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[Artigo publicado originalmente a 28 de julho de 2016, a propósito dos 30 anos da fuga dos Cavaco, e republicado agora, depois da fuga de cinco presos de Vale dos Judeus, a 7 de setembro de 2024]
A 29 de Julho de 1986, a caravana da 48.ª Volta a Portugal em bicicleta chegava a Grândola, vila morena. Marco Chagas, do Sporting, venceu essa 6.ª etapa, embora a camisola amarela continuasse com um inglês de nome difícil de pronunciar e de escrever, Cayn Theakston. Porém, naquela tarde, o interesse pela prova velocipédica era mínimo. Nas ruas, nas lojas e nos cafés só havia um assunto de conversa. No dia anterior, seis perigosos reclusos tinham conseguido fugir da cadeia de Pinheiro da Cruz, a vinte quilómetros de Grândola, deixando para trás três guardas prisionais mortos e outros dois feridos com alguma gravidade. As autoridades montaram uma gigantesca operação de caça ao homem mas, um dia depois, enquanto se abriam as garrafas de champanhe no pódio da Volta, tinham perdido o rasto aos fugitivos.
A fuga
Por volta das quatro e meia da tarde de 28 de Julho, Germano Ramiro Raposinho, de 32 anos e a cumprir uma pena de 25 por homicídio, dirigiu-se ao edifício da portaria para entregar toalhas lavadas para a casa-de-banho. Apesar da reconhecida perigosidade, Raposinho, um algarvio filho de negociantes de peixe, trabalhava na lavandaria e, como tal, beneficiava de alguma liberdade de movimentos no interior da prisão. Recebido pelo guarda António José Paulino, atingiu-o de imediato com dois tiros de uma pistola escondida entre as toalhas. Outros cinco reclusos que aguardavam no pátio juntaram-se a Raposinho. No interior do edifício, destruíram o rádio para impedir comunicações com o exterior e arrombaram o armeiro de onde tiraram quatro G3 e cinco pistolas. Três guardas que tentaram travar a fuga foram abatidos a sangue-frio e outro ficou ferido. Outros três foram feitos reféns e usados como escudo pelos cadastrados para chegarem ao exterior. Aí entraram numa carrinha celular Ford Transit e, já na estrada, dispararam rajadas de metralhadora na direcção de uma bomba de gasolina nas imediações da prisão, com o provável intuito de provocar uma explosão que atrasasse a perseguição.
Poucos quilómetros à frente, no cruzamento de Grândola e do Carvalhal, mandaram parar um Ford Fiesta de matrícula espanhola (BI-4624-YO), expulsaram os ocupantes. Quatro dos fugitivos entraram para o carro tendo os outros dois seguido viagem na Ford Transit. Ainda precisavam de outro carro, que não demoraram a encontrar. Era um Ford Escort branco de um casal que ia de férias para o Algarve. A mulher só pediu que não fizessem mal ao gatinho que levava ao colo. Os fugitivos abandonaram o carro celular com os reféns lá dentro (um dos cadastrados terá defendido que os deveriam matar, tendo sido dissuadido pelos outros), dividiram-se em dois grupos de três e seguiram para Sul nas viaturas roubadas. A partir daí a polícia perdeu-lhes o rasto.
“A primeira parte da fuga”, escrevia o DN, “planeada com rigor militar, estava terminada.” Na altura ainda não havia maneira de se saber, mas “rigor militar” não era a expressão ideal para descrever o planeamento e a execução da fuga e ainda menos para descrever a desorientação das autoridades logo depois. Pinheiro da Cruz demorou meia hora a alertar o posto da GNR mais próximo, situado a 25 quilómetros, por só haver uma linha telefónica. Os serviços prisionais também não tinham fotografias dos evadidos pelo que nas primeiras horas os agentes no terreno andavam à procura de homens cujos rostos lhes eram completamente desconhecidos, isto apesar do extenso cadastro de quase todos e de alguns deles já terem experiência de fuga de estabelecimentos prisionais.
No final do dia, havia uma certeza: aquela era a fuga mais sangrenta na história das prisões portuguesas. De acordo com o DN, desde 1961 tinham fugido 374 presos, mas só numa ocasião se tinha registado uma vítima mortal, quando dois reclusos assassinaram um guarda da Penitenciária de Coimbra, precisamente em 1961. A situação era alarmante porque estavam a monte seis homens perigosos, fortemente armados e que não hesitavam em disparar. O país entrava numa espécie de paranóia colectiva.
Quem eram?
Do grupo de seis fugitivos faziam parte dois ex-pára-quedistas, Augusto José Ramalho, o “Tony”, e José Fernandes Gaspar, o “Zé Guerreiro”, o primeiro condenado a cinco anos por roubo e o segundo a vinte anos por assalto à mão armada. Carlos Alberto Ferreira Pereira, natural de Alenquer e conhecido como “Carlos da Malveira”, cumpria uma pena de dezassete anos também por assalto à mão armada. Os outros três eram algarvios: Germano Raposinho, que cumpria a pena mais pesada pelo homicídio de um funcionário de uma bomba de gasolina durante um assalto, era da Quarteira; Vítor Clemente Cavaco, de 32 anos, o “Vítor Ameixa”, condenado a 17 anos por vários roubos, era natural de Loulé; José Faustino Cavaco, o “Americano”, condenado a 19 anos pelo homicídio de um agente da PSP, Manuel Laginha, que teria sido seu cúmplice em vários assaltos, era de Salir, concelho de Loulé.
A imprensa adiantava que os algarvios pertenciam ao bando que ficou conhecido como as FP-27, uma quadrilha que entre 1982 e 1985 assaltara com violência mais de duas dezenas de bancos, casas de câmbio e hotéis por todo o país. Tinham sido igualmente responsáveis pela morte de dois guardas-fiscais durante um assalto a um restaurante na Praia da Falésia, em Albufeira, a 19 de Fevereiro de 1984. Na verdade, Faustino Cavaco era o único dos seis que podia legitimamente incluir essa distinção no currículo. Vítor Clemente Cavaco, que não tinha qualquer ligação de parentesco nem “profissional” com o outro, conhecia alguns dos associados de Faustino, mas apenas porque, sendo criminosos oriundos da mesma região, partilhavam alguns contactos.
Embora Raposinho fosse, desde o início, apontado como o “cérebro” da fuga, Faustino Cavaco era considerado o mais perigoso dos seis. Um agente da PJ envolvido na perseguição disse ao Expresso que entre os dois, Faustino e Raposinho, havia diferenças fundamentais: “O primeiro é um tipo frio, calculista e determinado. O segundo é um exibicionista puro, gosta é do folclore”. Além disso, os dotes de atirador de Faustino Cavaco eram quase lendários entre as autoridades e no meio criminoso. Dizia-se que se tivesse seguido a carreira de atirador desportivo teria sido campeão do mundo.
Com estes perfis, era estranho que a autoria dos disparos que vitimaram os guardas prisionais fosse atribuída a Raposinho. No dia seguinte à fuga, o DN e o Diário de Lisboa davam essa informação. O Correio da Manhã de 29 de Julho dizia que teria sido Faustino a disparar mas, no dia seguinte, uma testemunha dos acontecimentos, uma guarda prisional, confirmava que o autor dos disparos tinha sido Raposinho. Só alguns dias mais tarde, com a revelação de outros pormenores sobre a fuga, é que ficaria claro que o assassino dos guardas era Faustino Cavaco. De acordo com o Diário de Lisboa, a outra versão teria sido posta a circular para escamotear o facto de Raposinho gozar de um regime liberal incompatível com a sua reconhecida perigosidade, ainda por cima num estabelecimento de segurança máxima que era conhecido pelos presidiários como o “inferno”. Alguém tinha falhado e estava a tentar encobrir o erro.
Pinheiro da Cruz: um inferno
A Colónia Penal de Pinheiro da Cruz era um estabelecimento prisional de segurança máxima. Além disso, gozava de uma reputação assustadora entre os criminosos, mesmo entre aqueles que nunca lá tinham estado. Havia rumores de que os guardas, baptizados com o nome de “Esquadrão da Morte”, tinham matado reclusos à pancada e os tinham enterrado alegando depois que teriam fugido. À chegada, os novos reclusos eram avisados sobre aquilo que os esperava: “Isto aqui é uma cadeia para endireitar toda a gente. Se algum de vocês está com más ideias, aqui usa-se a lei do mais forte. Portanto, se algum tiver manias e se armar em esperto ou engraçado sofrerá as consequências. Aqui é à base da pancada, não se brinca, tudo quanto se faz é a sério. E mais, aqui também não há homens fortes. Se algum de vocês veio com essa ideia aconselho a deixarem os tomates lá fora. Se não o fizerem, irão saber o que é o regime de Pinheiro da Cruz.”
Mesmo que não fosse possível confirmar estas afirmações, era assim que os presidiários viam aquela cadeia. Com a fuga de seis reclusos, surgiam algumas questões: como é que num regime tão severo Germano Raposinho andava à vontade? Mais grave ainda era a questão da arma utilizada para dar início à fuga: como é que a arma tinha sido introduzida numa prisão de segurança máxima, indo parar às mãos de condenados altamente perigosos?
Enquanto os serviços prisionais denunciavam as más condições e a sobrelotação das cadeias, o ministro da Justiça, Mário Raposo, não tinha dúvidas de que a fuga se devera a “um conjunto de falhas humanas.” Essa constatação não o impediu de anunciar, no dia seguinte à fuga, a contratação de trezentos novos guardas prisionais e a construção de três novas cadeias, uma das quais de segurança máxima em Lisboa (a de Monsanto). Sem resultados concretos no que dizia respeito à captura dos evadidos era preciso fazer alguma coisa.
A batata não estava quente, estava em chamas. Um informador da prisão dizia ao DN que o aparecimento da arma nas mãos do Raposinho era “muito estranho” — “Há um traidor no meio disto. Nós gostaríamos de saber quem é.” Nessa altura, a imprensa divulgou o primeiro suspeito de auxiliar os reclusos. Teria sido um educador da cadeia a levar a arma para o interior a troco de duzentos contos pagos por Germano Raposinho. As funções de um educador passavam por acompanhar os reclusos, organizar os tempos livres e emitir pareceres sobre o comportamento e liberdade condicional. Dizia-se também que o educador em causa não teria o cadastro limpo e que teria sido mesmo acusado de violação da filha de um colega. As autoridades não confirmavam nenhuma das informações, mas os efeitos para a imagem da cadeia e da respectiva direcção eram claramente negativos.
A perseguição
A 30 de Julho, sob um clima de grande comoção, revolta e medo dos populares, foram a enterrar os três guardas prisionais abatidos, dois em Grândola e um em Melides. Luís Emílio Ambrósio, Manuel Pereira Matias Espada e Arlindo Pereira dos Santos deixavam viúvas e dois filhos cada um deles. No cemitério de Grândola, o padre rogava a Deus: “Senhor, abri-lhes as portas do paraíso”.
Logo no dia da fuga, tinha sido encontrado num comboio que chegara ao Barreiro vindo de Beja um carregador para oito munições de nove milímetros, calibre idêntico a três das cinco armas roubadas do armeiro, mas a polícia acreditava tratar-se de uma manobra de diversão e continuava convencida de que os seis homens tinham ido para o Algarve. E estava certa. No mesmo dia do enterro dos guardas, o Ford Fiesta de matrícula espanhola foi encontrado na serra algarvia, na Quinta do Freixo, entre São Bartolomeu de Messines e Paderne, a 180 quilómetros de Pinheiro da Cruz. Só dias mais tarde é que a imprensa reparou num pormenor inquietante e comprometedor para as autoridades. Aquele lugar ficava a três quilómetros da casa de Faustino Cavaco. No interior do carro havia manchas de sangue, o que levou a polícia a concluir que um deles estaria ferido embora não precisasse de tratamento médico urgente. Levantava-se também a hipótese de esses ferimentos terem sido causados por um desentendimento entre os fugitivos, o que acabou por não se confirmar.
Pouco depois, perto de Almancil, as autoridades encontraram o segundo carro usado na fuga, o Ford Escort da família que ia de férias para o Algarve. Na bagageira estava uma caçadeira e carregadores, além de comida e roupas dos legítimos donos do carro, mas de que os seis se tinham servido. Apesar de todo o aparato policial, das barreiras levantadas nas estradas e de um helicóptero a participar nas buscas, os evadidos conseguiram sacar outro carro, desta vez um Mitsubishi Colt de matrícula luxemburguesa, que seria encontrado no dia seguinte, 31 de Julho, perto do campo de golfe de Vilamoura. No interior da viatura, um bilhete de agradecimento destinado ao proprietário.
As manchetes do Diário de Notícias dos dias 1 e 2 de Agosto revelavam a montanha-russa em que se tornara a perseguição. Dia 1: “Apertado cerco no Algarve para detectar os bandidos.” Dia 2: “Caça ao homem esmorece sem resultados.” Um agente da Judiciária confessava ao Expresso: “Isto é inglório. Não só eles conhecem a zona melhor do que as palmas das mãos como se aproveitam de muitas fraquezas nossas. Estão-me é a dar um grande baile.”
Para confundir ainda mais as autoridades, multiplicavam-se as falsas pistas e os avistamentos um pouco por todo o país. Uma das denúncias era a de que um dos fugitivos andaria a passear com o filho às cavalitas numa vila perto de Faro. Afinal, era o irmão de um deles. Numa discoteca perto de Ourique teriam sido vistos cinco dos seis fugitivos. Três homens que tinham jantado num restaurante em Lagos sem pagar a conta também tinham sido apontados como fazendo parte do bando de fugitivos. Em Lagos, a empregada de uma sapataria entrou em pânico pensando que um homem que pedira para experimentar uns sapatos tamanho 42 era Germano Raposinho. A polícia encontrou o indivíduo à noite, acompanhado de outro. Não resistiram às autoridades e depois descobriu-se que se tratava de dois pregadores do evangelho que aparentemente sofriam de perturbações mentais.
A primeira captura
A polícia acreditava que, naquela altura, os seis homens já se tivessem separado. Juntos, eram um alvo mais fácil, embora ainda esquivo. Já tinham cometido vários erros, mas com sorte e alguma inépcia das autoridades nenhum fora suficientemente grave para levar à sua captura. De uma forma ou de outra, tinham conseguido escapar. Só que a sorte não podia durar para sempre e chegaria a altura em que um erro seria decisivo. Esse erro foi cometido pelo elemento mais provável, Germano Raposinho, o “exibicionista puro”.
Na noite de 1 de Agosto, às duas da manhã, Maria Helena Raposinho, irmã de Germano, ouviu alguém bater à porta da sua casa, na Quarteira. Era o irmão. Estava com saudades da família, sobretudo dos sobrinhos. Contou-lhe como tinham passado os dias em fuga: “Estávamos escondidos no cemitério, o carro guardado debaixo de umas árvores, ali perto, e quando vimos o helicóptero andar às voltas lá por cima, à nossa procura, desatámos a rir que nem uns perdidos. Tudo bem disposto! Ainda por cima havia montes de carne assada e roupa com fartura nos carros que tínhamos roubado aos espanhóis e a uns portugueses. Fartámo-nos de rir com aquilo”.
Regressou no sábado, 2 de agosto. Tinha planos de fugir para o Brasil e contou à irmã que os Cavacos se tinham separado do grupo: “Os sacanas saíram os dois, numa motorizada, para irem buscar documentos e papéis para a gente todos e deram mas foi à sola, nunca mais lhes pusemos os olhos em cima.” Pediu também à irmã que lhes arranjasse um lugar para se esconderem. Maria Helena Raposinho alugou um anexo na Rua da Cabine, em Quarteira. Foi aí que, no domingo, se refugiaram os quatro fugitivos que permaneciam juntos: Raposinho, Carlos da Malveira e os dois ex-pára-quedistas, Augusto Ramalho e José Fernandes Gaspar. Na segunda-feira à tarde, os dois primeiros saíram do Algarve em direcção a Lisboa no carro da mãe de Raposinho, um Toyota Corolla azul-metalizado, supostamente para entrarem em contacto com antigos comparsas de Carlos da Malveira.
No mesmo dia, a polícia levou Maria Helena Raposinho para interrogatório. Ao fim de algumas horas, as autoridades tinham a primeira informação exacta sobre o paradeiro dos fugitivos. Às primeiras horas de terça-feira, dia 5 de Agosto, foi montado um cerco ao anexo na Rua da Cabine, num lugar a que curiosamente chamavam “zona dos cavacos”, porque havia ali muita lenha.
A polícia tentou negociar com os homens, desconhecendo ainda quantos estavam barricados. Ramalho e Gaspar, os únicos ocupantes do anexo, decidiram responder a tiros de metralhadora. “Parecia o far-west”, disseram as testemunhas. A troca de tiros com a polícia terá durado cerca de 45 minutos, ao fim dos quais Gaspar resolveu entregar-se. Ramalho disse-lhe que não seria capturado. Quando Gaspar apareceu na rua, ouviu-se um tiro. O amigo tinha-se suicidado.
Nos dias seguintes, familiares de Augusto Ramalho levantaram dúvidas quanto à tese de suicídio, mas alegavam não ter dinheiro para apurar os factos. “A polícia é que te matou… dizem que te mataste mas é mentira”, gritou uma familiar durante o funeral, em Setúbal. No entanto, os resultados da autópsia confirmavam o suicídio. A 7 de Agosto, na sequência da fuga de Raposinho e de Carlos da Malveira, foi montado um enorme dispositivo policial para controlar todos os acessos a Lisboa. O Toyota Corolla teria sido visto pela última vez na recta de Pegões.
No dia seguinte, rolava a primeira cabeça. Silvano da Costa, director de Pinheiro da Cruz desde 1974, foi demitido e enviado para Lisboa por “conveniência de serviço” devido a “declarações e actuações desfasadas da realidade.” O ministro da Justiça era claro: “Os evadidos da Colónia Penal de Pinheiro da Cruz gozavam de uma situação prisional profundamente anormal, que tem de ter responsáveis”. Mais do que os outros, era esse o caso de Germano Raposinho. O Expresso registou declarações dos guardas prisionais que o vigiavam há nove anos e que o classificavam como um preso exemplar, “invulgarmente comunicativo e com simpatias generalizadas”. Segundo o jornal, a opinião era partilhada por Silvano da Costa que acreditou sempre que “era possível recuperá-lo” e, como tal, o colocou em regime especial. Agora, pagava essa decisão com o afastamento das suas funções.
Raposinho enjaulado
A 10 de Agosto terminava a Volta a Portugal com a consagração de Marco Chagas, que assim conquistava a sua quarta vitória na prova, um recorde. Na manhã seguinte, na Reboleira, também chegava ao fim a fuga de Germano Raposinho e Carlos da Malveira. Ao contrário do que as autoridades tinham divulgado, os dois tinham mesmo conseguido entrar em Lisboa e sempre com o mesmo carro, o Toyota Corolla, ao qual só tinham mudado a matrícula. Diriam mais tarde que estiveram quase a ser mandados parar numa operação stop na Ponte 25 de Abril destinada a apanhá-los, mas que a polícia, convencida de que iriam tentar entrar em Lisboa dentro de um camião, mandara seguir o carro. Depois tinham-se instalado num apartamento propriedade do marido da afilhada de Carlos. De acordo com uma vizinha, tinham o frigorífico “cheio de comida, tinham um saco de batatas ao pé do fogão e até tinham Martini”.
O Diário de Lisboa contava que os dois evadidos tinham passado a semana a ler jornais, a ouvir rádio e a ver televisão e revistas pornográficas. Carlos da Malveira foi apanhado por volta das oito da manhã logo depois de ter comprado o Correio da Manhã e A Bola num quiosque. Poucos minutos depois, as autoridades convenciam Raposinho, que estava no apartamento, a entregar-se. Nenhum dos dois ofereceu resistência. O repórter do vespertino contava que a pacatez suburbana da Reboleira tinha sido alterada pela chegada de inúmeros carros da polícia, incluindo os “supermirafiori” da PJ: “Por um dia, a Reboleira saía do triste anonimato de dormitório, para se converter em mais um palco das acções policiais com vista à recaptura dos evadidos de Pinheiro da Cruz.”
O inspector da PJ responsável pelas investigações, Sousa Martins, afirmou que “em tempos um cadastrado com ligações aos homens em fuga tivera aquele apartamento sob aluguer”, uma informação que tinha sido decisiva para a captura dos dois evadidos. Mas mesmo que isso fosse verdade, o facto é que, uma vez mais, a polícia tinha conseguido arrancar a informação a Maria Helena Raposinho. No sábado antes de ser apanhado, Raposinho ligou à irmã e deixou-lhe um número de telefone caso ela precisasse de entrar em contacto com ele.
No domingo, a polícia já sabia onde os homens se encontravam. Maria Helena Raposinho contou tudo à revista do Expresso de 15 de Agosto: “Não resisti à selvajaria deles, sabe? Fizeram-nos a vida negra, rebentaram com a casa da minha mãe, puseram polícias lá dentro dia e noite, sem respeito por nada nem ninguém, ameaçaram-nos de toda a maneira. E eu não aguentei e acabei por confessar onde é que eles estavam.”
E acrescentava: “É preciso dar a conhecer o que é esta polícia e os atropelos que faz a torto e a direito só para dar a entender que sabe tudo, que tem tudo controlado, que é a maior! E é mentira! Só à nossa custa é que conseguiram apanhá-los!” Para Maria Helena, a prova mais cabal da desorientação das autoridades era o facto de não fazerem a mínima ideia do paradeiro dos Cavacos. A polícia negou todas as acusações de brutalidade, mas não podia esconder as dificuldades para capturar Faustino e Vítor.
Os Cavacos invisíveis
Com a captura de quatro dos seis fugitivos, outros pormenores sobre a fuga começavam a emergir. Os serviços prisionais desmentiam inequivocamente o envolvimento de qualquer funcionário na preparação da fuga. Raposinho tinha afinal usado uma pistola de madeira pintada com graxa e feita na oficina de carpintaria da prisão. O autor dos disparos mortais tinha sido mesmo Faustino Cavaco, usando para tal uma arma que em tempos enterrara num terreno perto da sua casa.
Dias depois, soube-se que tinha sido a mulher de Faustino a desenterrar a arma e a entregá-la a uma irmã de Raposinho e à mulher de Vítor Cavaco, que posteriormente tinham introduzido a pistola na prisão através de outro recluso. Na mesma altura, por coincidência, o Correio da Manhã publicava uma carta deixada por Augusto Ramalho, que se suicidara durante o cerco em Quarteira. A carta era quase um manifesto sociológico: “É absolutamente verdade que não somos nenhuns meninos do coro, mas também lhes afirmo que não somos os terríveis criminosos de que todos falam”.
Num registo filosófico e humanista, culpava o sistema por aquilo em que se tinham tornado: “Foram as cadeias que destruíram o que de bom nós tínhamos, que nos transformaram naquilo que presentemente somos”. Acrescentava que a “sangrenta evasão de Pinheiro da Cruz foi um reflexo do desespero, da raiva e da revolta de homens maltratados, que não pretendiam mais do que a almejada e sagrada liberdade”. Mais importante, de um ponto de vista da investigação, era a confirmação definitiva de que os guardas tinham sido baleados pela pistola de Faustino Cavaco. A imprensa dizia que a arma, uma Walter de calibre 7.65, teria pertencido a Manuel Laginha, o agente da PSP e comparsa do bando de Faustino Cavaco, assassinado por este em 1984 e cujo corpo fora encontrado na Serra do Caldeirão. Estava perto da verdade.
A 14 de Agosto, certamente motivada pelas informações de Raposinho, a polícia delimitara um (enorme) triângulo no Algarve – entre São Marcos da Serra, Loulé e Alcoutim – onde acreditava que os Cavacos estariam escondidos. A captura estaria por horas. Não estava. Um mês depois da fuga, não havia rasto dos dois homens mais procurados do país e já nem havia a certeza de que estivessem no Algarve. Tanto podiam estar a Norte como no estrangeiro. O semanário O Jornal adiantava a possibilidade de terem fugido a nado para Espanha e o Expresso ironizava dizendo que “talvez nem sejam os Cavacos quem esteja a meter mais água”. Já O Século dizia que estariam escondidos na Serra do Caldeirão, numa das muitas aldeias desabitadas daquela zona. As declarações de uma fonte da Judiciária revelavam algum desalento: “Pode ser amanhã como pode ser daqui a um ano […] As coisas esfriaram e já não há aquele entusiasmo”.
Uma coisa era certa, a polícia sabia com quem estava a lidar. Um agente da Judiciária disse ao Expresso: “Tem-se dado do Faustino Cavaco a ideia de um indivíduo muito bom no gatilho mas muito fraco de cabeça. Não é a nossa opinião. O simples facto de ele ter abandonado os companheiros de fuga logo nos primeiros dias após a evasão demonstra que ele percebeu perfeitamente que não poderia ir longe num grupo tão numeroso.” Para a opinião pública, o homem mais temido do país naquele mês era, afinal, um desconhecido.
Faustino Cavaco: uma vida que dava dois filmes
A vida de Faustino Cavaco até à fuga de Pinheiro da Cruz pode dividir-se em duas partes: a parte do crime, uma espécie de “Tudo Bons Rapazes” à algarvia, e a parte da infância, um drama neo-realista. Faustino nasceu a 23 de Fevereiro de 1960 perto de Loulé. Tinha ele uns cinco anos quando o pai foi a salto para França. Faustino e a mãe juntaram-se-lhe um ano depois. A primeira grande tragédia da sua vida ocorreu numa viagem de autocarro para Portugal. Numa paragem perto da fronteira de França com a Espanha, a mãe de Faustino morreu atropelada. Mais tarde, ainda em França, o pai juntou-se com uma mulher a que Faustino chamava a “Vaca Loura”. A madrasta, que tinha um filho sete anos mais velho que Faustino e que viria a ser um dos seus companheiros de crime, infernizava-lhe a vida.
Aos treze anos, Faustino voltou sozinho para Portugal e foi viver com a irmã e o cunhado, no Algarve. Completou a quarta classe enquanto ajudava nas tarefas de cuidar da terra e dos animais. Depois, contra a vontade do pai, abandonou a escola e foi para aprendiz de carpinteiro. Ainda antes de atingir a maioridade começou a trabalhar por conta própria. Em Agosto de 1978, era um homem casado, trabalhador, mas também amigo de noitadas: “Se era para ir a uma boîte, ia; se era para ir a um bar, ia; e assim comecei a entrar num sistema vicioso”. Já após o nascimento da filha e sempre no mesmo registo de trabalho e noitadas, Faustino começou a ter problemas em casa e com os negócios. Também gastava muito dinheiro no vício das provas de tiros aos pratos e aos pombos. Depressa se revelou um excelente atirador.
Para piorar tudo, reapareceu na sua vida Apolinário de Jesus Barros, conhecido como Bénard, o filho da madrasta, que já havia estado preso em França por vários assaltos. Foi ele que o pôs em contacto com Tomé Bárbara, o “Doutor” ou o “Patrão”, o cabecilha do grupo que ficaria conhecido como FP-27. A precisar de dinheiro por causa das dívidas acumuladas, Faustino resolveu alinhar com os outros num assalto, embora se recusasse a assaltar casas particulares. Queria dinheiro que se visse. Depois de algumas hesitações, assaltaram uma agência de câmbios. Faustino ficou com 940 contos, o suficiente para pagar as dívidas e reorganizar a vida, só que o golpe tinha corrido tão bem que ninguém quis parar. Foi nesse primeiro assalto que Faustino Cavaco ganhou a alcunha de “Americano”. Para não despertar atenções numa zona repletas de turistas, o “Doutor” tratou-lhe da indumentária: “Uma camisa garrida às flores, um boné, óculos, peúgas brancas e ténis.” Às costas, um saco com uma caçadeira de canos serrados.
A 9 de Outubro de 1982, a quadrilha fez o primeiro das duas dezenas de assaltos a bancos, ao Fonsecas & Burnay de Vilamoura. Foi o que lhes rendeu mais, cerca de oito mil contos. Muitas vezes, depois dos golpes, o grupo reunia-se em restaurantes e bares para festejar. Entre assaltos e as funções de motorista de Tomé Bárbara, a vida de Faustino Cavaco era passada em boîtes, sessões de pancadaria e batota. Depois de mais cinco assaltos a bancos, incluindo um em Beja e outro em Leiria (no qual Faustino não terá participado), na noite 19 de Fevereiro de 1984, Faustino, Adelino Farrajota (proprietário de um café onde o grupo costumava juntar-se) e Manuel Laginha, o agente da PSP, assaltaram um restaurante na Praia da Falésia, perto da Aldeia das Açoteias. Para quem estava habituado a assaltar bancos, roubar equipamento de hotelaria parecia um golpe sem sentido. No entanto, Faustino alinhou. A meio do assalto, apareceram dois guardas-fiscais que faziam uma ronda naquela zona. Faustino ameaçou-os apontando-lhes a caçadeira mas um deles reagiu e disparou. Faustino atirou sobre os dois guardas, que caíram de imediato. Ao abandonarem o local, os homens não tinham a certeza de que os agentes estivessem mortos, mas levaram-lhes as armas. Seria uma dessas armas, e não a de Manuel Laginha, a ser utilizada na fuga de Pinheiro da Cruz dois anos mais tarde.
Tempos depois, com a PJ a apertar o cerco, o agente da PSP começou a dar sinais de intranquilidade, dizendo que estava disposto a entregar-se e a confessar tudo. Para evitar medidas mais drásticas, os outros arranjaram-lhe documentos falsos, algum dinheiro e mandaram-no para o estrangeiro. Ao fim de poucas semanas, Laginha regressou sem dinheiro e novamente decidido a entregar-se. Não havia dúvidas: tinha de ser deitado abaixo. Faustino e Adelino Farrajota trataram do assunto. O corpo foi atirado para uma fisga de uma rocha na serra do Caldeirão.
A 4 de Dezembro daquele ano, Faustino Cavaco participou pela última vez num assalto a um banco, uma dependência da Caixa de Crédito Agrícola, em Pombal, que rendeu 1600 contos. Menos de um mês depois, a 2 de Janeiro de 1985, Faustino e António Pires, outro elemento do bando, passearam por Lisboa num Renault 5. Perto da Biblioteca Nacional foram mandados parar por um carro com agentes da Judiciária que desconfiaram que a matrícula era falsa. Dois dos agentes pediram os documentos a António Pires, que conduzia o carro, enquanto o outro pediu a Faustino que saísse da viatura. Já no exterior, o polícia exigiu a Faustino que mostrasse o que tinha dentro de uma pochette e este tirou a arma, apontou-a ao agente e desarmou-o. Aproximaram-se de Pires e dos outros dois polícias, mas nesse momento um deles conseguiu atirar sobre Faustino, acertando-lhe no ombro e no maxilar. Era o fim da carreira de Faustino Cavaco enquanto assaltante de bancos. A 10 de Fevereiro de 1986, foi condenado no Tribunal de Loulé a 19 anos e meio de cadeia. A 14 de Fevereiro foi transferido para Pinheiro da Cruz.
A captura
Quatro meses depois da fuga, a polícia continuava sem pistas sobre o paradeiro dos Cavacos. Entretanto, depois de um período de paranóia colectiva, em que se sucediam os avistamentos de Cavacos um pouco por todo o país, o caso caía aos poucos no esquecimento. Logo no final de Agosto, uma granada rebentou o carro de um capitão do Exército, em Odivelas. O atentado, o nono em Portugal naquele ano, foi reivindicado por dois grupos, a Organização Revolucionária Armada e os Comandos Armados de Libertação. A 19 de Outubro de 1986 morria o Presidente de Moçambique, Samora Machel, num acidente de aviação. Nas semanas seguintes, a imprensa veiculou todas as teorias sobre o caso, desde o envolvimento dos sul-africanos a uma manobra dos soviéticos. Finalmente, a 24 de Novembro, e de forma completamente inesperada, Faustino Cavaco e Vítor Cavaco foram capturados em Cruz de Assumada, perto de Loulé, numa moradia pertencente a um jardineiro da Câmara de Loulé, Rogélio Brito, que disse à imprensa que os fugitivos estavam ali há 45 dias: “Foi um mês e meio sem viver.” Quando saía para o trabalho, ficavam em casa a mãe, a mulher e a filha. Os evadidos “nunca saíram para a rua e só nos deram uma vez ou duas dinheiro para comprarmos comida” mas tinham sido sempre correctos. Fumavam muito, pediam jornais e viam os noticiários e as corridas, sobretudo de motas. Ao Expresso, Rogélio Brito adiantava que os Cavacos pareciam esperar “qualquer coisa que acabou por não chegar.” Segundo o inspector da PJ, Sousa Martins, que coordenou as operações, estariam à espera de ajuda de França, mais precisamente dos cúmplices de Faustino Cavaco.
Às 12h30 daquele dia, dois agentes aproximaram-se de Rogélio. “Quem é que você tem lá em casa?”, perguntaram-lhe. Quando o homem entrou na habitação, os Cavacos perceberam que tinha chegado ao fim a fuga de 119 dias. Ao contrário do que chegara a prometer ao jardineiro, Faustino não se matou. Entregou-se sem resistência. A polícia não teve de disparar um único tiro. Talvez tenha pensado no que a filha lhe dissera semanas antes, quando a encontrou a caminho da escola: “Eu só te queria pedir para nunca te matares, porque senão nunca te perdoarei”.
Vida e Mortes de Faustino Cavaco
Este pormenor – bem como a história da sua vida, os abusos sofridos na prisão e as circunstâncias da fuga – foi revelado por Faustino Cavaco num livro publicado em 1988. Vida e Mortes de Faustino Cavaco, organizado pelo jornalista Rogério Rodrigues, que veio a ser um dos fundadores do Público, foi um enorme sucesso de vendas. Em declarações ao Observador, Rogério Rodrigues diz que o acordo estabeleceu que os direitos de autor fossem para a filha de Faustino Cavaco. Rogério quis apenas ficar com 12 exemplares: “Hoje não tenho nenhum”. Diz que se limitou a organizar o livro, cujo original lhe chegou às mãos através de um contacto que tinha na Penitenciária de Coimbra, onde Faustino Cavaco cumpria pena. “Ficaram de fora apenas algumas partes mais violentas que não foram autorizadas, em que ele descrevia algumas coisas que os guardas lhe tinham feito, como mijarem-lhe na boca”, disse.
Para o jornalista, os outros viam Faustino “como um temperamental”, mas acredita que a personalidade daquele homem tinha sido marcada pelo que sofreu, “primeiro com a morte da mãe e depois às mãos da madrasta.” Encontrou-se várias vezes com ele antes da publicação do livro e diz que “era um homem muito especial, muito interessante”. Após a sua libertação, em 1999, Faustino Cavaco terá investido numa criação de caracóis, terá explorado duas casas de alterne e, por fim, terá tido uma empresa de gestão de condomínios, sempre no Algarve. Nunca voltou a ter problemas com as autoridades. “Ainda me convidou para o ir visitar ao Algarve, mas nunca mais nos encontrámos”, diz Rogério Rodrigues, que sabe quem foi o homem da PJ que obteve a informação do esconderijo dos Cavacos, mas não revela o nome. “Pagou a uma fonte”, alguém que os conhecia embora não fizesse parte do bando de Faustino. Este desconfiou dos seus antigos cúmplices com quem contactara para que os ajudassem, de um tipo que ficara de lhes tratar dos documentos e até das informações dadas à polícia por Raposinho.
Quem quer que tenha sido o informador, contribuiu para o fim de uma perseguição que se arrastou durante quatro meses, de Julho a Novembro de 1986, durante os quais a polícia se mostrou incapaz de localizar os Cavacos. Foi nesse período que o retrato de Faustino Cavaco, o homem que assassinara três guardas prisionais a sangue-frio, entrou para galeria dos criminosos mais temidos de Portugal e o seu nome para o folclore criminal do país.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015