895kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Logo ao primeiro disco dos Gume, "Pedra Papel" (2017), irrompiamm guitarras, saxofones, contrabaixos, e acima de tudo, um groove com pulso firme na América-Latina
i

Logo ao primeiro disco dos Gume, "Pedra Papel" (2017), irrompiamm guitarras, saxofones, contrabaixos, e acima de tudo, um groove com pulso firme na América-Latina

Logo ao primeiro disco dos Gume, "Pedra Papel" (2017), irrompiamm guitarras, saxofones, contrabaixos, e acima de tudo, um groove com pulso firme na América-Latina

Facada Records. Que gente irrequieta é esta? E que música têm para nos mostrar?

Uma editora que quer ser mais do que isso. Yaw Tembe lançou primeiro os Gume, contra as categorias do jazz (e não só). Agora mostra-nos Orca, uma das revelações de 2023. Fomos conhecê-los.

As maiúsculas enfatizam a urgência do decreto — PROIBIÇÃO DE APROXIMAÇÃO ATIVA A GRUPOS DE ORCAS POR EMBARCAÇÕES MARÍTIMO-TURÍSTICAS. No início da semana, o Instituto de Conservação da Natureza e das Floresta proclamou estado de sítio em alto mar; não é caso para menos: um grupo de orcas afundou um veleiro no Estreito de Gibraltar. As explicações para esta ataque diferem. É uma reação ao trauma infligido pelas embarcações; é por causa do barulho; é uma brincadeira; ou claro, é o início de uma guerra de classes marítima. Enquanto prosseguimos expectantes em doca seca, baixem os arpões, uma orca vem em paz e traz-nos canções de amor.

“Um amigo reparou que as últimas letras de Leonor e as primeiras de Cabrita fazem ‘Orca’”. É a explicação singela de Leonor Cabrita, uma lisboeta que se recolheu na pandemia, compôs uma série de cantigas e autointitulou-se de Orca. Esta predadora está cabisbaixa, é dada à introspeção, no piano ou no sintetizador, acompanhada por um saxofone chorado, um contrabaixo a pulsar entre lágrimas e uma dose saudável de melancolia espirituosa — “Não posso passar a noite a chorar/ amanhã tenho que fazer/ tenho que ir trabalhar”. Paisagem Trânsito é a estreia de Orca e deu à costa como um dos melhores álbuns nacionais de 2023.

Os responsáveis pelo disco de estreia de Orca são a Facada Records, uma editora independente recém-fundada pelo saxofonista Yaw Tembe, que promete agitar as águas da música portuguesa — se necessário, afundar veleiros pelo caminho. “No papel sou português, mas para mim a pátria é algo abstrato, estou sempre a desconstruir as noções de nacionalismo. Há sempre um confronto com ideias de nacionalidades, bandeiras e estado”, revela o músico nascido na Suazilândia, de mãe sul-africana e pai moçambicano. No final do ano passado, Yaw Tembe criou a Facada Records e editou DOBRA, o segundo álbum dos Gume, um coletivo de jazz com 14 músicos. “Existe um choque quando tenho que interagir com conceitos e ideias de nação. Mas para mim o mais interessante é criar novas comunidades”, resume o pirata desta comunidade apátrida, com uma manobra de desembarque em Alcobaça, Lisboa e Olhão: este sábado, às 19h, Orca e Yaw Tembe sobem ao palco do Cistermúsica — Festival de Música de Alcobaça; no domingo é a Orca na Casa Cheia, em Lisboa; de seguida, Paisagem Trânsito é apresentado em Olhão, dia 29 de julho, na República 14.

“Porque não compilar as músicas e organizar este rasto que se vai deixando?”, ponderou Yaw Tembe. “Porque não criar uma editora?”

Ana Viotti

Antes do saxofonista, havia o escultor. Na Faculdade de Belas Artes do Porto, um jovem Yaw Tembe conhece os meandros das artes plásticas, dá os primeiros passos como performer de spoken word, uma arte aprimorada em discos pelos The Last Poets, que carrega como referência até hoje. “A arte plástica foi uma outra vida”, desabafa. “A contaminação que houve na música resultou em conceitos importantes, sobretudo a qualidade espacial do som.” Na Escola Superior de Música de Lisboa, e pelas ruas de Lisboa, o palco de todos os iniciantes, o trompetista incorporou a qualidade espacial do jazz em três projetos: o quarteto Zarabatana, o sexteto Chão Maior e os Gume, uma das bandas mais afiadas do jazz português.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O trompete de Yaw, ora persistente, ora irrequieto, deve tanto a Fela Kuti como a Ornette Coleman; mas Gume não é uma banda de um homem, longe disso. Logo no primeiro disco, Pedra Papel, em 2017, irrompem guitarras, saxofones, contrabaixos, e acima de tudo, um groove com pulso firme na América-Latina. No ano passado, os Gume gravaram um concerto em Serralves, no Jazz no Parque, e uma sessão no estúdio Haus, em Lisboa. O próximo passo seria o habitual: procurar uma editora, ou no limite, largar as canções à deriva na internet. “Porque não compilar as músicas e organizar este rasto que se vai deixando?”, ponderou Yaw. “Porque não criar uma editora?”. De Gume ao nome Facada Records foi um instante, faltou definir qual seria o escopo da empreitada. “Uma editora aberta, sem qualquer género, apenas música criativa que não é facilmente catalogada”, define. “Queremos criar um espaço para a música livre”.

[o disco “Dobra”, disponível na íntegra no Spotify:]

A categorização não é amiga da música livre. E os críticos de música são por defeito afeiçoados à categorização. Podíamos todos combinar, por exemplo, que os Gume são afrobeat e não se falava mais nisso; mas estes músicos teimam em nos contrariar, ouvem-se maracatus carnavalescos (“Badjum”), sincopados cubanos (“Eribó”) ou free jazz contemplativo (“Gema de Pangu”). “Absorvemos um mundo vasto”, confirma. “As grandes influências são a diáspora africana e a música tradicional e urbana africana. Mas está tudo misturado. O jazz de New Orleans, por exemplo, está relacionado com a música do Haiti e com a música jamaicana, que por sua vez tem a ver com o hip hop.”

O contexto também não é amigo da música livre. Mas o contexto é tudo nesta prática da análise musical: podemos apontar os Gume como a resposta portuguesa ao recente jazz da diáspora africana entre Londres e Los Angeles, entre Shabaka Hutchings e Kamasi Washington, um pan-africanismo musical com o peso de barras de hip hop. E não precisamos de ir a um bar recôndito de Camden, estes grupos de jazz estão nos principais festivais de verão portugueses — os Erza Collective sobem ao palco do Super Bock Super Rock este fim de semana, e os Kokoroko vão a Paredes de Coura, em agosto. “O jazz teve uma expansão natural e algo como o free jazz tornou-se quase mainstream. Mas há obviamente um sistema económico, uma vontade de capitalizar a música”, responde desconfiado. A música livre não papa grupos — além da sua própria comunidade, evidentemente. “Estamos mais interessados em algo pequeno, num espaço  comunitário como a Facada Records.”

Aos 30 anos, Orca é o primeiro projeto a solo de Leonor Cabrita. Os primeiros singles foram manobras de distração compostas durante a pandemia. A matéria revelou-se suficiente para um disco em nome próprio, o guitarrista António Rebelo completou os arranjos, enquanto Bernardo Álvares coproduziu "Paisagem Trânsito".

A entrada de “Sap Sap”, a primeira canção do novo álbum de Gume, é um banquete: o serpentear da guitarra caribenha, o naipe de sopros afrobeat, até uma percussão esquiva travar o pagode. “Planeta corpo/ Apenas um/ Diversos saberes/ Sabores/ Mais alguns/ Odores”, começa a poetisa Raquel Lima, a decorrer entre o abstrato e o político. “Mapa na mão/ Lupa, câmara a focar/ Atravessar/ Zebras caídas no chão”. “Tudo que fazemos é inevitavelmente contemporâneo e sobre o agora.  Mas é uma questão mais horizontal que panfletária”, reflete Yaw, que no disco anterior de Gume ordenou a restituição da cultura em “Pedra Papel”:

“Mantendo o fôlego expressivo
Em gestos criativos de bairro para bairro distintos
Devolvendo cultura para quem a cria
Devolvendo paredes para quem as pinta”

“Tudo é político”, concorda Orca. “O amor também é político. O que fazemos vai necessariamente refletir sobre como nos posicionamos no mundo”.

Leonor Cabrita: “A minha forma de criação é emocional. É uma necessidade de fazer e não um objetivo concreto. Não existe uma meta”

Pedro Jafuno

A edição de Orca em 2023 também foi um ato político. “Editamos a Orca logo depois de Gume para atirar para um lado completamente diferente”, confirma Yaw, a demarcar a singularidade da Facada Records: a liberdade musical. “Esta editora fez sentido”, considera Orca. “Fazer música para mim é uma ideia de coletivo, de fazer coisas em conjunto.” O groove irrequieto de Gume é um universo distante das canções tristonhas de Orca, mas se há uma ligação evidente é um conceito de coletivo — Francisco Menezes, o saxofonista dos Gume, assim como o próprio Yaw, participam em Paisagem Trânsito; e as cantautoras Ana Lua Caiano e Catarina Branco compõem os coros. Contudo, Paisagem Trânsito é um disco solitário: uma mulher sozinha diante da imensidão da cidade, a medir estrategicamente cada passo, de pernas bambas. “É solitário, mas o solitário precisa do coletivo para se expressar”, defende Orca, que escoa pelas canções as suas inseguranças e existencialismos:

“Não há como saber de onde vim
Nem onde vou morrer
(…)
E apesar do medo
com atraso ou muito cedo
corro, salto e caio
e de certeza me baralho
e choro e luto e danço e grito”

A meta da Facada Records também está em debate. “A Facada quer criar uma comunidade para depois desmembrar e criar outra coisa”, considera o fundador. Ao seu lado, João Almeida, colega dos Chão Maior e outro responsável pela gestão da editora, adianta algumas novidades: em breve será organizado um primeiro evento — “Noite Facada”; e setembro é o lançamento do álbum de estreia dos HUH!.

“Há um lado de incerteza, de tentativa de pensar o mundo e a forma como nos relacionamos”, reflete. “Paisagem Trânsito tem a ver com uma paisagem que nos circunda, algo que é exterior a nós.” A sua relação com o exterior não é pacífica e manifesta-se essencialmente em canções de amor. No belíssimo apocalipse de “O fim já começou” resume: “O céu está vermelho/ e o mundo quer acabar/ mas fiz-te esta canção/ só para te lembrar/ que o amor é tudo o que temos/ para lutar”. O amor é um combate, já cantavam os Linda Martini. “As canções de amor não precisam necessariamente de ser sobre um amor romântico, podem ser uma forma de nos colocamos no mundo.”

Aos 30 anos, Orca é o primeiro projeto a solo de Leonor Cabrita. Depois de uma passagem na Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal, cofundou o coletivo artístico InsanaCena, fez parte da banda de Chica (Francisca Ribeiro) e lançou dois singles que aguçaram o apetite — “Ainda Queremos Ser Pessoas” e “Gorgulho”. Os singles eram manobras de distração compostas durante a pandemia. “São canções de pandemia, de repente tinha tempo: comprei uma placa de som e um teclado e não fazia basicamente mais nada.” A matéria era suficiente para um disco em nome próprio, o guitarrista António Rebelo completou os arranjos, enquanto Bernardo Álvares, outro colaborador de Chica, coproduziu Paisagem Trânsito.

[ouça “Paisagem Trânsito” na íntegra através do YouTube:]

A capa, ilustrada por Maria Severino, retrata uma Leonor determinada, a atravessar Lisboa montada no torso de uma orca. O primeiro verso do álbum acompanha este retrato — “Sonhei poder voar” — numa melodia dispersa que se desloca pelo fluxo de carros, trotinetes, saxofones e sintetizadores. Existe um caminho, mas é percorrido “ao acaso”, “à procura de sorte”, entre estradas e atalhos. As canções deambulatórias remetem para os primeiros álbuns de Sérgio Godinho, então um exilado a procurar uma pátria para chamar de sua. E os coros de Ana Lua Caiano e Catarina Branco sugerem que Orca é mais um membro desta jovem família que está a revirar a música popular portuguesa. No entanto, já fomos avisados, esta música livre não papa grupos, tampouco sentidos de orientação. “Não penso no caminho. É como dizem as canções: vou fazendo e descobrindo. Só preciso de ver um metro à frente”, reitera, a sacudir a água do capote. “A minha forma de criação é emocional. É uma necessidade de fazer e não um objetivo concreto. Não existe uma meta.”

A meta da Facada Records também está em debate. “A Facada quer criar uma comunidade para depois desmembrar e criar outra coisa”, considera o fundador. Ao seu lado, João Almeida, colega dos Chão Maior e outro responsável pela gestão da editora, adianta algumas novidades: em breve será organizado um primeiro evento — “Noite Facada”; e setembro é o lançamento do álbum de estreia dos HUH!, o projeto mais experimental da editora até hoje. Este é apenas o primeiro ano de vida, a primeira entrevista a um jornal, resta-nos aguardar o julgamento do tempo para averiguar se esta Facada é suficientemente afiada para sobreviver às peripécias da edição independente. Por agora, o vento é favorável, os Gume e a Orca navegam à vista, em direção à liberdade da maré alta.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.