O Programa Leite Escolar faz 40 anos e muitos milhões de crianças beberam leite oferecido pelas escolas. Se se lembra dos pacotinhos distribuídos na escola na sua infância, pode sentir alguma nostalgia. O programa Leite Escolar começou oficialmente no ano letivo 1977/1978. Até aí, o leite em pó era distribuído às escolas que o reconstituíam. Como havia ainda grandes problemas higiénicos e falta de água potável em muitos locais, em 1977 o leite passou a ser distribuído em pacotes aos alunos. Era apenas leite. O chocolate foi adicionado em 1981. No relatório “A evolução do sistema de refeições escolares em Portugal (1933-2012)”, a equipa de investigadores explica que, entre 1982 e 1984, por motivos financeiros, passou a ser novamente leite simples e registou-se uma quebra no consumo. Assim foi de cada vez que o leite era sem chocolate.
Em 1986, Portugal entra para a CEE, que passa a financiar o leite escolar, como forma de ajudar a indústria leiteira. O leite passa a ter de cumprir algumas regras: um pacote de 200 ml só pode ter 1,5% de gordura, 0,6% de cacau e 7 gr de açúcar. Mesmo assim, há quem ache que não devia ter nenhum.
“Obrigados a beber leite com chocolate na escola?”
Sandra Rodrigues é mãe de três crianças. Quando a filha do meio entrou no 1.º ciclo no Centro Escolar Solum Sul, do agrupamento Eugénio de Castro, em Coimbra, encontrou algo que não esperava. “Nas pessoas com quem mais lido, os miúdos não estão habituados a leite com chocolate e começam a bebê-lo no jardim de infância e na escola. Não faz sentido. Os meus filhos não gostam de chocolate e não bebem coisas com açúcar. Fazia-me confusão como é que eles eram obrigados a beber leite com chocolate na escola”, conta.
10 milhões
No ano letivo de 2015/2016, foram distribuídos aos alunos do ensino pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico público 48 094 641 pacotes de leite, quase 10 milhões de litros (9 907 496). Os dados são do Ministério da Educação, que não especifica qual a percentagem de leite com chocolate e de leite simples.
Fez-lhe tanta confusão que acabou por levantar o problema a quem podia fazer algo. Até hoje, esta mãe não sabe se foi por pressão de vários pais ou da associação de pais, mas na escola passou a haver a opção de beber leite simples. Sandra explica que “há mais meninos a beber leite simples do que com chocolate. Na sala da minha filha mais nova, mais de metade das crianças bebe leite simples. Deixou de se questionar”. Agora, os pais escolhem de que tipo de leite os filhos bebem e “é tudo pacífico”.
“Leite escolar com chocolate não é saudável”
Este é um tema que deixa Júlia Galhardo de cabelos em pé. Ela é pediatra e a responsável pela consulta de obesidade do Hospital de Dona Estefânia. É uma das defensoras de que o leite escolar deve ser só isso: leite. “Se eu tenho uma escolha saudável e uma escolha não saudável, mas que é mais palatável, os miúdos são crianças, não é? Não sabem se faz bem ou se faz mal. Sabem se sabe melhor ou se não sabe tão bem. Se só houver leite simples é desse que eles bebem. Eu chamar-lhe-ia a escolha saudável”, defende.
O leite escolar respeita algumas regras e tem menos açúcar e chocolate do que o comercializado. Mas, para Júlia Galhardo, ter menos açúcar não faz do leite escolar com chocolate um alimento saudável. E explica porquê. “Essencialmente, o chocolate em si é gordura, não é açúcar. O cacau é gordura e é amargo. Leva açúcar para ser palatável e ser chocolate. O principal problema do chocolate é a gordura, apesar de também ter açúcar acrescentado.” Reduzir o açúcar é melhor do que não o fazer. Mas, para esta pediatra, o ideal era não ter nenhum adicionado. “Porque é que há de ter açúcar, se o leite tem açúcar que é a lactose? ”, questiona.
Vacas produzem leite com chocolate?
E tem mal beber leite com chocolate de vez em quando? “Se me disser assim: tem algum mal numa festa de anos ou na festa do avô ou da avó o leite ser com chocolate? Não. O problema é que transformámos todos os dias em dias de festa. ” E o leite escolar é distribuído todos os dias.
Júlia Galhardo salienta outro problema de haver leite escolar com chocolate: criação de hábitos. “Habituamos os miúdos a beber leite com chocolate, com sabor a baunilha, com sabor a morango, com sabor a várias coisas. Qual é que é o problema do sabor do leite? Porque é que os miúdos já não podem beber leite que saiba a leite?! Porque é que não podem beber água que não tenha sabor?! A água tem de saber a qualquer coisa e o leite tem de saber a qualquer coisa. Não faz sentido!”
Esta médica confronta-se todos os dias, nas consultas, com questões que podem parecer absurdas para alguns: crianças que acham que o leite já vem com chocolate das vacas ou que não bebem leite sem açúcar.
Para combater este hábito do paladar e no próprio conhecimento das crianças, esta médica sugere alternativas mais saudáveis: “Porque não fazer um batido em casa, usando a varinha mágica ou um liquidificador? Pode pôr morangos, banana, maçã ou pêra ou um bocadinho de canela.”
Júlia não se preocupa se as crianças deixarem de beber leite por a única opção ser leite branco. “Se não se gosta de leite, que se comam iogurtes. E se não gostar, qual é que é o problema? Nós não somos dependentes do leite. Se o resto da alimentação for cuidada, qual é que é o problema?”
Cada escola faz como entende
Neste momento, não há nenhuma orientação do Ministério da Educação para que as escolas encomendem apenas leite branco. Isso mesmo foi confirmado por Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas. O Observador pediu uma entrevista ao Ministério, mas não foi concedida. Apesar da falta de orientação por uma opção que seria mais saudável, há muitas escolas que já têm dos dois tipos de leite e ainda o leite sem lactose, que passou a ser obrigatório distribuir às crianças intolerantes.
Apoio europeu
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O leite escolar continua a ser apoiado pela União Europeia e pelo Ministério da Educação. O subsídio europeu é de 18,15€ por cada 100 kg de leite. O leite tem de ser adquirido localmente e ser produzido na UE. Todos os dias, as crianças do ensino pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico público bebem leite escolar. São crianças com idades entre os três e os nove anos.
Nos Parceiros, junto à cidade de Leiria, há leite com e sem chocolate. Joana Sousa tem uma filha no 3.º ano. Ela explica que “no início do ano letivo, na reunião com os pais a professora informou que haveria a possibilidade de escolher com ou sem chocolate”. Ninguém obriga as crianças a beber leite se os pais não quiserem. “A minha filha não bebe porque não se sente bem com o leite e a professora explicou que se alguém deixar de beber, esse leite vai para quem tiver mais necessidade”, explica. Numa escola da zona de Penela, no interior do distrito de Coimbra, o sistema é semelhante: “Até há uns anos só havia leite com chocolate. Entretanto começou a ser servido leite branco e leite com chocolate”, conta a mãe Rosa Luís. A opção é feita pelos pais no início do ano letivo, mas pode ser alterada. Algumas das crianças precisam deste leite para se alimentar.
Já na Bobadela, concelho de Loures, só há um tipo de leite. Uma professora explica que “dão leite com chocolate, todos os dias, exceto quando o stock acaba”. Não se lembra de os pais pedirem leite simples. Quem quer outro ou não gosta, leva lanche de casa. De qualquer forma, quem bebe tem de o fazer na escola e pode beber mais do que um por dia. Os alunos com escalão A de ação social escolar, os mais carenciados, “costumam ter o lanche dado pela escola e aí o lanche vem com leite branco, sumo, ou leite de soja se for solicitado. E mesmo assim podem beber o leite achocolatado da escola”.
Leite escolar ainda mata fome
Os agrupamentos de escolas são responsáveis por encomendar o leite escolar de que necessitam tendo em conta as necessidades. Filinto Lima explica ao Observador: “Tenho x alunos e calculo x pacotes por aluno e para uma certa época, tendo em conta que tenho de guardar num local fresco e seco e depois encomendo.” O diretor explica que o concurso é feito pelo próprio estabelecimento. “Convidamos três entidades a apresentar um caderno de encargos e depois decidimos qual escolher.” No agrupamento escolar que dirige, em Vila Nova de Gaia, encomenda-se leite simples, leite com chocolate e leite sem lactose. Nos dois primeiros casos, “a encomenda é feita com base nos gostos dos alunos”, explica a técnica de ação social do agrupamento Costa Matos, a escola de Filinto Lima. Os pais podem dar indicação acerca do leite que os filhos devem beber. Mas o diretor explica que, na maior parte dos casos, são as próprias crianças quem escolhe qual quer beber. E sendo assim, a maior quantidade de leite é com chocolate, o mais solicitado. Apesar disso, “há crianças que não gostam do leite com chocolate e outros que trazem de casa leite com chocolate porque o leite escolar com chocolate não tem o mesmo sabor. Tem menos açúcar e menos chocolate e eles não gostam”.
Quando o Programa Leite Escolar começou, as carências alimentares eram muitas e atingiam uma grande parte da população. Hoje o cenário é diferente. Mas, mesmo assim, há muitas crianças que dependem do leite escolar. É a experiência de Filinto Lima. “Há crianças que chegam à escola sem tomar o pequeno-almoço e pedem o leitinho. Podem tomar de manhã e à tarde. E aqui a Câmara de Gaia também oferece aos alunos do pré-escolar e do 1.º ciclo um pão de manhã e a quem fica até mais tarde um pão e iogurte ou fruta”, explica.
Contradições do sistema
No Despacho n.º 7516-A/2016, de 2 de junho de 2016, o Ministério da Saúde definia que tipo de alimentos podiam ser vendidos nas máquinas de venda automática dentro de hospitais e centros de saúde. Rissóis, batatas fritas, chocolates, gomas ou rebuçados foram proibidos. Definia-se também que se deviam “disponibilizar preferencialmente” o “leite simples meio-gordo/magro, iogurtes meio-gordo/magro, preferencialmente sem adição de açúcar”.
Na década de 2000, foram estabelecidas regras gerais de alimentação para todas as escolas. Entre os alimentos que devem ser promovidos está o leite meio-gordo ou magro, simples ou aromatizado, sem adição de açúcar e o leite escolar. Parece ser contraditório, tendo em conta que este último pode ter açúcar e chocolate, mesmo que em quantidades inferiores ao comercializado.
Júlia Galhardo insurge-se: “Aqui não há coerência. É uma questão de saúde pública e um aspeto educacional da população, e de as pessoas perceberem o que é saudável e o que não é. Temos de estar todos a tocar na mesma orquestra. Se uns tocam desafinados, ninguém se entende.”
O Ministério da Educação parece ter uma visão diferente. Em esclarecimentos enviados por email, considera que “o Programa Leite Escolar se insere num conjunto de apoios alimentares que visam promover hábitos alimentares saudáveis, promover o sucesso escolar e educativo das crianças, o seu desenvolvimento equilibrado e a promoção da saúde”. A tutela salienta a “perspetiva pedagógica e de promoção da saúde dos apoios alimentares, disponibilizados pela escola no âmbito da Ação Social Escolar”. Como não foi possível realizar a entrevista, ficou por saber se o Ministério da Educação pondera, à semelhança do Ministério da Saúde, privilegiar o leite simples e como responde às críticas de que o leite escolar com chocolate não é uma opção saudável.