Catarina Branco não se leva muito a sério. Diz que está apenas a fazer o que lhe apetece e a divertir-se – e ainda bem que assim é. Só desse modo é que nos podemos dar ao luxo de nos embrulharmos em questões existencialistas ouvindo versos que envolvem pokémons, strap-ons, boa hidratação e nutrição e, ao mesmo tempo, gozarmos fortemente connosco mesmos. Quando damos por ela, estamos numa discussão profunda sobre quando é que se deve mudar a cama. “Já tem duas semanas, de loucuras desumanas”, canta Catarina Branco naquele falso tom imperturbável, escondendo o grito que efetivamente está contido nesses versos: como é que se tem uma vida plena?

“É difícil manter o equilíbrio e acho que o disco todo é sobre isso. É de certa forma ambíguo e dual. Por um lado, estou a conseguir ter equilíbrio, estou a conseguir mudar a cama e fazer uma série de coisas que contribuem para o meu bem-estar, mas ao mesmo tempo estou num poço”, explica Catarina Branco em entrevista ao Observador.

O álbum é todo um balanço, um cai-levanta constante que ora recorre a sermões de autoajuda do Gustavo Santos, o equilíbrio reencontra-se única e exclusivamente / dentro de si mesmo; ora abre com o sample de voz da Ana Isabel Dourado, que se ri sarcasticamente ao constatar que a vida dela é uma merda; ora nos desarma qualquer argumento pseudointelectual ao fazer rimar “chakras” com “batatas”:

“Conto até 10
pra alinhar os chakras
penso em maneiras de cozinhar batatas”

[“Quando é que se muda a cama”:]

“Tento fazer as coisas sempre de uma forma descomprometida. O lado lúdico vem da necessidade de usar a música para me entender e divertir”. Aqui reside o busílis de Vida Plena: é um álbum de questionamento e de gozo constante, fazendo com que tudo se pareça seriamente absurdo. Se pensarmos que uma das grandes referências de Catarina Branco são os Ena Pá 2000, mais precisamente o álbum És Muita Linda (1994), então está tudo dito. “Era muito pequena quando contactei pela primeira vez com isso. Esse mundo tão extenso que esse disco propõe a nível de sonoridade sempre ficou na minha cabeça e o meu disco é uma consequência direta, ainda que subconsciente, disso”.

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Claro que quando Catarina Branco era miúda, versos como “Vai à Alice procurar a alegria de amar” ou “Omo sexual, detergente sentimental” soavam-lhe tão inocentes quanto a cantiga dos patinhos para as crianças irem para a cama. Depois cresceu, percebeu que “Pane-pane-pane-pane-pane-pane-pane paneleiro” não tinha nada a ver com panelas e deu por ela a questionar tudo o que tinha ouvido até então. “Agora consigo desconstruir muito daquilo que se está a passar ali. Há a questão de ter muita graça, mas também de estar a perpetuar uma série de coisas que não são fixes. Ter essa consciência é importante para depois fazer diferente e pegar só naquilo que me interessa do disco, que é a sua leveza e a sua multiplicidade sonora”. Recontextualizar as coisas sim, cancelá-las não, defende. “Só assim é que se aprende e se avança”.

Um dueto com Manuel João Vieira não seria coisa a descartar. “Adorava, desde que fosse eu a escolher a temática”, ri-se. E se ouvirmos a faixa “Cintalho”, cantiga ingénua e inofensiva que podia passar em qualquer bloco da Rua Sésamo, retratando duas miúdas que descobrem um cinto animado de prazer, percebemos que Catarina Branco está a ir pelo bom caminho. A canção nasceu de uma sugestão de Conan Osíris, com quem já tinha colaborado previamente na canção “Clítoris”: “Ele mandou-me uma mensagem de voz a dizer que tinha um refrão feito com a Rita Sreya em Lloret de Mar, no autocarro durante a viagem de finalistas, e que não fazia sentido ser ele a pegar naquilo. Portanto, queria que eu ficasse com ele”. A letra foi escrita a meias entre Catarina e Rita, o que fez de “Cintalho” um jogo a três: “De repente éramos três pessoas a divertirmo-nos à volta de uma ideia e acho que ficou uma coisa mesmo fixe”.

[“Solitário Sudoku”:]

Mesmo fixe, diz ela, foi a sua entrada para A Maternidade, que lhe permitiu trabalhar de perto com Francisca Frazão, Raquel Pimpão, Rodrigo Castaño e Luís Severo, produtor do álbum. “Criou-se uma rede para que as coisas acontecessem de forma mais ágil e orgânica”. O convite partiu da parte do coletivo, depois do Catarina Branco ter lançado o seu primeiro EP Tá Sol (2019). Até então, a música de 26 anos trabalhava de forma solitária, no seu quarto, e tinha medo de que as suas ideias fossem corrompidas no momento de as partilhar com outras cabeças. “Mas agora percebo que aquilo que acontece quando partilhas ideias com pessoas que te são tão próximas e que te conhecem tão bem a nível criativo, é que vão potenciar a tua ideia ao máximo. Se tivesse sido eu sozinha a fazer o álbum, tinha ficado muito mau”, atira sem vergonhas, admitindo que, com Luís Severo ao leme, o disco não podia ter ficado melhor do que ficou. O conjunto Cuca Monga também deu uma mãozinha no processo, “estávamos a gravar justamente nos estúdios deles, em Alvalade”, assinando a edição conjunta com A Maternidade.

À matriz pop de Catarina Branco, realçada pela introdução de segundas vozes que nos lembram o som que passava nas rádios nos anos 90, juntam-se pitadas de bossa nova, R&B, lo-fi e música ambiente, um combo bem afinado que faz com que Vida Plena flua de forma prazerosa e sem sobressaltos. No final, não chegamos a grandes conclusões, mas isso também pouco importa. “É um exercício um bocado niilista pensar que isto não interessa para nada, que daqui a 30 anos se calhar não vamos ter planeta, portanto vou falar do que me apetece.”

[“ouça o álbum “Vida Plena” na íntegra através do Spotify:]

Nesse sentido, Vida Plena é também um retrato geracional. “Peguei na música para escapar a esta nuvem toda que é ter vinte e poucos anos e perceber que não há futuro naquilo que estudámos”. Com uma licenciatura em Artes Plásticas, uma pós-graduação em Arte Sonora e uma incursão pela área de Multimédia e uma casa em Lisboa para sustentar, Catarina não fez mais do que agarrar nas suas inquietudes, das mais mundanas às mais profundas possíveis, e fazer piadas sobre ela própria. Quiçá num próximo disco venha a falar sobre pagar uma dívida às finanças ou sobre o IRS, deixa no ar. Tudo parece possível, tudo é válido, nada importa. O fundamental é continuar a encontrar mistérios benignos nas coisas do dia a dia.

Talvez o próximo mistério esteja reservado para a atuação no Maus Hábitos, no Porto, esta sexta-feira, dia 25 de março, às 21h (€8). “Estou um bocado nervosa, porque nunca toquei no Porto, mas estou com pica”, diz-nos já em jeito de despedida. Segue-se Lisboa no dia 3 de abril, na Escola do Largo (€10), concerto que deveria ter sido de apresentação do álbum e que deveria ter acontecido na semana passada, não tivesse a Covid apanhado Catarina de surpresa. “Mas agora já estou bem”, diz sem grandes dramas nem floreados. Ela lá contou até 10, segurou-se até ao fim e pôs-se pronta para outra. “Estes concertos vão ser em banda e vão ser muito especiais”. Alinhem os vossos chakras, ponham os vossos cintalhos e não percam muito tempo a questionarem-se se derem por vocês numa destas salas a cantar sobre sudokus ou pássaros num aviário.