Muito enganado está quem anda nesta vida à espera que os Glockenwise deem um passo expectável. Para quem gostou de Plástico, o quarto álbum de originais lançado em 2018, e quer mais do mesmo, o melhor é desistir de pegar em Gótico Português. Porém, caros leitores, permitam-nos que vos lancemos o desafio de se abrirem à bizarria e mergulharem neste disco que se dá a ares de desencanto, mas que, na verdade, é uma ode à energia vital que caminha pelas margens.
E que margens são estas? Nuno Rodrigues, vocalista da banda nascida das garagens de Barcelos, como tantas oficinas de olaria deste que é um dos concelhos mais jovens do país, explica que não são margens de nenhum sítio em específico, mas de um “Portugal que existe fora das grandes estruturas e onde há uma certa maleabilidade e flexibilidade” que eles também identificam em Barcelos.
Gótico Português é, desse prisma, um disco sobre identidade. Contudo, está longe de ser um exercício de fetichização cultural, a que Nuno e Rafael Ferreira, sentados entre Porto e Guimarães para esta entrevista à distância, se mostram avessos. Aquilo com que os Glockenwise nos presenteiam é um olhar sobre o que nos define culturalmente, alicerçado num desejo aparentemente contraditório de ficar e sair da margem.
[“Besta”, uma das canções novas dos Glockenwise:]
“O facto de as oportunidades estarem noutro sítio é realmente uma realidade para quem vive em regiões à margem. Um adolescente que toma uma decisão errada num sítio destes, terá repercussões para a vida, porque perdeu uma estrada para outro sítio qualquer”, aponta Rafael, lembrando que ele próprio sentiu essa pressão quando era mais novo. Por outro lado, Nuno enaltece os caminhos encontrados para superar as carências que existem na periferia: “É mesmo engraçado, porque não há aqui nenhuma tacanhice, pelo contrário, há uma enorme energia, criatividade e soluções que vão do cómico ao genial”.
Eles lá sabem como hão de fazer
Ninguém como Rosa Ramalho para explicar tudo isto com pragmatismo: “É melhor viver aqui, porque eu, para a minha vida, vivo melhor aqui. Mas eu gostava de lá estar [em Lisboa]. É certo que lá não podia ter forno, cozer louça, amassar o barro. Eu sem o barro não sou ninguém”.
O excerto é retirado de uma reportagem conduzida por Carlos Simões na freguesia barcelense de São Martinho de Galegos, em 1968, e é usado como tema de introdução do disco. Ao longo do álbum, voltaremos a ouvir a ceramista a fazer observações sobre um galo de Picasso que considera ser mais bonito do que o de Barcelos (“os gostos não são todos iguais”, fim da discussão) e a desabafar que possivelmente iria morrer sem fazer tudo o que tinha pensado fazer.
A referência a um dos principais ícones da olaria portuguesa vem reforçar a tensão criativa que se gera estando simultaneamente dentro e fora da margem, como estava a própria Rosa Ramalho, enaltecida à data nos grandes circuitos de belas artes do país enquanto vendia as suas peças nas feiras. “Vieram-me buscar para eu ir ver aquilo que eu nunca tinha visto”, ouvimo-la dizer a certa altura, referindo-se a exposições, galerias de arte e museus nacionais. Garante que gostou do que viu, embora não tivesse tirado nenhuma ideia concreta. “Mas eu bem sei como hei de fazer”.
Ela bem sabia como o fazer, como também os Glockenwise o sabem. Sem se apegarem a um lugar ou a uma pretensa rivalidade província/cidade, “coisa que existe apenas para as pessoas do Porto e de Lisboa que se esquecem que existe o resto do país” (recado dado por Nuno), arregaçaram as mangas e puseram-se a moldar o disco que neste momento da carreira sentiram que fazia sentido compor.
Ou seja, fizeram o que lhes apeteceu, sem olhar a estratégias comerciais, editoras ou amarras criativas e fugindo para os antípodas do que foi o álbum anterior, um trabalho com uma fórmula canção pop-rock concisa e mais arejado do que esta incursão sombria que agora nos apresentam.
“O Plástico [2018] foi um disco que correu bem e podíamo-nos ter amarrado ali, que é aquilo que normalmente os artistas fazem quando têm sucesso com uma música ou com um disco. Tentam repetir a fórmula. No nosso caso, sabíamos que isso era meio caminho andado para dar um tiro nos pés”, refere Rafael, para Nuno rematar: “Estamos completamente desapegados de qualquer ideia de pertença, não procuramos uma cena, um género ou um movimento particular. Não ter essas expectativas dá-nos uma grande liberdade”.
Uma banda talhada para não jogar o jogo do sucesso
Ao assumirem esta postura, os Glockenwise estão-se a colocar conscientemente à margem — a margem, outra vez, como centro da questão. Eles têm noção dos prós e contras dessa decisão e estão tranquilos com isso. “Somos um caso absolutamente singular do ponto de vista da longevidade, do empenho e do trabalho que isto dá versus a recompensa e o sucesso comercial”, afirma Nuno, vincando que, para eles, há aspetos muito mais importantes do que o sucesso, tal como tocarem há 15 anos juntos e fazerem votos de amor até que a morte os separe. “Deve haver poucas bandas em que as pessoas são tão amigas ao ponto de se aturarem ao fim de tanto tempo”.
O que os define melhor, diz desta feita Rafael, é a noção concreta de serem uma banda “talhada para não jogar o jogo necessário para se ser bem-sucedido”. Assim se explica a rescisão amigável do contrato que os vinculou no último álbum à Valentim de Carvalho. “O passo que demos neste disco não era o passo mais expectável que uma editora desejaria. Do lado deles, não era propriamente com entusiasmo que estariam a trabalhar num disco comercialmente difícil e, de um modo muito amistoso, chegámos à conclusão de que se calhar estávamos melhor cada um a fazer a sua coisa”.
Assim nasceu Vida Vã, a editora independente que serve de âncora para Gótico Português. Para já, o foco da editora está no disco, mas as portas estão abertas para oportunidades que surjam dentro ou fora do universo Glockenwise, desde que associadas de alguma forma à linguagem e ao espírito livre da banda. “Temos este guarda-chuva onde podem caber muitas coisas”. Um pouco à semelhança do Museu de Lamas, que serviu de inspiração para o ambiente e para a conceção visual de Gótico Português.
Sobreposição de camadas, entre o cómico e o desconcertante
Henrique Alves Amorim (1902-1977) era um homem de negócios que estava ligado à indústria da cortiça (da sua família, conhecemos bem o sobrinho, Américo Amorim, o Rei da Cortiça). Henrique é lembrado em Santa Maria de Lamas, freguesia de Santa Maria da Feira onde viveu, como benemérito e até tem um busto erguido em sua honra. Entre as várias obras que concretizou, há uma muito particular: o Museu de Lamas, um lugar sui generis idealizado ao jeito de gabinete de curiosidades do século XV. Um brique-a-baque, vá.
“Não conheço mais nenhum sítio assim, fundado nesta vontade compulsiva de colecionar coisas para depois montar este espaço labiríntico de uma forma muito naïve, sem qualquer informação museológica”, diz fascinado Nuno Rodrigues, falando dos altares barrocos que por lá andam e que Henrique Alves Amorim adquiriu ao Estado Novo nos anos 30 e 40. “A par deste interior, há um jardim muito bizarro, que combina um ambiente de parque público com cemitério”.
Claro que esse seria para Nuno, Rafael, Cláudio Tavares e Rui Fiusa o cenário de sonho para a capa do álbum: entre bonecos que simulam uma espécie de rancho popular, posicionados como se a lava do Monte Vesúvio por ali tivesse passado, uma torre medieval à escala Portugal dos Pequenitos, uma coluna dórica feita com conchas do mar, um poste de alta voltagem e vegetação daninha, estava feita a composição artística do disco. “Achamos todas estas sobreposições de camadas uma coisa entre o cómico e o desconcertante. Acho que isso é o ‘Gótico Português’”.
Entre o Rei Ghob e os GNR, passando por The Cure e Joy Division
Para tentar compreender melhor o conceito de Gótico Português, e entrando já no rendilhado do álbum, tentamos nomear os pais deste estilo. “É um tema complexo, porque os pais podem ser a Rosa Ramalho e o Rei Ghob”, graceja seriamente Nuno, pegando depois em Carlos Maria Trindade e nos Pauliteiros de Miranda. “Nos últimos anos temos ouvido cada vez mais música portuguesa no seu espectro mais alargado, uma música muito mais rica do que achámos à primeira vista”.
Essa riqueza está presente na sonoridade do disco, que muitas vezes tem na cara os GNR dos anos oitenta, seja pela bateria, pelo ataque do baixo ou pela interpretação arrastada de Nuno a lembrar Rui Reininho — eles que já se juntaram em 2020 para uma versão de “Calor”, música originariamente composta em inglês pelos Glockenwise para o álbum Heat (2015). Também encontramos laivos de Pop Dell’Arte, num certo psicadelismo e libertinismo estético e, saltando fronteiras, The Cure (a guitarra e o teclado de “Besta” não enganam ninguém), Joy Division ou Bauhaus, quando o álbum assume a sua vertente noir.
“Acho que fomos caminhando para essa estética lentamente. Decidimos que queríamos um determinado ambiente e tentámos fazer música à volta disso”, explica Rafael, reforçando que, embora o pós-punk e rock gótico da década de 80 sejam dominantes, o disco abarca outros registos.
“Água Morrente”, por exemplo, a única faixa que não foi composta por Nuno Rodrigues e que musica um poema de Camilo Pessanha, remete-nos inevitavelmente para uma linguagem que o asturiano Rodrigo Cuevas explora excelsamente no seu Manual de Cortejo (2019), mais especificamente na faixa “Ánimes del Purgatoriu_Bienveníos Refuxaos”, misturando o canto popular com as potencialidades da eletrónica. Porém, “Água Morrente” desagua numa outra coisa, num riacho de guitarras lo-fi. É óbvio que os Glockenwise não são Cuevas, nem Raül Refree, nem os My Bloody Valentine, que se insinuam no shoegaze de “Vida Vã”, nem nenhuma das referências anteriores. São uns tipos “norm-core”, brinca Rafael Ferreira, que procrastinam, têm o seu ritmo, as suas próprias regras e que fazem a música que lhes dá prazer. Ámen!
Nas margens do niilismo
Nada nesta postura indicia a aura niilista que fumega das letras. “Somos muito pouco niilistas, diria zero”, assegura Rafael. Mas depois ouvimos e talvez cantemos também isto:
Ao ritmo que vou
as temporadas não importam (…) É difícil precisar onde estou
passei a noite inteira a decidir o que sou” (de “Natureza”)
De ontem não sobra nada
é crer, em vão
Na vida transformada” (de “Lodo”)
Resta viver no mundo que sobrar
Consolidar o que guardei de ti
Sei que vieste ao engodo
Mas disse que venho do lodo” (de “Deixar Ferver”)
Ouvimos isto e não conseguimos não sentir a angústia de Sísifo empurrando a pedra. Nuno diz-nos que as letras podem ser vistas de vários prismas, porque são propositadamente vagas. São vãs, como a vida. E quando assim o é, parafraseando Albert Camus, que por sua vez parafraseia Nietzsche, “A arte e só a arte. Resta-nos a arte para não morrermos de verdade”. Ou como cantam os Glockenwise, “A vida inteira num lugar / ficava aqui até ao final” (de “Vida Vã”).
Por onde eles vão ficar, não sabemos. A vida anunciada, escrevem em “Margem”, não os queria aceitar, mas que importa o que se anunciou perante o que se consumou? “As coisas nem sempre se concretizam da maneira que antecipamos. Concretizam-se às vezes melhor, outras vezes pior, mas o que se projetou raramente é materializado”. Nuno está bem com isso, tal como está o resto da banda.
É, portanto, em paz que iniciam já neste sábado, dia 18 de fevereiro, a digressão de Gótico Português. Primeiro em Guimarães, no festival Courage Club. Em março estarão em Viseu, no Carmo 81 (dia 24) e em Aveiro, no Gretua (dia 25). Segue-se o concerto da Culturgest, em Lisboa, a 12 de maio: “É um concerto mais especial e gostávamos de dedicar mais tempo e energia a isso”, dizem, entre margens; e finalmente o gnration, em Braga, a 20 de maio, e o Plano B, no Porto, a 1 de julho. Uma coisa é certa: eles não aparecerão vestidos de plástico. “Os fatos azuis já estão postos de lado, foram doados ao Museu de Lamas”. Que entre então o Gótico Português.