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Falta de médicos, tarefeiros a segurar as pontas e horas extra que roçam a "escravidão". Os problemas nos hospitais mais críticos do país

Com metade dos médicos em Portugal fora do SNS, a falta de mãos condena serviços ao encerramento em todo o país. O sindicato aponta 7 hospitais e várias maternidades como os mais críticos.

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Metade dos médicos em Portugal não estão a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde e, desde 2015, já são mais os jovens médicos que acabam a trabalhar na rede privada do que aqueles que permanecem no sistema público. Foi este o quadro que Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, apresentou esta segunda-feira na Comissão de Saúde da Assembleia da República para justificar parte dos problemas que têm sido apontados ao Serviço Nacional de Saúde — e que estão na origem não só das greves de profissionais de saúde entre outubro e novembro, como também na demissão em bloco de médicos em cargos de gestão em dois hospitais do país.

Mas a ‘debandada’ descrita e que empurra o SNS para um cenário de fragilidade, colocando em risco quem o procura, tem explicações — a troca do público pelo privado é mais do que uma simples escolha dos médicos: há horas extraordinárias levadas ao extremo, salários pouco atrativos, infraestruturas sobrelotadas, não adaptadas ao desenvolvimento tecnológico, e diversos outros fatores. Mas, afinal, quais os problemas de cada unidade?

Unidades que têm vivido situações mais críticas, segundo o Sindicato Independente dos Médicos

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  • Hospital Amato-Lusitano (Castelo Branco)
  • Hospital Santo André (Leiria)
  • Hospital de Faro
  • Hospital de Torres Vedras
  • Hospital de Vila Franca de Xira
  • Hospital José Joaquim Fernandes (Beja)
  • Hospital São Bernardo (Setúbal)
  • Maternidades dos centros hospitalares da Grande Lisboa.

Depois do caso de Setúbal, mais de metade dos chefes de equipa da urgência do Hospital de Braga — nove, de um total de 16 médicos — também se demitiram recentemente em protesto por melhores condições de trabalho, incluindo salários mais elevados. Jorge Roque da Cunha, presidente do Sindicato Independente dos Médicos, explicou ao Observador que, apesar da falta de profissionais de saúde, vários hospitais de norte a sul do país têm conseguido manter-se em funcionamento graças às horas extraordinárias dos médicos contratados e do recurso constante a colaboradores externos — um sintoma de que as escalas dos clínicos efetivos, tal como estão, são insuficientes para manter a integridade dos serviços. “Há uma grande incapacidade em contratar médicos e em evitar que eles saiam”, relata o sindicalista.

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Mais de metade dos chefes de equipa dos serviços de urgência do Hospital de Braga demite-se em bloco

Há, no entanto, linhas orientadoras que se baseiam em informações como a quantidade de horas extraordinárias que um profissional de saúde tem de realizar para manter um serviço em funcionamento, o número de profissionais de saúde contratados para cada serviço, o nível de dependência de colaboradores externos para cumprir as obrigações médicas ou o tempo de espera que cada doente tem de suportar antes de ser consultado (seja em situação de urgência ou para ser acompanhado) — e sempre em conformidade com os utentes a servir na área de influência do hospital em causa.

As denúncias de fragilidades no Serviço Nacional de Saúde que têm sido realizadas pelos sindicatos dos profissionais de saúde resultam das queixas que lhes chegam de quem está no terreno. Nem os sindicatos, nem a Ordem dos Médicos têm critérios fixos ou linhas vermelhas que permitam avaliar concretamente quando é que um serviço (ou mesmo um hospital inteiro) está numa situação crítica ou entrou em rutura.

Há, no entanto, linhas orientadoras que se baseiam em informações como a quantidade de horas extraordinárias que um profissional de saúde tem de realizar para manter um serviço em funcionamento, o número de profissionais de saúde contratados para cada serviço, o nível de dependência de colaboradores externos para cumprir as obrigações médicas ou o tempo de espera que cada doente tem de suportar antes de ser consultado (seja em situação de urgência ou para ser acompanhado) — e sempre em conformidade com os utentes a servir na área de influência do hospital em causa.

E é com vista nessas linhas orientadoras que, em declarações ao Observador, o presidente do Sindicato Independente dos Médicos, Jorge Roque da Cunha, mencionou os hospitais que têm vivenciado as situações mais críticas do sistema de saúde público em Portugal: o Hospital Amato-Lusitano (Castelo Branco), Hospital Santo André (Leiria), Hospital de Faro, Hospital de Torres Vedras, Hospital de Vila Franca de Xira, Hospital José Joaquim Fernandes (Beja), Hospital São Bernardo (Setúbal) e as maternidades dos centros hospitalares da Grande Lisboa.

Não são, no entanto, casos únicos: os problemas estendem-se a todo o tecido hospitalar português, garante o sindicalista. “As fragilidades são transversais ao Serviço Nacional de Saúde. ​​É habitual e rotineiro serem ultrapassados os tempos de espera que se consideram razoáveis num serviço de urgência”, descreve Roque da Cunha. A descrição coincide com a da Ordem dos Médicos, que garante que os problemas identificados nestes hospitais são “sistémicos”; e com a de Horácio Guerreiro, diretor clínico do Centro Hospitalar Universitário do Algarve.

O gastrenterologista explica que o Hospital de Faro está entalado entre dois obstáculos: a montante, os casos mais leves, que podiam ser tratados nos centros de saúde, não encontrando soluções nos cuidados primários, procuram-nos nos serviços de urgência do hospital; e a jusante, as deficiências nas redes de apoio aos doentes — como os centros de cuidados continuados ou os lares para idosos — retêm-nos nos hospitais, sobretudo quando as próprias famílias são incapazes de responder às suas necessidades. A pandemia de Covid-19 só veio agudizar estas lacunas.

Em entrevista ao Observador, o gastrenterologista explica que o Hospital de Faro está entalado entre dois obstáculos: a montante, os casos mais leves, que podiam ser tratados nos centros de saúde, não encontrando soluções nos cuidados primários, procuram-nas nos serviços de urgência do hospital; e a jusante, as deficiências nas redes de apoio aos doentes — como os centros de cuidados continuados ou os lares para idosos — retêm doentes nos hospitais, sobretudo quando as próprias famílias são incapazes de responder às suas necessidades. A pandemia de Covid-19 só veio agudizar estas lacunas, garante Horácio Guerreiro: muitos lares e centros de cuidados continuados diminuíram as suas lotações para conter a iminência de surtos. E depois, há uma dificuldade comum a todas estas estruturas: a falta de profissionais de saúde.

Os serviços mais desfalcados em Faro têm sido os de anestesiologia, obstetrícia e ginecologia (cujas escalas para outubro têm sido asseguradas por dois médicos), ortopedia e pediatria. Neste momento, o hospital precisaria de três vezes mais anestesistas do que os atualmente contratados; e os outros serviços sobrevivem à conta de colaboradores externos chamados para remendar as falhas no imediato. No momento em que saem pela porta do hospital, os problemas colmatados até ali regressam, pois são os médicos dos quadros que acompanham os doentes até à estabilização dos quadros clínicos.

Mas, sendo tão poucos, isso faz-se à custa de um sistema “próximo da escravidão”: o limite legal de horas extraordinários fixado por lei é de 12 horas por semana, mas só no serviço de pediatria os médicos estão a realizar o dobro disso; e o serviço de ortopedia está na iminência de ultrapassar os limites. Tudo isto com condições remuneratórias “pouco atrativas”, mesmo para os médicos mais experientes, e num hospital com uma infraestrutura “que não foi concebida para o avanço tecnológico dos últimos 50 anos”: “Estamos a conseguir trazer essa inovação tecnológica, mas é como remendar uma casa velha”.

O caso do Hospital de Faro sofre com outra agravante: não só os serviços estão dispersos por toda a região algarvia, o que dificulta a comunicação entre eles, como a própria área de influência extrapola os utentes do Algarve. Horácio Guerreiro explica que o centro hospitalar recebe doentes de outras zonas do país, nomeadamente do Baixo Alentejo, mas também do norte da Europa. “Recebemos muitas vezes doentes britânicos, alemães e noruegueses que vêm para cá porque não há tanto racionamento como lá na prestação de tratamentos oncológicos ou de cardiologia de intervenção”, exemplifica o médico.

É um peso extra que se reflete nas estatísticas conhecidas no Algarve, onde até nos jornais surgem anúncios de emprego em busca de médicos pediatras, tal é a dificuldade de encontrar quem se queira fixar por lá para trabalhar. Por exemplo, o número de camas para internamento por mil habitantes no Centro Hospitalar do Algarve é duas — a média nacional é de três camas — e as listas de espera chegam a ultrapassar os três anos em áreas como a ortopedia.

Mas há outros serviços que, segundo a administração do hospital, precisam de ser reforçados com a contratação de mais médicos: por exemplo, são necessários mais oito a 10 clínicos para medicina interna; e há pelo menos mais uma vaga para preencher no serviço de pediatria e outra em cardiologia. A esperança é que estas vagas venham a ser ocupadas “muito rapidamente”, mas há um problema: é preciso formar mais médicos nestas áreas. A procura está a ser maior do que a oferta — e, segundo Carlos Andrade Costa, isso é verdade tanto no setor público, como no privado.

No Hospital de Vila Franca de Xira (que deixou de ser uma parceria público-privada e agora é totalmente público), o Conselho de Administração que tomou posse em junho deparou-se desde o início com dificuldades no serviço de obstetrícia e de ginecologia: há poucos médicos e só nesta área seriam precisos pelo menos mais sete para se atingir um “ponto de equilíbrio”, explicou ao Observador o presidente Carlos Andrade Costa.

Embora recuse que o hospital esteja, ou tenha estado recentemente, numa situação crítica, à beira da rutura e com repercussões negativas para os utentes, o administrador admite que isso se faz à custa de dois esforços acrescidos: o recurso sistemático a colaboradores externos e o elevado número de horas extraordinárias cumpridas por quem faz parte dos quadros. “Usamos a expressão ‘rutura’ de forma muito fácil hoje em dia e ela espelha uma realidade mais dramática”, considerou Carlos Andrade Costa: “Os problemas existem e estamos a fazer um esforço para resolvê-los, também graças ao enorme empenho e sentido de responsabilidade dos nossos profissionais de saúde para com os doentes”.

Mas há outros serviços que, segundo a administração do hospital, precisam de ser reforçados com a contratação de mais médicos: por exemplo, são necessários mais oito a 10 clínicos para medicina interna; e há pelo menos mais uma vaga para preencher no serviço de pediatria e outra em cardiologia. A esperança é que estas vagas venham a ser ocupadas “muito rapidamente”, mas há um problema: é preciso formar mais médicos nestas áreas. A procura está a ser maior do que a oferta — e, segundo Carlos Andrade Costa, isso é verdade tanto no setor público, como no privado.

A dedicação dos profissionais de saúde em Vila Franca de Xira e o constante recurso a tarefeiros permitiu que, em setembro, o serviço de urgência em obstetrícia e ginecologia neste hospital não tivessem encerrado no primeiro fim de semana do mês. O Sindicato Independente dos Médicos relata uma “calamidade” que, pelo menos desde setembro, já levou ao limite as maternidades de todos os hospitais da Grande Lisboa à conta da “escassez de recursos humanos”. Isso aconteceu também mais a sul, no Hospital São Bernardo, em Setúbal, onde a demisão de 87 médicos dos cargos de gestão (não dos cargos clínicos) em protesto contra a falta de condições de trabalho trouxe à tona as fraturas do sistema de saúde.

“Faltam médicos, faltam condições de trabalho e sobejam doentes”

O Observador procurou contactar a administração deste hospital, assim como de centros hospitalares situados na Grande Lisboa, mas sem sucesso. No caso de Setúbal, vão valendo os relatos realizados pelos médicos demissionários, que ainda no início do mês descreveram ao Observador as dificuldades que sentem naquele hospital. Jorge Cortez, diretor demissionáro do serviço de Anestesiologia do Centro Hospitalar de Setúbal, recorda-se de se ter cruzado com profissionais de saúde a chorarem nos corredores do hospital no pico da terceira vaga da pandemia; e de alguns terem sido diagnosticados com burnout pela quantidade de horas extraordinárias que cumpriam para manterem os serviços em funcionamento.

Ainda em agosto, foi necessário pedir a médicos que fizessem turnos de 24 horas três vezes por semana, conta Pinto de Almeida, ex-diretor do serviço de Ginecologia e Obstetrícia. Este serviço é dos mais carentes de médicos no Hospital de Setúbal e a solução tem sido contratar tarefeiros para ajudar os médicos do quadro. Neste momento, sete em cada 10 clínicos que fazem a formação final neste hospital acabam por sair — ora a favor de outros centros hospitalares, ora para integrar a rede particular. A situação também é crítica no departamento de anestesiologia, que está a funcionar a 32,5% da capacidade por falta de médicos; no serviço de Radiologia, onde só existiam três pessoas; e em Oncologia, com apenas quatro médicos.

Hospital de Setúbal. Diretores demissionários denunciam burnout, turnos sucessivos de 24 horas e serviços à beira da rutura

Depois de, a 1 de outubro, a urgência de ortopedia ter encerrado por as equipas de plantão não cumprirem os serviços mínimos, a escassez de profissionais de saúde voltou a ser motivo para, a 12 de outubro, a urgência geral do Hospital de Leiria (que não respondeu às questões do Observador) ter sido incapaz de atender todos os doentes que acorreram ao serviço, tendo de se cingir aos casos mais emergentes. Essa foi a justificação que os sindicatos encontraram para esta situação e foi também uma das mencionadas no comunicado do Hospital Santo André

Aquando das demissões, fonte oficial do Ministério da Saúde confirmou que aprovaria a contratação de mais médicos para este centro hospitalar nas especialidades de Ortopedia, Ginecologia e Obstetrícia, Anestesiologia, Cardiologia, Pneumologia, Medicina Intensiva e Oncologia Médica. Só que só o serviço de Obstetrícia, que neste momento tem 11 médicos, precisava de outros dez para funcionar com normalidade.

Outro problema é que muitos dos 400 médicos que compõem o centro hospitalar estão a reformar-se ou a preparar-se para tal, mas não há médicos mais jovens suficientes para preencherem as lacunas que os mais experientes deixam. Daniel Travancinha, presidente do conselho sub-regional de Setúbal da Ordem dos Médicos, disse na Comissão de Saúde da Assembleia da República que “sem condições de trabalho e materiais não é possível fixar jovens médicos”. “Mesmo os que aceitam vagas muitas vezes abandonam, fugindo ao drama das muitas urgências sem condições essenciais nem condições de tratarem com excelência os seus doentes”.

Daniel Travancinha sugeriu que “Setúbal é o retrato fiel do Serviço Nacional de Saúde: faltam médicos, faltam condições de trabalho e sobejam doentes”. Mas não é caso único no panorama nacional: depois de, a 1 de outubro, a urgência de ortopedia ter encerrado por as equipas de plantão não cumprirem sequer os serviços mínimos (os que devem ser assegurados durante uma greve), a escassez de profissionais de saúde voltou a ser motivo para, a 12 de outubro, a urgência geral do Hospital de Leiria (que não respondeu às questões do Observador) ter sido incapaz de atender todos os doentes que acorreram ao serviço, tendo de se cingir aos casos mais emergentes.

Essa foi a justificação que os sindicatos encontraram para esta situação e foi também uma das mencionadas no comunicado do Hospital Santo André: no dia anterior, um recorde de 404 doentes acorreram às urgências (o número mais alto do ano até agora), “sem que tenha sido possível, não obstante todos os esforços, alocar reforços médicos necessários para uma resposta compatível”.

Mas o hospital também apontou outros dois motivos: o volume de falsas urgências — às 17h de 11 de outubro, 70% dos 20 utentes à espera de atendimento no serviço de urgência geral não eram urgentes e podiam ser tratados em centros de saúde — e o facto de as urgências para doentes respiratóritos do Hospital das Caldas da Rainha, do Centro Hospitalar do Oeste, terem sido encerradas e reencaminhadas para Leiria a 11 de outubro — na verdade, só um paciente vindo das Caldas acabou por dar entrada em Leiria. Nesse hospital, o problema repetiu-se: as urgências encerraram porque não havia médicos que substituíssem os que já tinham cumprido 24 horas de trabalho.

Acesso ao serviço de Urgência Geral do hospital de Santo André, em Leiria, está normalizado

No mesmo centro hospitalar, mas no pólo de Torres Vedras, o sindicato denunciou que, entre 20 e 21 de setembro, o serviço de urgência não recebeu doentes (a não ser os mais críticos), uma vez mais por falta de médicos: havia apenas um especialista e um interno na equipa, o que não satisfaria os serviços mínimos, nem bastaria para atender todos os utentes que tentaram acorrer ao hospital.

Segundo o Sindicato Independente dos Médicos, a situação de rutura repete-se no Hospital Amato-Lusitano por funcionar muito à conta dos chamados tarefeiros — médicos externos que, não estando nos quadros, são chamados para preencher as lacunas que a falta de profissionais de saúde não conseguem colmatar. Diz o sindicato que a escala de medicina interna na urgência geral, por exemplo, é muitas vezes assegurada apenas por eles; e que o serviço de anestesiologista é quase exclusivamente assegurado por esses colaboradores externos. Como estes departamentos funcionam essencialmente à custa de tarefeiros, o entendimento dos sindicalistas é que estão em situação de rutura.

Com estas lacunas, Eugénia André preferiu organizar as escalas diretamente com os médicos disponíveis e aceitar todas as disponibilidades de prestadores de serviços. Assim, escusa de expandir as horas extraordinários dos médicos do quadro, como aconteceu entre 2013 e 2014, quando os médicos faziam regularmente turnos de 24 horas para segurar as pontas dos serviços de urgência, recorda.

Porquê o privado: mais do dobro do salário e melhores condições

Eugénia André, diretora clínica do hospital, confirmou ao Observador a falta de médicos — incluindo estrangeiros: Castelo Branco costumava receber médicos espanhóis, que durante a pandemia regressaram ao país de origem e acabaram por se restabelecer por lá — e a incapacidade de captar alguns deles no Serviço Nacional de Saúde. Afinal, o setor privado oferece condições de trabalho mais atrativas, incluindo um maior controlo sobre as horas extraordinárias e um ordenado superior à média de 1.200 euros que um médico especialista em início de carreira recebe por 35 horas de trabalho semanal. No privado, esse valor chega mesmo a ser mais do dobro. “O privado oferece no início da carreira um ordenado superior ao meu que estou no topo da minha carreira na função publica”, compara a médica.

As aposentações não têm sido um problema profundo no hospital — pelo menos não tanto como nos centros de saúde albicastrenses —, mas o facto de o corpo clínico ter uma média de idade que ronda os 50 anos pode ser desmotivador para um jovem especialista, acredita Eugénia Andrade. Além disso, como o internato termina quando os médicos já estão na casa dos 30 anos, a não ser que já tenham ligação à cidade, “só vão estar a modificar a vida toda deles e da família se for por algo essencial”: “E temos de ser honestos. O fundamental é, muitas vezes, a condição salarial que encontram”.

A diretora clínica também confirma o recurso frequente aos tarefeiros, mas garante que ocupação de escalas por colaboradores externos (todos eles especialistas e com um currículo aprovado pelos diretores de serviço, sublinha) não é sintomático de um sistema em falência, mas sim das condições específicas deste hospital. Entre os médicos de medicina interna, três das mulheres estão a amamentar — por isso, por lei, não devem trabalhar nos turnos noturnos — e outras duas foram diagnosticadas com uma doença grave que também as afastou destas escalas, sendo que só uma delas está de regresso. Com estas lacunas, Eugénia André preferiu organizar as escalas diretamente com os médicos disponíveis e aceitar todas as disponibilidades de prestadores de serviços. Assim, escusa de expandir as horas extraordinários dos médicos do quadro, como aconteceu entre 2013 e 2014, quando os médicos faziam regularmente turnos de 24 horas para segurar as pontas dos serviços de urgência, recorda.

Mesmo fora do esquema de urgência geral, o serviço de urgência em ginecologia e obstetrícia também recorre amiúde a tarefeiros, sempre para evitar uma maior sobrecarga dos trabalhadores contratados, confirma a diretora clínica. Essa é uma das áreas em maior esforço no hospital de Castelo Branco, a par dos serviços de medicina interna, ortopedia, pediatria e anestesiologia — no fundo, todas as especialidades que exigem uma presença contínua em urgência. “É um grande sacrifício, mas neste momento temos as escalas praticamente todas fechadas com o número de profissionais adequado”, assegurou Eugénia André: “E quando o quadro médico é reduzido, os colegas externos são tão médicos como nós e trabalham tal como os outros”.

Esta ginástica não terá afetado a resposta aos doentes, prossegue a diretora clínica: a lista de espera para atos cirúrgicas que se adensou durante a pandemia já foi recuperada; e as consultas nunca sofreram grande atraso porque muitas delas se realizaram telefonicamente ou por vídeochamada. “A pandemia em si veio trazer uma sobrecarga de trabalho. Trouxe à tona o cansaço dos profissionais”, interpreta Eugénia André: “Mas temos respondido às necessidades”.

O sindicato também refere as queixas relativas às infraestruturas do hospital, uma vez que o serviço de urgência pediátrica está a funcionar em contentores pré-fabricados enquanto decorrem as obras de ampliação, que começaram ainda antes da pandemia. Até à chegada da Covid-19 a Portugal, a urgência pediátrica funcionava no mesmo espaço que o serviço de urgência geral. Agora que a batalha contra o coronavírus entrou em acalmia, o plano é transferi-la para o espaço atualmente ocupado da consulta externa, que irá para as novas instalações assim que as obras terminarem. Eugénia André garante que essa transferência, já definitiva, ocorrerá entre abril e junho de 2022. Até lá, a urgência pediátrica continuará nos ditos contentores porque têm “ótimas condições” e mantêm o distanciamento seguro da ala de internamentos para Covid-19, garantiu a médica.

Os serviços de obstetrícia e ginecologia também foram os mais atingidos no Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, onde a urgência destas áreas esteve encerrada durante 48 horas, entre os dias 2 e 4 de outubro. O comunicado da administração do hospital é claro: a falta de médicos desta especialidade impediu que as escalas estivessem fechadas com clínicos suficientes para manter a urgência em funcionamento. Os doentes que acorreram à urgência de obstetrícia e ginecologia acabaram por ser transferidos para outros centros hospitalares — incluindo os de Faro e de Setúbal, que apresentam eles mesmos estas e outras fragilidades. O Observador procurou falar com a administração do hospital, sem sucesso.

"Numa altura em que hospitais e ACES [Agrupamentos de Centros de Saúde] deram uma demonstração da sua capacidade individual de resposta, com a pandemia, através autonomia que tiveram em várias áreas, vimos criar aqui uma direção executiva para o SNS que não vejo para o que é que serve dentro deste contexto global", acrescentou em declarações à Lusa.

Mais do que condições, SNS tem “problema de organização”, diz Temido

O Observador também tentou contactar o Ministério da Saúde a propósito destes casos, mas não obteve resposta. Recentemente, a ministra Marta Temido admitiu que o Serviço Nacional de Saúde sofria de um “problema de organização” e que as reformas ao sistema foram adiadas à conta da pandemia de Covid-19. Em entrevista à RTP1, a líder da pasta da saúde afirmou que “o SNS, como todos os serviços de saúde, teve uma pressão extraordinária ao longo dos últimos dois anos, mas os problemas não são novos, muitos deles têm um lastro considerável”.

Ministra da Saúde admite problema de organização no SNS

“No contexto da pandemia, um conjunto de reformas que estavam associadas à Lei de Bases da Saúde e ao programa do Governo não puderam ser realizadas”, prosseguiu Marta Temido, antecipando um período de maior tranquilidade que abrirá espaço às ditas alterações. Mas as mudanças que estão em cima da mesa — nomeadamente o regime de exclusividade para médicos e a criação de uma direção executiva para gerir a rede público — não tem tido a aprovação das instituições representantes dos médicos. O próprio bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, apelidou de “um disparate” o novo estatuto do SNS proposto pelo Governo.

“Numa altura em que hospitais e ACES [Agrupamentos de Centros de Saúde] deram uma demonstração da sua capacidade individual de resposta, com a pandemia, através autonomia que tiveram em várias áreas, vimos criar aqui uma direção executiva para o SNS que não vejo para o que é que serve dentro deste contexto global“, acrescentou em declarações à Lusa.

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