“Deixei fluir a memória na ponta da caneta.” É assim que Manuel Alegre explica o livro de memórias que acaba de publicar — não exatamente uma autobiografia, como o próprio diz, mas antes um conjunto de recordações, impressões e relatos de décadas de vida, ditadura e democracia, publicado dias antes do 50º aniversário do 25 de Abril. E foi à boleia da proximidade da data que o socialista deixou, na apresentação desta segunda-feira, um alerta às centenas de pessoas que se juntaram para o ouvir: estes são tempos difíceis para a democracia, que vive um processo de “desconstrução”.
Num auditório cheio da Fundação Calouste Gulbenkian, e com figuras como António Ramalho Eanes, Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, Vasco Lourenço, João Cravinho ou Alberto Martins na plateia, Alegre deixou uma nota de alarme rápida, mas assertiva: “Vivemos um tempo difícil para a democracia, não é época de euforia democrática. Estamos longe do tempo em que Samuel Huntingon considerava o 25 de Abril como o início de uma nova era democrática”.
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Este tempo, sentenciou o histórico socialista, é outro: “Este é o tempo da desconstrução da democracia dentro da própria democracia”, onde a ” extrema-direita, o racismo e a xenofobia” ocupam, agora, lugar. Por isso, e depois de se terem ouvido elogios diversos aos relatos que escreveu, muito focados no tempo da “resistência” em ditadura e da luta pela democracia, Alegre quis apelar a que se reforce “a cultura da memória contra a incultura do esquecimento”.
Os avisos enquadrados no aniversário do 25 de Abril chegaram depois de Alegre ter recordado as “conspirações” em que se viu “envolvido” para derrubar a ditadura — “podem parecer uma loucura”, mas “sem risco não há revoluções nem mudança”; e depois de ter justificado que sempre foi “impaciente”, sem se acomodar ao “pretenso bom senso”, e que cometeu erros por não se “precaver” — viver com esse “sentido de urgência” foi bom para a poesia, mas nem sempre para a política, concedeu.
Ainda assim, falou das suas memórias sem arrependimentos — “se não tivesse vivido o que vivi não teria escrito o que escrevi” — e sempre com o respetivo enquadramento histórico presente. Aliás, a razão pela qual se propôs escrever o livro, contou, foi em “primeiro lugar o prazer da escrita”; em segundo, a vontade de fazer uma “viagem por uma vida marcada pela sua circunstância histórica”, para ser “um testemunho de vida com vidas dentros”. Não o fez para se “justificar” nem deixar “um testamento”, explicou, recebendo longos aplausos de volta.
Ainda assim, depois de ouvir as intervenções de Guilherme d’Oliveira Martins, Isabel Soares e Jaime Gama sobre o livro, Alegre ainda teria uma surpresa que pareceu comovê-lo. Marcelo Rebelo de Sousa, sentado na primeira fila, levantou-se para fazer uma intervenção que não estava no programa da tarde. O Presidente da República lembrou os tempos de ambos na Assembleia Constituinte para de seguida contar a sua experiência recente numa escola em Santarém, onde foi falar com os alunos sobre o 25 de Abril e ouviu uma aluna perguntar-lhe sobre o preâmbulo da Constituição.
“É preciso ver que estamos no contexto de uma nova vaga em termos estudantis muito diversificada”, comentou logo Marcelo. Nesse dia em Santarém, explicou à estudante que Manuel Alegre, “um grande militante político contra a ditadura”, escreveu esse preâmbulo — onde se elogia a “resistência do povo português” contra o “regime fascista” e se promete abrir caminho para uma “sociedade socialista” — e quis escrevê-lo “no contexto em que era elaborada, para que ficasse recordado para o futuro”.
“Não se trata tanto de um debate sobre se é norma programática, tem sempre um valor pedagógico ao longo da história, porque a história dá muitas voltas”, avisou Marcelo. “Naquele momento tinha um determinado sentido, mas é como as normas constitucionais, a letra permanece e o sentido varia. Neste caso é um sentido pedagógico importante”. E com o mesmo sentido pedagógico disse aos estudantes que Alegre foi e é “um resistente”, um “militante”, um “poeta” e um homem com uma “característica muito peculiar, que não é frequente encontrar na poesia como na política: coragem ilimitada, política e física. O que encontramos mais é egos enormes sem coragem. E este ego tem coragem”.
Marcelo seguiu para uma análise à poesia de Alegre, defendendo que além de ser um poeta lírico é um poeta épico, e a prova está “na luta contra a ditadura”: “Nem sempre com os cânones literários adequados, não interessa. Representou para uma parte de Portugal muito significativa uma mensagem épica contra uma ditadura. E escreveu “a épica contra a épica oficial da ditadura — era uma forma de ser épico”.
Por isso, anunciou Marcelo de surpresa, decidiu condecorar Alegre com a Grã-Cruz da Ordem de Camões logo ali. O gesto comoveu Alegre, que se aproximou um instante do microfone só para reconhecer o “gesto inesperado” de Marcelo, prometendo nunca o esquecer: “Para mim é de um especialíssimo significado e de todas as outras condecorações será talvez aquela que mais fundo me toca, dada a minha veneração por Camões”.
As recordações com Soares de um “conservador de bom gosto”
A apresentação de “Memórias Minhas” juntou amigos e companheiros de Alegre de décadas, incluindo no palco. A Guilherme d’Oliveira Martins coube recordar alguns episódios da vida de Alegre, das suas “memórias vivas e intensas” — incluindo o momento em que escreveu “Trova do vento que passa”, depois de ser “perseguido por dois pides” em Coimbra — às “recordações tocantes” ao lado de Mário Soares, incluindo os anos finais de vida deste, durante os quais ambos fizeram as pazes.
Isabel Soares também recordou a relação dos pais com Alegre e as visitas diárias a sua casa; a forma como ouviam clandestinamente a voz do socialista na rádio, a partir do seu exílio em Argel a “anunciar o que se passava neste país e mundo, sem medo e sem censura”; os agradecimentos que Alegre fazia a Soares — “o que seria da minha geração” sem a sua “atitude antifascista” –; a forma como o facto de Alegre ser um “excelente tribuno” ajudou nos grandes comícios durante o PREC; e por fim a “separação” entre os dois, quando decidiram candidatar-se à Presidência da República ao mesmo tempo (em 2006).
“Toda a família foi radicalmente contra a sua apresentação”, disse Isabel Soares sobre a decisão do pai, rematando: “Eu sempre defendi que foram ambos enganados” (e a sala riu-se). “Partilharam décadas de combates e cumplicidade. O que os uniu foi sempre mais importante do que os dividiu”. Como Alegre conta no livro, em 2013, quando Soares “adoeceu gravemente”, pôs o desentendimento de lado e, recordou Isabel Soares, “foi o primeiro a ligar com ternura e preocupação” — a amizade seria “retomada” e ainda organizaram a famosa conferência das esquerdas, na Aula Magna, juntos.
A Jaime Gama coube, segundo a análise do Presidente da República (que não resistiu a comentar rapidamente cada uma das intervenções), a intervenção mais “sofisticada” e cheia de ironia (“exagera a dizer que não é amado pela crítica, ele que tem tido tantos prémios e doutoramentos Honoris Causa”, atirou Gama).
“Com razão, [Alegre] pensa que contribuiu, e de maneira decisiva com a criação de uma cultura de resistência e de valores, para o 25 Abril. É um homem da História de Portugal“, disparou Gama, numa intervenção contra a “desconstrução da História” e com elogios a Alegre por “nunca se deixar dissolver na anti-História de Portugal” nem ceder na questão dos Descobrimentos.
Por Gama, Alegre foi retratado assim: “Um progressista, mas também um conservador de bom gosto“, que gosta de “tiro, pesca, caça, mulheres” e não deixa de “revelar essa contradição, resolvida ou não resolvida”. Um “radical”, mas que está sempre norteado pela “necessidade de uma reconciliação e de paz”. E um homem que conserva o “amor ao país, à pátria, e à língua e à poesia”. A sala pareceu concordar.