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Entre Helsínquia e Kiev, a ficção de Sofi Oksanen sobre a verdade de uma barriga de aluguer

Com "O Parque dos Cães", Oksanen vai tendo uma dupla lente: a do aproveitamento do leste pelo ocidente e da secundarização social das mulheres, com eventos históricos que garantem drama à narrativa.

Sofi Oksanen é uma autora finlandesa que tem vivido entre a Finlândia e a Estónia. O parque dos cães é o seu segundo livro publicado em Portugal, seguindo-se a A purga, ambos publicados pela Alfaguara. Fora estes, escreveu mais três romances e duas peças de teatro. Nascida em 1977, Oksanen estudou literatura nas universidades de Jyväskylä e Helsínquia, e arte dramática no Teatro Academia de Helsínquia. A sua primeira novela, Stalinin lehmät (“As vacas de Estaline”), publicada em 2003, que versa sobre a herança comunista na Estónia, granjeou-lhe reconhecimento internacional. No seu percurso, conta com os prémios Femina e de Literatura do Conselho Nórdico.

A purga, com que a autora foi apresentada ao público português, já apresenta grandes méritos, tanto em termos de construção de personagens como em termos dos elementos sociais integrados na narrativa. Ao invés de paisagem, estes são elementos constitutivos – internos – da narrativa. Virá a passar-se o mesmo com O parque dos cães.

Num e noutro, os quadros familiares, as situações individuais das personagens, já apresentam um status quo. E não é que cada personagem – Aliide em A purga ou Olenka em O parque dos cães – funcione como resumo de uma identidade colectiva ou representação tácita de uma comunidade. Pelo contrário, as personagens estão traçadas com força psicológica e credibilidade. A situação em que vivem é que, mais do que dependente de uma determinada condição social do espaço delimitado em que se encontram, reflete sem dificuldades pontos históricos sonantes, assim como relações de força entre países. O que a priori poderia ser mostrado como o plácido quotidiano está imbuído do pano de fundo a que o correr dos dias não pode ser indiferente. Ao invés disso, molda-o. Os eventos históricos, assim, contribuem, nos eixos do romance, para o fio condutor do desenvolvimento das personagens, num gesto que traz carga dramática e tensão às narrativas.

O parque dos cães, que aqui tratamos e cujo original (“Koirapuisto”) é de 2019, foi publicado em Portugal em Março com tradução de Ana Maria Pereirinha. No romance, o leitor mete-se entre dois mundos. Por um lado, há a capital finlandesa da actualidade. Por outro, temos a Ucrânia pós-independência, depois do colapso da União Soviética.

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Título: “O parque dos cães”
Autora: Sofi Oksanen
Tradução: Ana Maria Pereirinha
Editora: Alfaguara
Páginas: 424

Em conversa com o Observador, a autora finlandesa afirmou que o seu processo de escrita parte de uma ideia vaga. Daí, neste livro, partiu para o desejo aumentar o interesse por tópicos relacionados com a Ucrânia:

“Primeiro, vem uma ideia muito vaga de algo coisa que falta no discurso público. Como um ponto cego que precisa de atenção. Em O parque dos cães, isso foi em parte a Crimnésia – a amnésia ocidental sobre a ocupação da Crimeia. A Crimeia foi ocupada pela Rússia e, depois de algumas chatices, as relações com a Rússia continuaram praticamente como antes, apesar de algumas sanções patetas. Na Finlândia, a Fortum, a maior empresa energética do norte, continuou a pôr todos os ovos no mesmo cesto, que é a Rússia, e continuou todos os novos contratos com o país. A reacção ocidental foi uma reprimenda, nada mais.

Ao mesmo tempo, estava à espera de que os editores finlandeses começassem a publicar autores ucranianos. Sempre que um certo território se torna um lugar de conflito, os editores começam a publicar livros relacionados com a região. Mas na Finlândia nada aconteceu no mundo dos livros, à excepção de alguns poucos livros sobre a Ucrânia escritos por autores finlandeses, mas ninguém estava a publicar autores ucranianos ou ficção ucraniana. O interesse pela cultura ou pela história da Ucrânia não aumentou.

Por isso, depois de me fartar de esperar, pensei que precisava de escrever alguma coisa sobre isso e que, por escrever sobre a Ucrânia, podia pelo menos aumentar o interesse por tópicos relacionados com a Ucrânia.

Já estava há muito tempo à procura de uma história relacionada com aqueles que deixaram a Estónia depois de o país ter reconquistado a sua independência: pessoas que se mudaram para a Estónia soviética e depois partiram. Quando finalmente decidi escrever sobre a Ucrânia, percebi qual era a ligação que procurava: ia escrever sobre uma rapariga ucraniana nascida numa família russo-ucraniana na Estónia soviética. Esse tipo de família não era incomum.

O deslocamento livre não era possível na União Soviética. Em vez disso, a política de deslocamento de Estaline era uma política rigidamente controlada para consolidar o domínio soviético, apagar as culturas nacionais e construir o homo sovjeticus. Essa política foi a razão pela qual os pais de Olenka acabaram por trazer a família para Tallin.”

"O mercado internacional permite situações absurdas em que uma pessoa condenada por abusar de crianças possa encomendar uma criança numa clínica de fertilidade noutro país. Há casos em que crianças nascidas nestas circunstâncias desapareceram. Também devem ser garantidos às mães e às dadoras cuidados de saúde apropriados após o nascimento do bebé, preferencialmente para o resto da vida. Mas, claro, isso aumenta os custos.”

No meio da narrativa, há duas mulheres que, no centro de um conflito global, sentem na pele as lutas de poder tanto entre países como entre sexos. Em causa está o corpo feminino: tendo capacidade de gerar vida, têm capacidade de gerar lucro. Nada disto, convém dizer, servirá no romance para lhes atribuir o papel de vítimas sem hipótese de reviravolta. E no meio disto, está o cerne, o que interessa no romance, potenciando-o, criando-o: o Leste como fonte de satisfação das necessidades ocidentais. Sobre isso, diz-nos a autora:

“Pagar uma taxa não desumaniza ninguém. Mas a taxa deve ser justa e não deve querer dizer que tudo é possível. (…) Claro que estou a definir a maternidade de substituição como um trabalho como os outros, e a questão em aberto é se deve ser definido assim. Pelo menos, os deveres das barrigas de aluguer e das dadores seriam mais claras. Há muitas coisas que não deviam ser possíveis mesmo que a dadora ou a barriga de aluguer sejam pagas. Por exemplo, não acho que os que desejam ser pais devam ter o direito de ordenar um aborto a uma barriga de aluguer contra a sua vontade, por valor nenhum. Isto inclui gémeos e trigémeos. Além disso, se houver um divórcio a meio do processo, isso não devia significar que ficassem livres da sua responsabilidade parental perante a criança por nascer.

Deve também haver uma análise prévia. O mercado internacional permite situações absurdas em que uma pessoa condenada por abusar de crianças possa encomendar uma criança numa clínica de fertilidade noutro país. Há casos em que crianças nascidas nestas circunstâncias desapareceram. Também devem ser garantidos às mães e às dadoras cuidados de saúde apropriados após o nascimento do bebé, preferencialmente para o resto da vida. Mas, claro, isso aumenta os custos.”

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No centro de O parque dos cães, temos Olenka, uma mulher ucraniana que, em 2016, vive em Helsínquia, Finlândia. Ao longo da narrativa, a cidade funcionará como contraponto a certo leste e funcionará como contraponto em que se respira. Ainda assim, a sua circunstância deu uma cambalhota: em 2006, Olenka usava casacos de pele, vivia num apartamento luxuoso, lucrava com a indústria de fertilidade. Dez anos depois, a vida parece ter caído, e Olenka trabalha em limpezas. Ainda assim, Helsínquia representa o espaço para ter espaço, uma vez que a personagem se sente escudada do seu passado. E a narrativa abre com isto: Olenka num banco vê um casal com duas crianças. Uma estranha aproxima-se, julgará ela. Mas, em vez de uma estranha, é Daria, uma figura do seu passado na Ucrânia. Com a sua chegada, vem o passado em catadupa, a vida numa agência de fertilidade que agia às margens da lei. O romance, à medida que é tecido, vai mostrando ao leitor a forma como os caminhos de ambas se cruzaram.

Percebe-se que a ideia de Oksanen é dar ao livro um cunho de thriller. Assim, a prosa, que não tem grandes floreados, vai mostrando em simultâneo uma indústria de exploração, e aqui convém dizer que tal existe em dois lados. Por um lado, há a exploração dos corpos de mulheres férteis, com tudo o que estas possam ter a oferecer ou, melhor dizendo, vender: beleza, juventude, bons antecedentes, boa proveniência e, claro, bons óvulos. Para que estes sejam extraídos, o processo físico de preparação é pesado, com estimulação hormonal que sobrecarrega os ovários, provoca dores, cria desequilíbrios hormonais e, consequentemente, emocionais.

O processo físico de extracção em si também é pesado, relativamente invasivo, sendo necessária anestesia e repouso. Não raras vezes, há as dores que a hiperestimulação ovárica e as picadas de extracção dos óvulos criam. Noutro sentido, a exploração por parte das clínicas do desejo de parentalidade, com preços abusivos, que esticam ao máximo a possibilidade orçamental. Daí que a vida de Olenka vá mudando. Não vindo de nenhum lugar abonado, só na entrevista de emprego soube de que se ia tratar aquilo: doação de óvulos e possibilidade de funcionar como barriga de aluguer. Depois de grande sucesso como dadora, é então promovida a coordenadora da agência. A partir daí, vai começando a construir riqueza. Como as mulheres são baratas mas os pagamentos à agência são de somas avultadas, a carne lá vai enchendo o canhão. Parte interessante do romance será a caracterização de Olenka, que nem aparece com vítima nem como carrasco. Pelo contrário, tem múltiplas dimensões, sendo ao mesmo tempo redentora e culpada.

No cerne, temos o papel de secundarização atribuído às mulheres há muito tempo, sobejando-lhes o seu aspecto mercantil: as mulheres funcionam aqui como fábricas de bebés para quem pode pagar o usufruto, independentemente dos custos para a sua saúde física ou mental. Assim, Oksanen vai tendo uma dupla lente: a do aproveitamento do leste pelo ocidente e da secundarização social das mulheres.

Ao longo da leitura, nota-se, claro, a exploração das dadoras. São elas que permitem a gravidez, malgrado o peso nos seus corpos. E são elas o mais valioso, sendo, ainda assim, tratadas como máquina a ser usada até à exaustão. E, acima de tudo, como coisa a poder ser usada para a satisfação de um desejo alheio – e é aqui que se vê a dissonância entre leste e ocidente, estando o segundo a servir-se, com o seu maior poder económico, das necessidades do primeiro. No cerne, temos o papel de secundarização atribuído às mulheres há muito tempo, sobejando-lhes o seu aspecto mercantil: as mulheres funcionam aqui como fábricas de bebés para quem pode pagar o usufruto, independentemente dos custos para a sua saúde física ou mental. Assim, Oksanen vai tendo uma dupla lente: a do aproveitamento do leste pelo ocidente e da secundarização social das mulheres.

Em termos de estrutura, o romance não aguenta a mesma coesão até ao fim. De início, o leitor salta com clareza entre a Finlândia e a Ucrânia, mas, após o tracejado geral do enredo, os saltos começam a ficar mais fuscos, com demasiados saltos, com fragmentos biográficos que nem sempre importam ao fio condutor (antes à formação de uma narrativa que queira, mesmo à força, blindar os pontos), e ainda com descrições detalhadas da situação política que já vão além da contextualização da acção e da constituição dos eixos narrativos. Em vez disso, a dada altura, a insistência nisto já vai funcionando mais como uma forma de justificar o romance. O drama todo em torno da doação de óvulos – meros gâmetas – parecerá exagerado, mas o mesmo não se passará com a questão das barrigas de aluguer, cujo peso em cima de quem leva a gravidez avante é superior.

O romance lê-se de forma escorreita, estando em cima da mesa temas que ficam paredes-meias entre concepções de moral e comercialização. As personagens são credíveis e o pano de fundo nunca deixa de estar em primeiro plano.

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