revolta com os resultados dos subsídios do Ministério da Cultura tem sido grande, mas particularmente gritante entre as estruturas artísticas que foram consideradas elegíveis pelo júri (isto é, que obtiveram uma pontuação final igual ou superior a 60%), e que, ainda assim, não receberam apoio pelo facto de a verba disponibilizada pela tutela não ser suficiente para financiar todas as candidaturas consideradas elegíveis.

O Teatro Meia Volta e Depois à Esquerda Quando Eu Disser faz parte do grupo de estruturas que, há umas semanas, interpôs uma ação judicial ao Ministério da Cultura depois de conhecidos os resultados do Programa de Apoio Sustentado 2023/2026 da Direção-Geral das Artes (DGArtes). “Entendemos que houve uma ilegalidade”, diz Alfredo Martins, um dos elementos do Teatro Meia Volta. “Ficamos de fora porque se acabou o valor disponível, apesar de termos tido uma ótima pontuação, quase 80 pontos e mesmo assim não fomos apoiados”. Conhecidos os resultados dos concursos, tornou-se evidente que não estavam sozinhos. Cerca de metade das estruturas elegíveis para apoio, na modalidade bienal, ficaram de fora por falta de recursos financeiros. As críticas de várias associações representativas do sector da Cultura adensam-se pelo facto de a quase totalidade das candidaturas elegíveis no concurso na modalidade quadrienal terem obtido apoio.

“Neste momento estamos numa situação complicada”, admite Alfredo Martins. “O apoio da Direção Geral das Artes é uma parte importante para assegurar a estrutura de produção, em termos de continuidade, de contratos de trabalho.” O Teatro Meia Volta mantinha até à data cinco contratos de trabalho. “Não renovámos. Não conseguimos assegurar a continuidade dos salários”, lamenta. “Voltámos ao esquema de prestação de serviços, só quando se realiza a atividade”, diz. A companhia, sediada em Lisboa, está, por enquanto, a manter algumas produções (“com orçamento mais curto ainda assim conseguimos assegurar algum financiamento”), como um novo espetáculo infantil do ciclo Antiprincesas, sobre mulheres que se destacaram. A encenação de Cláudia Gaiolas foca-se na figura de Antónia Rodrigues e estreia-se no final de Abril no Parque José Gomes Ferreira, em Lisboa. Outras atividades “vão ser canceladas”. “Não conseguimos manter o grosso do que é as despesas de estrutura, os contratos de trabalho com os trabalhadores, e todas as contribuições inerentes, manutenção de espaços, por aí fora.”

"É um sistema muito fechado, cheio de gatekeepers. Nem sempre conseguimos ter acesso aos programadores, no básico conseguimos que respondam a e-mails”, diz Alfredo Martins, encenador

Além dos desafios financeiros, Alfredo Martins garante que um dos principais obstáculos das companhias de teatro independentes portuguesas hoje é o acesso. “É um sistema muito fechado, cheio de gatekeepers”, comenta. “As lógicas de programação são intrincadas. Nem sempre conseguimos ter acesso aos programadores, no básico conseguimos que respondam a e-mails”. Como muitas das pequenas companhias não detêm espaço físico, é através de regimes de acolhimento ou co-produções que se podem apresentar em teatros e salas de espectáculo. “Nas instituições, há sempre a figura da diretora artística, do programador ou programadora, eles são na verdade quem faz a seleção de quem entra na instituição, quem tem acesso aos meios de produção, e quem é que não entra. Isso obedece a lógicas que às vezes não são muito claras”.

O que pode levar a que uma sala de espectáculos receba uma companhia em vez de outra? “Logo no imediato pode ser uma lógica de gosto”, arrisca o porta-voz do Teatro Meia Volta. “Outras vezes é uma lógica de parcerias mais imediatas, que podem ter motivações mais ou menos pessoais, mas também pode haver uma lógica de tentar seguir tendências. De repente há um hot topic e os programadores, que acho que são pessoas com muito pouca imaginação (risos), vão todos para ali.”

SillySeason é um coletivo de artistas composto por Cátia Tomé, Ricardo Teixeira e Ivo Saraiva e Silva

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Dentro do contexto do tecido artístico português atual somos uns privilegiados”, arrisca-se a dizer Ivo Saraiva e Silva, dos SillySeason, que conseguiram recentemente o apoio estatal que lhes dá rede e segurança para os próximos dois anos. “O facto de eu dizer isto nota muito o estado cultural do país”, lamenta, ao observar estruturas que ficaram de fora. “Nunca se percebe muito bem qual é a bitola”. Certo é que “há poucos teatros e as programações estão lotadas.”

O coletivo SillySeason tem no núcleo duro, além de Ivo, Ricardo Teixeira e Cátia Tomé, tríade que compõe a direção artística, e uma produtora a tempo inteiro. “Antes tínhamos amigos que nos ajudavam. Mas já temos 10 anos. Chega a um certo ponto que, se não se começa a ter uma engrenagem que funciona, ao nível dos recursos humanos e dos recursos financeiros, torna-se mesmo muito difícil manter uma estrutura artística.” Nos últimos anos, a companhia tem concorrido a apoios públicos pontuais, em 2019 concorreram ao primeiro apoio bianual e este ano conseguiram o segundo. 110 mil euros que, somados “às várias coproduções que vamos conseguindo arrecadar para cada projeto”, lhes permitem respirar de alívio por alguns segundos. Não receber o apoio, admite, “comprometia a viabilidade do coletivo, e iríamos certamente reduzir as equipas, reduzir os projetos e número de atividades comunitárias e sociais associadas aos projetos”.

“É como se houvesse esta máscara de apoio à cultura. Foi quase dar com uma mão e tirar com a outra”, acusa Ivo Saraiva e Silva, do coletivo SillySeason.

Ivo olha com ceticismo para o futuro e questiona a implementação do Estatuto dos Profissionais da Cultura, que entrou em vigor a 1 de janeiro de 2022. “Foi muito bom para o nosso tecido, só que ao mesmo tempo faz com que as estruturas que contratam tenham de ter muitos mais encargos financeiros por causa dos contratos” e “as coproduções ainda não contemplam esse orçamento mais alargado”, quando   “o financiamento para a peça tem de reduzir porque os contratos têm de ser feitos”. “É como se houvesse esta máscara de apoio à cultura. Foi quase dar com uma mão e tirar com a outra”.

O dinheiro é escasso, todos parecem concordar, mas Saraiva e Silva destaca como grande batalha a luta contra uma “ótica de produção veloz”. “Temos de pensar como é que contrariamos esta lógica de produção excessiva, porque depois os projetos não respiram”, dita. Há muitas peças, poucas récitas e um país inteiro sem as descobrir. “O nosso trabalho, como é um trabalho conceptual e artístico, que não é tão comercial, é difícil quando não há um programador ou um vereador que não está tão implicado no discurso artístico e cultural por si só… imediatamente o que se pensa é que se não dá dinheiro fácil não serve.” Falta “desenvolver culturalmente zonas nas quais a fruição cultural é mais reduzida”. Por ano, a companhia cria habitualmente três peças, a que se agregam atividades paralelas. Por estes dias, apresentam uma versão atualizada de “Rei Édipo”, mais uma obra em que a questão da identidade está presente, tema âncora das criações do coletivo. É um desafio “tentar criar objetos artísticos que sejam arrojados, que desenvolvam uma dada estética e uma dada temática, mas que também sejam comunicadas de forma ágil com o maior número de pessoas e um público cada vez mais diversificado”, diz. “O maior desafio é democratizar o trabalho artístico sem o banalizar. Isso é que é difícil. Dizer que ‘a arte é para toda a gente’ pode levar a pensar que ‘uma arte que serve a todos é uma arte mais simplista’, e não. É democratizar os trabalhos, sem os banalizar”.

O futuro incerto não desmotiva quem está a começar. Em janeiro do ano passado, três jovens, nenhum com mais de 26 anos, arregaçaram as mangas e criaram o Teatro Gíria. “Parecia uma coisa muito difícil”, recorda Rodrigo Aleixo, encenador da companhia. “O peso de ter uma estrutura pode às vezes assustar um bocadinho. Confesso que não é fácil, toda a parte burocrática, para jovens parece muito difícil. Mas com a ajuda de muita gente, de pessoas mais velhas, conseguimos.” Os três ex-alunos do Teatro Experimental de Cascais começaram a pensar em espetáculos para candidaturas a apoios. “Para a maior parte das pessoas isto é irreal, mas fazer candidaturas dava-nos algum gozo. Pensar nos espetáculos. Sempre fizemos muitas candidaturas, a maior parte delas mesmo antes de existir Teatro Gíria”. Aliás, a companhia só existe porque perceberam que “em termos fiscais seria mais fácil assinar um contrato com a estrutura, com uma associação”. “As câmaras municipais dificilmente nos dariam [dinheiro] a nós, entidades individuais”.

A última peça do Teatro do Gíria foi "Vou Falar de Ti a Toda a Gente", no Teatro Experimental de Cascais

Os apoios camarários levaram o Teatro Gíria a, em menos de um ano de atividade, mudar de sede. Desde fevereiro que trocaram Lisboa por Cascais. “Lisboa não nos estava a dar aquilo que pretendíamos. Davam-nos apoios logísticos, mas apoios financeiros era muito difícil. Em Cascais temos conseguido desenvolver mais projetos e há a esperança de desenvolver ainda mais”, afirma. “Em Lisboa há muita gente, há muitas companhias. Uma das coisas que nos disseram é que somos muito novos”, recorda: “Que há muita gente há espera”. A próxima criação, que se estreia em maio, já conta com apoios camarários. Além de “um apoio à interculturalidade da DGARTEs”, contam com “o apoio da Junta de Freguesia de Cascais e Estoril, e uma bolsa do programa Cascais Jovem”.

Jovens com sonhos, mas os pés bem assentes na realidade. Aleixo, que atualmente trabalha enquanto assistente de encenação de Carlos Avillez no TEP, reconhece, por exemplo, que dificilmente o Teatro Gíria terá um espaço físico. “Hoje em dia todos pensamos em sair de casa dos pais e não conseguimos, quanto mais ter uma casa para uma estrutura, para uma associação”, compara. “Isso depois tem encargos para a estrutura.”

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