Um carrinho de golfe acelera na nossa direção. “Entraram pelo lado errado”, diz-nos, num inglês exímio, o funcionário que o conduz. Desculpamo-nos com o Uber, que nos deixou naquela que está indicada no mapa como a entrada principal do complexo que se estende por 500 mil metros quadrados. Mais ou menos 80 campos de futebol. À primeira vista é difícil perceber onde termina. “Parece um aeroporto”, ouvimos à chegada. Mas é um museu. Oficialmente, ainda não foi inaugurado e ninguém se atreve a arriscar uma data. Quando abrir, finalmente, as portas, o Grand Egyptian Museum (GEM) vai ser um dos maiores museus do mundo. Será mesmo o maior dedicado à arqueologia. Para já, é apenas um edifício impressionante.
“No interior do museu só é permitido tirar fotografias com smartphones.” Fomos avisados da limitação quando combinámos a visita e, à entrada do museu, lá estava a placa a confirmar: “no camera”. Mas trazíamos a câmara na mala e, por isso, a primeira divisão do GEM que ficámos a conhecer foi a sala de segurança.
Ultrapassadas as barreiras de localização e bagagem, juntámo-nos, por fim, à visita guiada das 16h00, a última do dia. Contexto: o GEM ainda não abriu mas está a fazer o que se chama de “soft opening”. Que é, basicamente, uma fase de testes em que recebe grupos limitados de visitantes que, acompanhados por um guia, veem o que há para ver (que não é muito). Note-se que já depois da visita do Observador abriram, também neste regime experimental, as galerias do museu. O bilhete custa perto de 20 euros. Um bom termo de comparação é o valor da entrada no complexo das pirâmides, que custa cerca de metade.
De auscultadores nos ouvidos, suporte de áudio ao pescoço (em troca do passaporte que fica retido até à devolução do aparelho) e um ligeiro atraso, começamos a seguir a guia Gina (que não quis revelar o apelido). O grupo é composto por cerca de 25 pessoas cujo aspeto de turistas estrangeiros não engana: são mesmo turistas estrangeiros. E é fácil impressionar turistas à entrada do GEM. Ainda do lado de fora, está o único obelisco suspenso do mundo, em cima de um pedestal construído de propósito, que vai permitir olhar para o interior da estrutura. Lá dentro está o “cartucho” que corresponde à assinatura de Ramsés II e que esteve “escondido” da vista dos mortais por meros 3500 anos.
Já dentro do museu, o comité de boas-vindas foi entregue a uma estátua do omnipresente Ramsés II, com onze metros de altura e também mais de três mil anos de antiguidade, que chegou a morar à frente da principal estação de comboios do Cairo. Agora foi colocada numa espécie de ilha com água a toda a volta, que representa o momento da criação. Feita a devida restauração, Ramsés II é agora o guardião do Grand Hall do GEM. E é junto àquele que se diz ter sido o faraó mais poderoso do Antigo Egipto que ouvimos o primeiro “uaaaau” coletivo.
A história deste “uaaaau” começa longe do GEM, em Abu Simbel, junto à fronteira com o Sudão, onde existem dois enormes templos esculpidos nas rochas. O maior dos dois retrata, precisamente, Ramsés II. Foi construído de forma a que todos os anos, a 22 de outubro, dia que seria o aniversário do rei, e a 22 de fevereiro, que terá sido o dia da sua coração, a luz do sol ao nascer incida diretamente no rosto da estátua do faraó que está no interior do templo. E o que é que isto tem que ver com o novo museu?
Quem olha para a fachada de alabastro sobreposta por um triângulo de lajes com hieróglifos gravados (os chamados cartuchos, onde se escreviam os nomes dos reis no Antigo Egito), vê que, mais ou menos a meio, foi deixado um espaço vazio. A pequena “janela” serve, precisamente, para que a 22 de outubro e 22 de fevereiro, a luz do sol entre no museu e incida no rosto da estátua de Ramsés II. O “uaaaau” é justificado.
Impressionados os turistas, a visita prossegue pela Grande Escadaria do museu. No futuro, há-de conduzir às galerias que vão guardar os tesouros do Antigo Egito. As tais que desde meados de outubro estão abertas a um número limitado de visitantes. A ordem de visita das galerias será cronológica: primeiro a pré-história, depois o Império Antigo, o Império Médio, o Império Novo, a Época Baixa e, por fim, o Império Romano. São, ao todo, mais de três mil anos de história. Haverá ainda uma grande galeria dedicada em exclusivo ao rei Tutankhamon, e essa, garante o museu, só estará aberta ao público depois da inauguração oficial do GEM.
Até lá, a famosa máscara funerária dourada, bem como os artefactos encontrados em 1922 no Vale dos Reis pela equipa do arqueólogo inglês Howard Carter, vão continuar expostos no velhinho Museu do Cairo. Mas o GEM promete mais do que a atual sala acanhada e abafada da Praça Tarhir. Vai ter, mais de 100 anos depois da descoberta, a coleção completa de Tutankhamon. O mesmo é dizer que vai ser possível ver pela primeira vez os cerca de cinco mil artefactos encontrados no túmulo. No museu antigo só um terço dos objetos retirados do Vale dos Reis chegaram a ser expostos. O objetivo do GEM é fazer um retrato completo da época em que viveu o jovem faraó que subiu ao trono com nove anos.
Mas para isso o público ainda vai ter de esperar. Não há qualquer previsão para a data de abertura do GEM, e o ligeiro enfado que a guia Gina revela quando dá essa resposta deixa antever quantas vezes por dia tem de ouvir a pergunta. Não deixa de ser natural que os visitantes a façam.
O projeto do GEM é uma espécie de obra de Santa Engrácia do Egito. A primeira ideia surgiu nos anos 90, quando se tornou óbvio que o edifício da praça Tahrir não era suficiente para receber sete mil visitantes diários. O Governo garantiu um empréstimo, na altura, de 950 milhões de dólares para a construção do museu, que foi concedido pelo Japão. A primeira pedra foi colocada em janeiro de 2002 pelo então presidente Hosni Mubarak e no ano seguinte seria lançado o concurso para o desenho do projeto, supervisionado pela UNESCO e pela União Internacional de Arquitetos (UIA).
Participaram cerca de 1.150 arquitetos de 83 países e no final quem levou o ouro foi o atelier Heneghan Peng, com sede em Dublin, na Irlanda, que conta no portfólio com obras como o Museu da Palestina em Birzeit, O edifício deveria ter ficado concluído em 2009. O que aconteceu nos últimos 15 anos que justifique tamanho atraso? Além dos constrangimentos habituais numa obra megalómana, o projeto ficou “encravado”, primeiro, por causa da Primavera Árabe – a onda de protestos contra governos autoritários que “varreu” o Médio Oriente, Egito incluído, entre 2010 e 2012. A instabilidade que se seguiu no país não contribuiu para que a obra do GEM avançasse mais depressa e em 2016 o governo pôs um militar a comandar o projeto (que se mantém até hoje). Em 2020, a pandemia de Covid 19 e a crise económica provocada pela falta de turismo voltaram a travar o avanço da obra. Agora, aos poucos, vai.
“Este é muito mais impressionante do que o museu antigo”, diz ao Observador Adjani Morani, que veio com mais dois amigos visitar o GEM. “Mas o conteúdo está no outro. Este é só um edifício bonito”, completam Claus Luz e Ema Ribeiro. Estão temporariamente a trabalhar no Egito, no setor bancário. Lamentam que quando o museu for finalmente inaugurado, Adjani já terá voltado para Angola, e Claus e Ema estarão de regresso ao Brasil.
O edifício está praticamente pronto, explica Gina. Até já recebeu a festa de casamento de um multimilionário das tecnologias com uma “guru” do fitness e antiga estrela de wrestling. O grande esforço que está por concluir é o transporte dos objetos do Museu do Cairo, e de outras localizações, para Gizé. Pedimos para nos darem uma ideia do que já está feito. “Mais de metade?”. “Mais de 30%”, responde a guia. São, de facto, muitos artefactos para transportar. Concretamente, mais de 50 mil. Destes, uns 30 mil nunca foram mostrados ao público. Não há número relativo ao GEM (e à história do Egito, já agora) que não nos faça sentir pequeninos.
Sendo certo que o museu vai ser a grande atração turística, o projeto do GEM junta-lhe um marco da arqueologia mundial. Mesmo com o museu a menos de meio gás, nas instalações já está a funcionar um dos maiores centros de conservação arqueológica do mundo. O objetivo é manter no Egito o estudo dos artefactos que são provenientes do Egito. E, pelo meio, produzir pelo menos 20 papers todos os anos sobre a história, preservação e restauração dos objetos. Dez metros abaixo do solo, em condições muito específicas de humidade, temperatura e exposição à luz, trabalham 144 conservadores e investigadores em 17 laboratórios.
Além do rei ‘Tut’, que ocupa grande parte do tempo dos investigadores, há outro futuro ex-libris do GEM que ainda está em processo de recuperação. A barca solar, uma estrutura de 42 metros que foi descoberta em 1954 junto à grande pirâmide de Gizé, vai ter o seu espaço próprio no GEM. Estima-se que tenha pelo menos 4.500 anos, o que faz dela o barco mais antigo do mundo, e conta quem já a viu (até porque já esteve exposta junto à grande pirâmide) que está num estado de conservação “espetacular”. Quando foi encontrada, desmontada em mais de 1200 peças, foram precisos 14 anos para voltar a pô-la de pé. A mitologia conta que a barca servia para transportar o faraó pelo céu após a morte. Na idade contemporânea, foi levada muito devagarinho e numa caixa de metal construída de propósito, em 2021 para o GEM, num evento que demorou um dia inteiro e foi transmitido em streaming.
Gina vai parando ao longo da Grande Escadaria que, explica, “simboliza a jornada dos faraós até à eternidade”. Dezenas de estátuas de reis e rainhas de várias dinastias alinham-se ao longo dos 108 degraus, intercalados por patamares estudados para os visitantes se sentarem em contemplação e para os guias debitarem os seus conhecimentos sobre reis, rainhas, gravuras, tronos, túmulos e rituais. O faraó preferido de Gina é Tutemés III. “Foi no reinado dele que se trouxeram as galinhas para o Egito. Por isso é que gosto dele. Gosto de frango”. O último patamar é a parte mais fúnebre da experiência. É onde estão os sarcófagos que guardavam para a eternidade os corpos dos faraós, explica a guia, que faz questão de esclarecer que “ao contrário do que alguns dizem, tinham uma altura normal, não eram anões”.
Do topo da escadaria vê-se o prémio da montra final. E aquela que será a maior vantagem do GEM em relação ao edifício que vai substituir (talvez depois do ar condicionado). O velhinho museu do Cairo, inaugurado em 1902, fica em plena Praça Tahrir, na movimentada capital egípcia. O GEM foi construído a menos de dois quilómetros em linha reta das pirâmides de Gizé. E sim, tem vista para a única maravilha do mundo antigo que ainda sobrevive. Quando o projeto de reabilitação desenhado para a cidade de Gizé estiver completo – as previsões iniciais apontavam para 2030 mas a meta é totalmente irrealista – vai ser possível percorrer a pé uma avenida que ligará as antigas pirâmides ao moderno museu. Para já, só dá para ter uma ideia do que será aquela área no futuro através da maquete que está em exposição no GEM.
O projeto da “nova Gizé”, ou Giza Vision 2030 de seu nome oficial, vai incluir, além da ligação do GEM às pirâmides, uma zona de hotéis, um Museu da Esfinge e uma avenida de 8 quilómetros coberta por uma linha de monocarril. É suposto que toda a zona que envolve as pirâmides seja recuperada e transformada numa “Vila da Esfinge”, pensada não só para os turistas mas também para as milhares de pessoas que lá vivem, atualmente com poucas condições de salubridade. Haverá um aeroporto a 20 minutos do complexo, um heliporto, uma linha de metro e um centro para visitantes que vai substituir as rudimentares bilheteiras das pirâmides. Um projeto a muito, muito longo prazo, portanto.
No complexo do GEM propriamente dito, haverá um museu só para crianças, um centro de exposições temporárias, uma biblioteca e um centro educativo. Vão nascer espaços para escritórios, um auditório, um centro de conferências, três jardins e restaurantes de luxo. Para já, é possível ter um vislumbre do que será a parte comercial e fazer compras nas habituais lojas (a preço de turista estrangeiro).
Mesmo antes da tour terminar, já com as pirâmides ao fundo, Gina conta ao grupo o mito de Osíris, o “deus bom” traído pelo irmão Seth que, por ciúmes, matou-o, cortou o corpo em 14 pedaços e espalhou-os pelo Egito. Ísis, mulher de Osíris, voltou a reuni-los e ressuscitou aquele que viria a ser o deus dos mortos. A guia olha para a maquete onde se vê o futuro e proclama-se “orgulhosa” e “feliz”. Tem esperança de que o GEM, e tudo o que vai rodeá-lo, contribua para “preservar a herança do Egito” e ajude a reconstruir, um pedaço de cada vez, a perceção que o mundo tem da sua história recente, e a vê-lo como um país que sabe tomar conta do seu património. “O Egito merece um museu como este”.