Colaborar, mas com limites. Lutar contra a bipolarização. E evitar a tentação de entrar num Governo, se a hipótese se colocar. A esquerda portuguesa dedicou-se a olhar para o mapa político espanhol depois das eleições deste fim de semana, que trouxeram a Pedro Sánchez a necessidade de replicar o modelo português a que sempre teceu rasgados elogios — a geringonça — para poder formar governo. E retirou as lições possíveis, a aplicar num futuro em que volte a haver eleições no horizonte — um futuro ao qual o pedronunismo, convicto de que a era das maiorias absolutas pode estar para acabar, também já faz contas.
A esquerda com maior peso no parlamento espanhol — e que está representada no governo — não saiu propriamente bem na fotografia de domingo: distraída por uma série de violentas guerras fratricidas, a coligação Sumar perdeu deputados em relação aos assentos que o precursor, o Unidas Podemos — partido irmão do Bloco de Esquerda –, tinha; o próprio PSOE, que pode conseguir formar governo, reforçou a sua votação mas ficou ainda assim em segundo lugar, precisando agora dos independentistas catalães para se manter no executivo.
Deste lado da Península Ibérica, a esquerda retira uma primeira conclusão: negociar entradas em futuros governos ao lado dos socialistas — uma ambição que o Bloco de Esquerda chegou a assumir sem pudores, durante o pico da geringonça — parece mais um presente envenenado do que um caminho desejável para conquistar uma muito desejada influência política.
O raciocínio é simples: as figuras principais do Sumar — liderado pela atual ministra do Trabalho e estrela da esquerda espanhola Yolanda Díaz — colaram-se demasiado ao PSOE e acabaram inclusivamente a defender uma lei do Trabalho que no Bloco se ironiza ser ainda mais “soft” do que a Agenda do Trabalho Digno proposta, por cá, pelo PS. Se em Portugal as leis laborais e a recusa do PS em desfazer as que ainda restavam do tempo da troika foram um dos argumentos utilizados tanto por PCP como por Bloco de Esquerda para deixar cair a geringonça, em Espanha o assunto partiu a esquerda — e deixou os colaboradores do PSOE fragilizados.
Por isso, o que se anota na esquerda portuguesa é que a participação no Governo “parece ter prejudicado” a esquerda que era suposto apresentar-se como radical e marcar diferenças em relação aos socialistas do país vizinho. Juntando a isto os efeitos da bipolarização — que ainda assim não arrasou tanto os espanhóis do Sumar como, por cá, comunistas e sobretudo bloquistas nas últimas eleições legislativas — e as guerras internas que levaram a uma “varridela” dos dirigentes do tempo do Podemos, a coligação de esquerda acabou por conseguir apenas um “resultado sofrível”, admite-se no Bloco de Esquerda: “A integração no Governo foi um fracasso político”, conclui um dirigente.
Ou seja, publicamente o Bloco sublinha sobretudo o peso do fator bipolarização, de que tanto se queixou no ano passado, quando se viu esmagado pelos apelos ao voto útil do PS — este domingo, na CNN, o dirigente e eurodeputado José Gusmão interpretava o resultado que não foi “bom” como “resultado de um contexto de eleições muito bipolarizadas, mas bipolarizadas de forma bastante assimétrica”, em que, insistia, o Vox era o principal derrotado.
Mas nos corredores da esquerda juntam-se a isto outras lições: à cabeça, sobre os perigos e efeitos secundários de uma aproximação excessiva aos socialistas. A bipolarização continua, claro, a ser um problema, que a esquerda não conseguiu evitar nem combater no ano passado — coisa que só conseguirá fazer nas próximas eleições se for capaz de desmistificar, mesmo perante o perigo cada vez mais presente do Chega, a necessidade de o eleitorado de esquerda se virar para o PS. Possivelmente, garantindo que conversará com os socialistas e que um voto mais à esquerda não será um voto perdido.
Esquerda olha para apoios do PSOE (fora do Governo) como exemplo
O que leva a outra conclusão: no Bloco de Esquerda, os dirigentes ouvidos pelo Observador preferem focar-se na análise fina dos resultados de quem cresceu em votos (mesmo que não tenha crescido ou o tenha feito residualmente em termos de assentos). Ou seja, nos resultados de forças mais pequenas e regionais, nomeadamente o Bloco Nacionista Galego (que o Bloco tem esperança de ver crescer significativamente nas próximas eleições locais espanholas) e o Euskal Herria Bildu, partido separatista radical e herdeiro do Batasuna (braço político da ETA), que conseguiu ultrapassar o Partido Nacionalista Basco.
E esses resultados interessam, lembra-se à esquerda. Porque pertencem a partidos que até apoiaram o PSOE, mas, e a diferença é a chave, não entraram no Governo com ele. Ou seja: conseguiram marcar diferenças (nomeadamente na já mencionada lei do Trabalho) e não se colar demasiado aos socialistas.
E é esta a fórmula que está a ser vista como a mais certeira à esquerda, na construção do guião para o que virá a seguir: a esquerda que se mostra dialogante e disponível para colaborar — como a esquerda portuguesa sabe que o eleitorado, sobretudo o do Bloco, queria que estivesse — mas sem ceder demasiado ou se confundir com o PS, deixando de dar ao eleitorado uma razão para a escolher no boletim de voto, é a que tem mais margem de crescimento.
“Manter autonomia política” é a chave — a forma de o fazer é o dilema com que a esquerda portuguesa se debate desde o arranque da geringonça, e que tentou resolver de vez ajudando a fazer cair o Governo anterior de António Costa — com resultados desastrosos nas urnas.
“Um voto na esquerda é sempre contra a direita”, garante Bloco
O dilema voltará a colocar-se assim que houver eleições em Portugal, e assim que a esquerda tiver de voltar a definir-se perante o PS. “Um voto na esquerda portuguesa é sempre um voto contra a direita. E mais eficaz do que no PS, porque um voto na esquerda não só apresenta uma alternativa como mantém a direita fora do poder”, atira outro dirigente do Bloco de Esquerda. Por outras palavras: a esquerda irá sempre mostrar-se disponível para dialogar — sobretudo se isso impedir a direita, agora possivelmente com o Chega ao lado, de chegar ao poder.
Não que isso possa ser assumido agora: à esquerda existe uma espécie de estratégia a dois tempos para lidar com o PS, presente e futuro, e que passa por uma ordem de silêncio no que toca a falar de possíveis acordos no futuro. Tal como a ala esquerda do PS acredita, a solução para o Bloco é pôr a esquerda a conversar — mas só mais à frente.
No PCP, desde o fim da geringonça — definitivamente enterrada pelo partido, ainda na era Jerónimo de Sousa — só se ouvem críticas crescentemente mais duras ao PS, ao mesmo tempo que a contestação social cresce (e os apelos comunistas a que a “luta” nas ruas se intensifique também). Mas há uma ressalva notada até dentro do próprio partido: “[Paulo Raimundo] tem tido um discurso político que assinala a necessidade de haver uma convergência mínima para evitar que a direita chegue ao poder, independentemente das questões que afastam os partidos”, explicava o militante e jornalista Pedro Tadeu ao Observador, numa análise sobre os primeiros cem dias de Raimundo como líder.
Isto depois de, numa entrevista ao Diário de Notícias, Raimundo ter esclarecido que “os socialistas no geral e o PS em particular” não poderiam ficar de fora da solução que o PCP propõe para o país, sempre com base na sua “política patriótica e de esquerda”. Na altura chegou a elogiar Pedro Nuno Santos, que disse ter negociado pelo PS na fase da geringonça (ou “nova fase da vida política nacional”, em PCPês) com “frontalidade e franqueza”. E ainda lembrou que o PCP e o BE “convergem 90% das vezes” no Parlamento. Por agora, o PS não tem a tal “política que corresponda aos interesses do país” que faria o PCP “estar lá ao lado sem dúvida nenhuma” — o que não significa que a posição do partido seja estanque.
“Raimundo falou da necessidade de caminhos de convergência à esquerda e é uma tentativa de ver mais longe, numa estratégia a médio-prazo, porque o Governo acabará por se degradar”, acrescentava Tadeu. Mesmo com o trauma das perdas eleitorais no período da geringonça presente, seria preciso ter em mente que o dilema de deixar um governo de direita passar ou não pode voltar a colocar-se.
Nos corredores bloquistas, fica clara a ideia de que o tempo atual é de oposição absoluta à maioria absoluta, sem aproximações ao PS, sem baixar a guarda e sem abdicar de qualquer tipo de autonomia política. O que não significa que a situação não mude no futuro. Para os bloquistas, há duas certezas: a geringonça foi uma experiência de valor que mostrou que o Bloco é capaz de (e quer) ter mais influência; com Costa, isso não voltará a acontecer.
No PS, a ideia é mais ou menos a mesma — mas o ciclo de Costa não durará para sempre. Por isso, como em Espanha, há dos dois lados quem acredite que chegará a altura de se voltarem a sentar à mesa para conversar, tendo como valor maior e como cimento a vontade de travar um governo que junte direita e extrema-direita.
O plano de Pedro Nuno: chamar a esquerda e esquecer a maioria
Entre os socialistas portugueses, essa convicção é partilhada sobretudo entre quem conhece os planos do mais conhecido futuro-candidato à liderança do PS: Pedro Nuno Santos. No cenário de conseguir conquistar a liderança do partido, o plano está todo traçado na cabeça de Pedro Nuno: o PS precisará de polarizar à esquerda, uma vez que nesta ala ninguém acredita a atual maioria absoluta tenha sido mais do que uma exceção exótica — a política de blocos, que arrancou em Portugal em 2015 e se alastrou entretanto a Espanha, continuará.
A ideia entre a ala pedronunista é clara: quando essa altura chegar, a esquerda à esquerda do PS só precisará de puxar dos galões — “vejam bem a diferença de fazer isto connosco ou sem nós” — e mostrar que será firme na imposição de condições para um novo acordo de governo, sem ficar “a meio da ponte”. Admitindo até que entre essas condições esteja mesmo a inclusão de ministros do Bloco (ou, mais improvável, do PCP) num futuro executivo.
Aliás, como notam fontes deste setor do PS, nesse cenário a esquerda terá um dilema pela frente: se o homem que menos esconde a ambição de liderar o PS aparecer com um discurso mais à esquerda, “com um programa e um discurso populares, sobre serviços públicos e salários”, e a esquerda se puser de fora “será cilindrada”. E as percentagens desses partidos só interessarão para as contas — ou só serão “úteis” –, reforça-se nesta ala do PS, se o bloco da esquerda por inteiro conseguir formar maioria.
Do lado do Bloco esses cálculos não se assumem, mas vão-se atirando, a esta distância, farpas irónicas sobre o currículo do socialista com maior fama de ser esquerdista, Pedro Nuno Santos — o mesmo que tinha no Governo, no ministério das Infraestruturas, a pasta da privatização da TAP, comenta-se no partido.
Sobretudo, ouve-se deste lado da esquerda, o que interessa é garantir que além de um bloco que bloqueia nas urnas a extrema-direita há um bloco que consegue ter “um projeto de resposta social” comum que resolva o ressentimento que alimenta esses partidos.
“O PSOE não tem sido capaz”, lembra o Bloco, frisando a necessidade de a esquerda conseguir mostrar força e capacidade de impor condições nessa agenda, passada a travessia no deserto que é a maioria absoluta do PS. Se não se entenderem, as equações políticas de futuro (e de governo) poderão tornar-se bem mais complicadas.