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A história desta viagem poderia começar debaixo da ponte, ou do viaduto, nos arredores da vila de Água de Pau, a 20 minutos de carro de Ponta Delgada. Nesta encosta de água abundante, rasgada por um viaduto desde há cerca de uma década, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira instalaram duas esculturas fálicas — embora delas se veja apenas um fragmento a sair de um muro de cimento. O falatório à volta das esculturas, e numa primeira abordagem são apenas duas bicas de água potável que interpretam a origem do topónimo Água de Pau, daria bons motivos para começarmos a narrar a visita à ilha de São Miguel durante a décima edição do Walk & Talk – Festival de Artes dos Açores, que decorreu entre 15 e 24 de julho.
Mas destes dias insulares guarda-se sobretudo a ideia de expedição, palavra que hoje define bem o Walk & Talk. Não que o nome do festival não indicasse desde sempre a intenção de caminho, descoberta, passeio. Ia-se ao encontro das obras num descampado, numa galeria ou museu, num jardim ou literalmente no interior de uma furna fumegante.
Acontece que ao chegar ao décimo aniversário em 2021 — com uma edição 2020 quase totalmente online e por isso chamada nove e meio, quando as atividades culturais estavam impedidas —, o maior acontecimento artístico do arquipélago dos Açores (juntamente com o festival de música Tremor, de uma outra associação cultural), reforçou a componente expedicionária e apresentou pela primeira vez dez excursões diárias guiadas, dirigidas ao público em geral. Consistiram em périplos pelas obras e eventos programados, quase sempre ao ar livre — o que tem muito que contar.
Em paralelo, como já acontecia nos outros anos, o público pôde visitar livremente sem itinerário estabelecido exposições, instalações, espetáculos, performances e conversas, desta vez com Ana Cristina Cachola a reforçar a equipa de curadores. É outra novidade. O acompanhamento das criações por parte do festival foi mais intenso do que noutros anos, o que parece ter tido como resultado propostas mais robustas.
Perante isto, cabe perguntar como será o futuro próximo de um festival anual que desde 2011 se constitui como plataforma de “caráter experimental e participativo” e que “motiva a criação de objetos inéditos em diálogo com o território”, como se lê no catálogo. Será que no próximo ano as excursões são para repetir? “Em princípio sim”, disse-nos Sofia Carolina Botelho, vice-presidente da associação Anda & Fala, que organiza o Walk & Talk. Numa conversa com o Observador, já depois do fim da edição 2021, acrescentou que “as excursões fazem todo o sentido, mas não serão necessariamente dez”. O número era simbólico, devido à décima edição. “Foi algo muitíssimo intenso. Terão outro ritmo provavelmente.”
A Vaga e a Anda & Fala
O Walk & Talk nasceu em torno da arte urbana e ao longo dos anos passou a atuar no “campo expandido das artes, intersectando artes visuais, performance, música, arquitetura e design”. Evento de criação, mais do que montra onde se exibem objetos desligados do lugar, assume novos contornos a cada edição, porque o ensaio, o risco e a renovação fazem parte integrante da identidade do evento.
E será que a curadoria mais próxima do criadores também se repetirá? “Em 2022 vamos continuar a ampliar em duas frentes”, acrescentou Sofia Carolina Botelho. “Numa escala micro, com a ideia das excursões e com mais tempo da nossa parte para acompanhar a criação de cada obra, porque isso dá frutos. E depois numa escala macro, através de diálogo com outros festivais insulares e periféricos, como já aconteceu este ano ao convidarmos representantes do Lava Circular, que se realiza em El Hierro, nas Canárias. É preciso começar a pensar ligações a outros centros.”
De resto, o Walk & Talk vai a caminho de se tornar um de muitos projetos no portfólio da associação cultural Anda & Fala. Em conversa informal com jornalistas que passaram este ano pelo festival, Jesse James e Sofia Carolina Botelho, presidente e vice-presidente, deram a entender que a inauguração em dezembro último de um espaço próprio para a Anda & Fala permite alargar o número de projetos anuais em que estão envolvidos, o que não vai secundarizar o Walk & Talk mas abre outros possibilidades para criadores contemporâneos.
O novo espaço é a Vaga (aparece com minúscula nos documentos do festival) e consiste num edifício térreo de considerável dimensão, mesmo no centro de Ponta Delgada. O projeto arquitetónico é do Mezzo Atelier, da dupla Giacomo Mezzadri e Joana Oliveira. A Vaga tem sempre a porta aberta. Ali cabem um escritório, um espaço de apresentação de criações e uma oficina, que durante o festival acolhe a produção de artesanato e design de produto no âmbito das residências artísticas RARA (Residência de Artesanato da Região dos Açores, com curadoria de Miguel Flor). No resto do ano, a oficina pode acolher residências de outros criadores não necessariamente a pensar no Walk & Talk e o espaço expositivo servirá também para exibir obras ou projetos independentes do festival.
O futuro do Walk & Talk faz-se portanto de uma insatisfação com o adquirido e o mesmo se diga do futuro da associação cultural que lhe dá vida. Eis o que se segue, feito de imponderáveis e de um tatear em busca. Falta porém contar o que foi. Dentro de momentos regressamos à proposta queer de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, que vimos no concelho da Lagoa. Por agora vamos a outro ponto da ilha: pedreira de basalto na freguesia da Ribeira Grande, performance e instalação de Flávio Rodrigues
Circunferência, matérias brutas, som
Transportados num autocarro — excursão organizada, tal como as outras, por Luís Fernandes e Rita Serra e Silva —, vamos até às imediações de uma pedreira explorada pelo Grupo Marques e percorremos um curto caminho de lama até darmos com um cenário nublado onde há crateras e montes de terra preta e cor de ferrugem. Talvez seja isto que os humanos vão ver em Marte quando um dia lá aterrarem, exceto que aqui a paisagem é pontuada por pequenas árvores verdes que lembram bananeiras.
Em fim de tarde, quase noite, a névoa mistura-se com uma chuva miúda e de repente chega um ruído. Todos olham para colunas de som espalhas pela pedreira. A associação é imediata: o ruído vem de um homem de impermeável que dá pequenos passos em volta de um grande círculo de pedras. Pedras dispostas como nas margens de um lago, mas não há lago. O homem é Flávio Rodrigues. Tem um microfone na mão e roça-o pelas pedras, quase uma a uma.
A performance-instalação, que é para acontecer neste momento e neste sítio, e não mais se repetir, tem um título difícil que pode ajudar a explicá-la: Hodiernidade e na Anfibologia do Agora (Alegoria do Choro). Não se percebe o que mais espanta: se o lugar improvável de paisagem árida saída de um sonho, se a compenetrada atuação do performer mais o seu ruído de brita.
“O projeto resume-se em três forças ou grandes motivações, que são aquelas a que tenho recorrido desde há alguns anos”, irá dizer-nos mais tarde Flávio Rodrigues, que também já trabalhou como intérprete de dança contemporânea. “A primeira força é a circunferência, como forma e como poética, a ideia de loop e de contínuo. Depois, a utilização de matérias brutas, que não sejam compradas, que não impliquem gastos. E por fim o som, as paisagens sonoras, que aliás tenho feito para criadores de dança contemporânea, como a Né Barros, a Cristina Planas Leitão e o Bruno Senune. O meu irmão mais novo é surdo e talvez seja por isso que o som é uma coisa muito presente na minha vida, tenho uma preocupação grande com o som, com os estímulos à minha volta, com o que o outro ouve ou não ouve.”
Criação irrepetível, agora registada em vídeo pelo Walk & Talk, começou a ser pensada há dois anos, quando Flávio Rodrigues fez uma residência de criação artística em São Miguel, a convite do festival. Não há um tema. Os criadores atuais costumam afastar-se de frases como “este trabalho é sobre…”. Mas é mesmo essa a pergunta que fazemos ao performer no dia seguinte. É sobre quê? “A ser sobre alguma coisa, será sobre a experiência de ter estado ali na pedreira, a compor em tempo real, a ouvir o espaço e a ouvir o tempo, o aqui e agora.”
“O meu corpo é meteorológico”
Ainda fora de portas, com cenário de pedra e bruma, Luísa Salvador tem uma instalação a que chamou Semelhança por Contacto. Junto à praia dos Mosteiros, a dois passos da Lagoa das Sete Cidades, a artista, que é também doutoranda em história da arte contemporânea na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, espalhou pequenas esculturas de “matéria cerâmica cozida e vidrada”. As esculturas têm motivos vegetais à superfície e evocam a história geológica da ilha, quando cinzas incandescentes se entranharam em folhas e troncos de árvores milenares, formando fósseis. Luísa Salvador dispôs os seus exemplares sobre rochas negras batidas pelas ondas, o que torna o contacto visual com eles um exercício de perícia. E ali ficarão até que o mar ou o vento os levem.
Também a pedir agilidade aos sentidos, Vai e Vem, instalação sonora e visual num parque de skate junto à Relva, com vista para o aeroporto João Paulo II. André Abel e Joana da Conceição, dupla Tropa Macaca, intervieram sobre o espaço com “sugestões visuais e auditivas”. “Gosto de trabalhar em complexos desportivos, onde as pessoas circulam livremente. Atraiu-me aqui o facto de já haver graffiti nas rampas de skate. Acrescentei algo à cosmografia já existente, às marcas deixadas por quem aqui esteve antes”, explica Joana da Conceição, referindo-se a pichagens que criou.
Na manhã em que nos guia pela instalação, as suas palavras e os sons metálicos das colunas de som são levados pelo vento. “O meu corpo é meteorológico”, lê-se numa das inscrições da Tropa Macaca, como que a recordar que a duração e o efeito das intervenções ficam à mercê do tempo atmosférico. Obra original e obra falsa, erosão e ruído, passado e presente — conceitos que vão e vêm à mente quando se está nos Açores e pontos de partida para esta proposta.
“Toxicidade do mundo contemporâneo”
“Será por onde formos”, tema-slogan do Walk &Talk 2021, parece um resumo justo da programação, até porque a frase aponta para a liberdade de pensamento e a de circulação, fortíssima ideia numa época de restrições e normas sanitárias no contexto da pandemia. Como poetas à solta, subimos em certa ocasião ao Pico do Refúgio, na Ribeira Grande, uma quinta de 400 anos e 20 hectares de encostas muito verdes que já deram milho, trigo, laranjas e chá. Além de morada de família é alojamento local e recebe residências artísticas. Gustavo Ciríaco, Gonçalo Lopes e Javiera Peón-Veiga propõem aqui um passeio-instalação que integra o projeto mais vasto Lawal – Cobertos pelo Céu.
Dois a dois, os participantes são convidados a meterem-se ao caminho por entre searas e matas, seguindo indicações de tabuletas com setas, até culminarem junto a uma árvore simbólica. Diz-se que alguma criação contemporânea está desligada do todo e paira nas nuvens, mas esta “experiência de paisagem”, longa e impressiva, é radicalmente térrea — até porque recria o encontro com um cipreste, que de facto aconteceu com Javiera Peón-Veiga, mas na Patagónia chilena. “Finitude e temporalidade perante a eternidade dos elementos naturais”, sugeria o programa e experimentaram muitos dos caminhantes.
De volta a Ponta Delgada, mais dentro do cânone no que a espaços de apresentação diz respeito, houve ainda tempo para espreitar o Karaoke Existencial, de Sofia Caetano, na Galeria Fonseca Macedo (que desde há ano e meio está temporariamente na Rua Manuel Augusto Amaral, prevendo-se que regresse ainda em 2021 ao espaço original, na Rua Guilherme Poças Falcão).
A exposição pode ser vista até ao fim de setembro. Sofia Caetano propôs-se representar e pensar “o impacto das ações e dos objetos produzidos pela espécie humana” e a “toxicidade do mundo contemporâneo”, através de uma instalação pictórica.
O visitante percorre uma casa imaginária e depara-se com pinturas, muitas delas suspensas, de cores sombrias ou garridas sobre um material espelhado. No fundo da galeria, um karaoke convida a cantar frases existenciais escritas pela artista, que mais do que tomar posição levanta perguntas. Sobre os organismos geneticamente modificados, a extinção de espécies, os produtos químicos do dia a dia.
“Liberdade total é um motor do festival”
Por fim Água de Pau, onde a nova peça homónima de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira dá continuidade a um corpo de trabalho da dupla, que resulta muitas vezes em peças irónicas baseadas em investigação histórica sobre hábitos, ícones e outros registos que evocam identidades, nomeadamente as de minorias sexuais. O método e o resultado podem interpretar-se como uma tentativa de contar o desconhecido do ponto de vista dos que não ficaram na história, o que implica a reconstrução de narrativas à luz de valores atuais.
Diz o catálogo do Walk & Talk sobre a peça: “Não existindo consenso quanto à origem do nome da vila de Água de Pau, os artistas propõem uma relação direta entre o nome da vila e a existência de uma nascente que estivesse na origem desse nome.” Lê-se mais: “A intervenção dos artistas consiste numa escultura em bronze feita a partir de um pau de madeira, encontrado numa das visitas que realizaram à vila em fevereiro de 2021, e que se encontra embutida dentro de uma parede. Esta escultura foi transformada em fonte e das duas terminações visíveis na parede, galhos com evidentes semelhanças antropomórficas, sai água como se de duas bicas se tratasse.”
Os dois artistas acompanham uma visita de jornalistas. Água a jorrar à beira de uma estrada, com campo verdejante em volta. João Pedro Vale reflete sobre a peça e diz que esta tem ligação a um projeto recente que fizeram em Lisboa, As Milagrosas Águas de São Bento, que consistia na venda de pequenas garrafas com um líquido transparente em cujo rótulo desdobrável se liam histórias lendárias acerca da origem de águas medicinais na zona de São Bento. Num caso e noutro, há camadas de realidade aliadas a conjeturas.
“Mesmo quando estamos a tentar fazer uma historiografia queer, é difícil encontrar registos”, conta-nos João Pedro Vale. “Aqui em São Miguel há a história de um conde de Vila Franca julgado pela Inquisição por sodomia. Apenas uma história e relativa a alguém das elites. Daí também o interesse em nos aproximarmos da cultura popular, na busca de uma historiografia queer que resgate acontecimentos ou pessoas que não interessou que ficassem na história.”
Como qualquer exumação de factos históricos, também esta, sobre a origem do topónimo Água de Pau, não é pacífica. João Pedro Vale conta que ao longo dos anos a dupla se habituou a colher reações adversas de algum público, o que também aqui poderá ter aflorado — como quando alguém lhes sugeriu que a instalação das esculturas fálicas de bronze poderia ofender a sensibilidade da população, sobretudo as crianças. “Admito que algumas pessoas possam ter pensado que os artistas forasteiros vieram impor aqui a sua escultura. Mas não quisemos impor a nossa escultura, antes ativar um debate em torno da tradição oral que originou o topónimo, para que prevaleçam precisamente as histórias que esta escultura celebra”, explica João Pedro Vale.
Vale e Ferreira são presença assídua — talvez se diga histórica — no Walk & Talk. E por isso, em décima edição, serão capazes de resumir a visão que têm do festival. “É um lugar-comum dizer isto, mas tem sido sobretudo um festival de pessoas. O Jesse e a Sofia perceberam isso desde cedo, daí a liberdade total que dão aos artistas, o que acontece em diversos contextos mas aqui é uma marca, é um motor do festival”, analisa João Pedro Vale. “Os projetos artísticos respondem à experiência dos criadores perante o lugar, perante os Açores. Nem que seja porque a insularidade impõe um acesso mais restrito a alguns recursos. Isso exponencia a vontade de fazer e conduz o pensamento de quem cria.”