Os livros que nos ensinam a ler nascem de uma ideia arrojada. Num tempo em que reina uma autoconfiança mimada, em que uma arrogância estúpida se apresenta como um ato de coragem, os livros que nos ensinam a ler vêm ao arrepio. Dizem-nos que há modos certos de ler, que certas coisas não se apreendem imediatamente, que os nossos instrumentos naturais não chegam para falarmos uma linguagem que usa as mesmas palavras que nós, mas tem outros significados, muitas vezes mais subtis.
A ideia de que é preciso ensinar a ler um poema, de que a experiência de alguém como leitor interessa, de que há na escrita uma gramática própria é então, por si só, uma tese: a de que a literatura tem uma linguagem própria, que não encontramos no quotidiano.
O livro recente de Miguel Esteves Cardoso sobre como escrever (o título é, precisamente Como Escrever, publicado pela Bertrand) desconcerta precisamente por se esquivar desta noção. A ideia é simples: trata-se de um livro para quem quer escrever, não para quem quer escrever bem. Se o objetivo é escrever, então o que se procura são truques para nos esquivarmos da preguiça, das angústias e das ansiedades, do temor pela imperfeição, mas não uma teoria literária ou uma ideia sobre gramática da criação. Trata-se, obviamente, de uma batota; tem um certo encanto preguiçoso e desleixado, que talvez só a Miguel Esteves Cardoso se perdoasse, mas é essencialmente isso: uma forma, com graça, é certo, de se esquivar ao problema principal da escrita e da leitura, o de perceber o seu modo específico de ser.
Quando Terry Eagleton, no seu livro sobre como ler um poema, passa grande parte do texto a explicar os fundamentos da teoria literária, fá-lo por causa disso mesmo. Não seria preciso explicar como ler um poema se a poesia não estivesse numa categoria diferente daquela em que está o quotidiano. Poderíamos ter um problema igualmente misterioso – como viver, como olhar para a realidade? – mas a pergunta do título admite uma diferença de substância. Um poema lê-se de uma maneira diferente, não se capta o seu sentido num relance, há modos de construção próprios para o que queremos provocar, de tal modo que, por muito que não mudemos de instrumentos – continuamos a usar os olhos, a memória, o raciocínio – mudamos a maneira de os usar.
Curiosamente, contudo, o que o livro de Terry Eagleton nos traz é um problema ainda maior a respeito disso mesmo.
Ao admitir que não lemos o quotidiano e a arte da mesma maneira, temos de admitir que há um modo, ou vários, de ler a arte. No limite, podemos dizer que são válidos todos os métodos menos um, o de leitura do quotidiano; no entanto, o que Terry Eagleton mostra é precisamente a dificuldade que temos em encontrar esse método. Eagleton quer mostrar que a ideia de teoria literária não acaba com o texto, coisa de que, durante tantos anos, a acusaram os seus detratores. Ao procurar um discurso geral sobre a literatura, a teoria acabaria por eliminar a crítica, ao reduzir aquilo que há a dizer sobre um texto ao mesmo que há a dizer sobre qualquer outro. Isto é, se eu procuro formular uma teoria da literatura, encontrar uma ideia motriz que se possa aplicar a todas as literaturas, todas elas me darão o mesmo, de tal modo que a teoria esgota o discurso crítico.
Ora, o que Eagleton procura fazer é mostrar como as várias correntes históricas da teoria literária enriquecem a leitura particular. O formalismo russo permite-nos alargar a leitura de Yeats ao percebermos a complexidade formal dos seus esquemas estilísticos, por exemplo. Esta ideia, de que a teoria serve o texto, serve para percebermos melhor o poema, e não para que do poema tiremos uma ideia geral, faz obviamente sentido; o que acontece, porém, é que por um lado enfraquece a teoria, pondo-a apenas como alternativa, como um modo de alargar a nossa compreensão, e não como uma tentativa de chegar à verdade sobre alguma coisa, e por outro também ajuda pouco ao objetivo primordial do livro.
Como ler um poema? O que se depreende da leitura de Eagleton é que quase todos os modos de ler podem dar, em casos específicos, pistas interessantes para ler certos poemas. Uns alargam com um modo crítico de olhar, outros com outro; o problema é que Eagleton não nos parece dar instrumentos sobre como escolher o ângulo. Enquanto exibição, o livro tem interesse, vemos que Eagleton soube ler vários poemas (embora em vários casos com interpretações que parecem um tanto forçadas ou ideologicamente condicionadas) e soube ler de maneiras muito diferentes. Mas nada nos diz sobre como se deve ler este ou aquele poema, e é aí que radica o maior problema do livro.
Eagleton quer defender a teoria literária, e isso atira o livro para fora de si próprio. Embora percebamos que os poemas exigem uma escolha no modo de leitura, que o método é imposto pelo objeto, Eagleton escuda-se, e evita analisar este ponto fundamental, o momento do porquê? Porque é que lemos este poema desta maneira e não de outra?
Para a resposta a esse problema, o livro de James Wood, A Coisa Mais Próxima da Vida (Zigurate), acaba por ter uma resposta mais interessante. Mais caótico, menos sistemático, sem consistir sequer, diretamente, numa teoria da literatura, sem uma solução propriamente dita para o problema de como ler, o que James Wood faz, de facto, é centrar o problema no objeto.
É difícil encontrar uma ideia geral sobre como ler um poema porque cada acontecimento literário tem uma vida própria. Wood tem um dom para nomear tendências, para encontrar sentidos gerais para os livros, e nesse sentido está próximo de formular uma teoria literária. No entanto, a sua ideia é sempre a de que a literatura responde a problemas vitais concretos, pelo que, nesse sentido, ela é que é uma teoria sobre a vida, e não o contrário. A pergunta sobre “a que é que este livro está a tentar responder?” é a pergunta mais persistente em James Wood e é ela que torna os seus textos tão vivos.
É claro que é interessante perceber como é que a literatura responde aos problemas; no entanto, esse é um passo que tem de nascer de uma pergunta anterior, pergunta essa a que, como James Wood mostra, muitas vezes temos dificuldade em responder. A ideia de que não devemos assumir que sabemos o que é que está em causa, de que a dificuldade de expressão é mais profunda e não tem que ver com explicar bem um problema, mas até com tentar perceber qual é o problema tem, assim, uma força grande no livro de James Wood.
Trata-se de um livro pequeno, até algo descosido, em que se misturam análise literária, autobiografia, e uma espécie de filosofia da arte; mas misturam-se porque Wood parece ter consciência de que o problema fundamental da arte não é a arte, isto é, de que a arte quer responder ao problema da vida, e sobretudo aos problemas vagos, que não conseguimos sequer explicar muito bem. Sejam estes os problemas, como ele bem explica, das migrações contemporâneas, que já não são bem captados pelas literaturas de exílio, sejam os problemas mais clássicos do papel da linguagem como modo, ao mesmo tempo, de esconder e revelar alguma coisa. O método de Wood passa, fundamentalmente, por tentar relevar o que ainda não está coberto pela literatura, o que há na vida contemporânea que não podia ser revelado por literaturas mais antigas e os problemas novos a que as novas literaturas respondem.
Também esta ideia, contudo, tem os seus problemas: ao procurar, além das respostas, os problemas, Wood corre sempre o risco de nos trazer ideias que estão muito acima dos livros que lê. Isto comprova-se ao lê-lo: é muitas vezes mais interessante ler Wood sobre os livros do que os próprios livros. Ora, Wood parece intuir isto mesmo quando põe a crítica literária dentro da tradição da literatura. Não como uma “ciência auxiliar”, mas como um objeto artístico em si mesmo.
Wood é um grande crítico, sim, mas de um modo que faz dele, sobretudo, um grande artista. Ora, a grande lição acaba, talvez, por ser essa mesma. É uma lição derrotada, pouco prosélita, mas a que é difícil escapar. São os grandes livros que nos ensinam a ler e que revelam os seus mecanismos próprios. Há, certamente, crítica que nos alarga a visão dos maiores autores; no entanto, fá-lo de um modo arbitrário, com um golpe de asa que vai para lá do texto, na mesma relação com o texto que a obra de arte tem com a vida.