Na nova peça de Tiago Rodrigues, Na Medida do Impossível, que sobe ao palco da Culturgest, em Lisboa, esta quarta-feira (17 de abril), Beatriz Brás dá voz a histórias de trabalhadores de ajuda humanitária do Comité Internacional da Cruz Vermelha e dos Médicos Sem Fronteiras. O espetáculo mostra os bastidores, as vidas destes profissionais tantas vezes invisíveis num “mundo impossível” — esse dos cenários de guerra, dos campos de refugiados, dos que têm de lidar com escolhas de vida e de morte. A forma como Na Medida do Impossível dessacraliza estes trabalhadores, recusando-lhes o título de “heróis”, mas antes humanizando-os, tem a subjetividade do olhar que a atriz carrega. Aquele que, durante a criação do espetáculo, a levou a perguntar ao encenador: “São trabalhadores humanitários, mas como é que se comportam no dia-a-dia?”
Os 30 anos não trouxeram menos perguntas a Beatriz Brás. “Tenho menos medo de ser imperfeita, menos medo de falhar”, diz sobre o amadurecimento possível. Quando nos faz suster a respiração com o poema em que Amália cantava “O medo mora comigo/ mas só o medo, mas só o medo”, dissipam-se dúvidas: eis uma atriz onde já não habita o medo, enamorada pela “possibilidade da queda e da falha”. Afinal, “é isso que nos liga”, diz. “Há uma maestria, uma qualidade que nos atrai em fazer tudo certinho e tecnicamente perfeito, mas a fragilidade é o que nos une, na verdade”. Em Na Medida do Impossível, espetáculo cujo elenco integra desde a estreia em Genebra, em 2022, tem-se permitido ir mais longe. “Permite-me atirar para fora de pé.” Dizer o texto mais de uma centena de vezes não a desgasta ou aborrece, pelo contrário, vê na repetição um caminho para o aperfeiçoamento.
Beatriz Brás nasceu em Lisboa em 1993, e cresceu nos subúrbios da capital. Começou por ser uma “encenadora exigente”, ao dirigir a amiga Mafalda fazendo uso de uma câmara Canon do pai para inventar brincadeiras, telejornais, anúncios e outros “teatrinhos” que “levava muito a sério”. A carreira enquanto criança-atriz foi comedida, a mãe não queria que faltasse às aulas e ficou-se por pequenos papéis secundários. Até umas férias de verão que gastou a fazer a série juvenil Detective Maravilhas (2007, TVI), onde ganhou relativo protagonismo e alguns convites — que recusou, pois a escola esteve sempre primeiro.
A televisão ficou para trás, mesmo quando entrou na Escola Superior de Teatro e Cinema e da licenciatura brotou a companhia Auéééu, em 2014, que fundou com colegas de curso e uma filosofia assente no poder horizontal de um coletivo. “Foi desafiante não só em termos criativos, mas quase políticos. Como é que nove macacos se entendem sem andar à porrada?”, ri. Dialogando com a diferença é a resposta. “Não queremos todos pensar da mesma maneira, queremos dialogar com o que é diferente e usar isso nos nossos espetáculos.”
Colavam guiões de cinema a textos filosóficos e canções, criavam espetáculos cozinhados num “caldeirão escrito por várias mãos e pensado por várias cabeças”. A experiência “foi determinante na minha postura no teatro e na vida”, garante. Valoriza “este espaço livre, caótico, desorganizado, que não pretende ser eficaz, que não tem medo do risco, da falha, de ser um espetáculo que falha, que não é nada, que é despretensioso, que não quer chegar a lado nenhum. Ainda hoje tenho esta atitude”, confessa. “Este lado da arte ser despretensiosa é uma coisa que vejo pouco hoje em dia. Tem sempre uma agenda política ou mais engajada, ou com uma certa moral ou causa. Acho que isso é importante, também, mas não nos devemos esquecer do lado inútil da arte e do risco.”
Foi precisamente com os Auéééu, no espetáculo Tradição, que Beatriz chamou a atenção do encenador e dramaturgo Tiago Rodrigues, que a convidou para uma audição de Sopro (2017), onde acabou a ser a voz de Cristina Vidal, ponto do Teatro Nacional Dona Maria II que conversava com o então diretor do teatro. A peça, que fez carreira internacional, viria a revelar-se fundamental no seu percurso: não só porque foi a primeira colaboração com Rodrigues, com quem no final do ano viajará até à Bélgica para começar a laborar numa nova criação, como a conduziu ao realizador Tiago Guedes, que a viu no palco do Teatro Nacional e a desafiou a fazer um casting para o seu próximo filme, A Herdade (2019). Pouco depois, tornou a chamá-la para a série Diálogos Depois do Fim (2024).
Se dúvidas houvesse que esta é a história de uma atriz profundamente comprometida com o ofício, é a própria que confirma que foi no encontro com a profissão que descobriu o seu manual de sobrevivência, cinto de segurança e relógio para o despertar de um pensamento. “É por isso que faço teatro, porque me serve para a vida. Se não, não me interessava”, diz prontamente. “Gosto de questionar as coisas profundamente. Claro que me interessa o ego, aplausos, não sou ingénua a esse ponto de dizer que é uma relação pura, mas penso: de que é que isto me está a servir? Quando vejo um filme ou leio um livro, penso: o que é que isto me está a dizer? Estou a ler este livro para dizer aos outros que li ou porque de facto me interessa?”.
Reconhece a entrada no Conservatório como um momento de revolução pessoal. Ali ouviu “está tudo bem contigo e com o teu corpo, não tens de ser alguém que não és”. “Foi um despertar de consciência daquilo que sou e daquilo que posso ser. Deu-me palco para poder arriscar sem medo a partir daquilo que era. Descobri as potencialidades que o meu corpo tinha. Foi muito transformador”, assegura, recordando a miúda insegura “com aquilo que sabia e não sabia, com a aparência também”.
Os egos e aplausos que tem recebido e que, ao que tudo indica, continuará a receber, podem ser inebriantes, sabe. “Os artistas são vaidosos e também sou vaidosa. É muito forte lidar com tantos olhares do outro. É um desafio não cair nessa armadilha. Para mim é uma tentação muito grande”, confidencia. Mas mais do que a vaidade, “existe um expor de alguém que o está a fazer sem grande sentido utilitário”. “É isso que me comove, essa exposição”, reflete. Por isso mesmo, gosta “de espetáculos que arriscam, que não tentam ser só eficazes e agradar o público, que são honestos. Não são só espetáculos para a vaidade.”
Nos quadros de Van Gogh, contempla a inquietação. “Claro que ele deveria quer agradar, mas há ali uma inquietação honesta, bruta, provocadora, uma dor que está ali expressa naquele quadro que é mais do que vaidade ou ego. Gosto quando há este rasgão, este gesto que não é para os outros me aceitarem ou incluir num grupo, coisa que faço muitas vezes no meu dia a dia. Gosto quando consigo sair deste lugar de fazer só para agradar ou para ser incluída ou para ser aceite. Simplesmente um gesto de: isto está-me a acontecer. E podem ver, se quiserem ver. Eu acho que isto é um ato de coragem. Trazer luz àquilo que está trapalhão e incompleto, é isso que me faz sentir acompanhada e sentir que há alguma coisa que nos une.”
Beatriz recorda a história da mãe, nascida na aldeia de Perolivas, Reguengos de Monsaraz, no Alentejo, de quem herdou a musicalidade. Era o tio que tocava acordeão e a levava para os bailes até que um dia a diretora de um colégio a ouviu e, denotando talento na “rapariga da aldeia”, permitiu que continuasse a estudar oferecendo-lhe os estudos. “A minha mãe tem esta relação com a música, não é que a tenha salvado, mas abriu-lhe as portas. Sempre me incentivou a cantar, cantamos a duas vozes fado, cante alentejano. Sempre tive esta relação emocional com a música.”
Não esconde a ambição que a música ocupe mais espaço na sua vida profissional, tampouco o desejo de construir um espetáculo só seu. O coletivo Auéééu deu-lhe margem para experimentar, “umas coisas ficavam, outras não”. “Muitas vezes nem percebia bem o espetáculo que estávamos a construir. Metade do espetáculo não percebia. Mas aquela falta de domínio sobre o que se cria também me entusiasmava.”
“As they say in my country: Mais vale tarde do que nunca”, diz no palco da Culturgest. Assim será uma criação própria da atriz, “uma coisa que gostava de ganhar coragem para fazer”. Coragem e “talvez alguma bagagem”, continua, logo baixando a voz. “Acho que isto são desculpas. Nunca estamos prontos para nada. Às vezes ainda tenho medo de falhar e de expor a minha falha. Uma coisa é interpretarmos um texto, outra coisa é assinarmos uma obra. Claro que se falhar ao interpretar um papel é mau, mas um espetáculo acho que exige uma posição de liderança e de responsabilidade ainda maior e que eu ainda não sei se estou capaz de me lançar nesse campo. Mas tenho esse desejo.”
O que quer Beatriz Brás dizer? “Gostava de dizer coisas que não acrescentassem muito ao mundo. Esta coisa de fazer teatro para mudar o mundo… já tive isso. Acho que uma obra de arte perde força quando aponta diretamente para um sentido. Cada vez mais chateia espetáculos que me digam como é que tenho de pensar, como é que me devo posicionar ou que me dão algum tipo de moralidade. Embora ache que eles devam existir, não estou a julgar nem a condenar ninguém. Para mim, gostava de expor um lado frágil meu, inseguro. Acho isso tão forte. Aquilo que mais gosto de ver num ator é a vulnerabilidade em cena.”
Há quem esconda as inseguranças, faça por camuflá-las, cobri-las de camadas de pose e artifício. Beatriz quer usá-las como matéria. “Gostava de falar sobre isso, sobre a minha insegurança na vida. Dar palco a isso: a uma coisa imperfeita, inacabada, que não é eficaz, que é trapalhona. E talvez fazer companhia às pessoas que se sentem dessa maneira também, ou não. Elas também não têm de gostar daquilo que estou a dizer. Às vezes está tudo bem em não cumprir com um ideal.”