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Ferro foi entrevistado em direto na rádio Observador em direto na manhã de quarta-feira.
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Ferro foi entrevistado em direto na rádio Observador em direto na manhã de quarta-feira.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Ferro foi entrevistado em direto na rádio Observador em direto na manhã de quarta-feira.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Ferro Rodrigues: "No MP há uma cultura justicialista e de ataque a figuras importantes nos partidos e no Estado"

Ferro Rodrigues critica o PS por não ter aproveitado a maioria absoluta para reformar a Justiça. Diz que Marcelo e Costa se precipitaram nesta crise e deixa avisos a uma reedição da "geringonça".

Lançou as suas memórias em livro há cerca de um mês, ainda antes das últimas semanas turbulentas da política nacional terem arrancado, lançando o partido que liderou numa disputa interna.  Nesta entrevista ao Observador, Eduardo Ferro Rodrigues disse que não tomará parte na atual luta no PS, embora deixe um conselho “a quem a queria ressuscitar” a geringonça: “Faça um balanço da parte positiva e da negativa.”

Na conversa transmitida em direto na rádio Observador, Ferro mostra-se desconfortável com a precipitação tanto do primeiro-ministro como do Presidente da República nas últimas semanas e defende que António Costa devia até ter continuado, exigindo antes um esclarecimento por parte dos mais altos órgãos da Justiça sobre o caso que o envolve. O antigo líder socialista vê “coincidências perturbadoras” entre os atuais casos e o processo Casa Pia, responsabiliza a Justiça por ter deitado abaixo o Governo e ainda culpa a maioria socialista de nada ter feito para reformar o sistema judicial nos anos em que teve condições, ou seja, maioria absoluta.

Lançou recentemente as suas memórias, no livro “Assim vejo a minha vida”, e esta entrevista foi marcada a esse propósito, antes ainda da demissão do Governo e de este novo tempo que torna incontornável que comecemos por aqui. No último sábado teve um momento de regresso à vida partidária, na Comissão Nacional do PS. Tenciona estar mais ativo e tem um candidato preferido nestas diretas do PS?
Esta entrevista foi combinada há dois anos, quando deixei de ser Presidente da Assembleia da República por decisão própria, tendo estado num almoço com o Presidente da República e o primeiro-ministro à beira do final de negociações que se esboroaram com o Bloco de Esquerda e o PCP, sabendo-se que a seguir se iriam marcar eleições antecipadas — um cenário parecido com o que tivemos agora. Depois, resolvi entrevistar-me a mim próprio e escrever as minhas memórias, por isso é que só passado dois anos estou aqui.

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E sobre a atual disputa no seu partido?
Fui à Comissão Nacional do PS, onde disse que só iria se alguma coisa de muito complicado acontecesse. E aconteceu, por isso fui.

Mas neste momento vai tomar alguma posição?
A posição que tomei foi a de não tomar posição. Considero muito importante para os socialistas escolherem o seu secretário-geral, mas não me quero envolver nessa luta interna. Não é a primeira vez que procedo assim, aconteceu o mesmo em duas outras eleições internas, de José Sócrates contra Manuel Alegre e de António José Seguro contra Francisco Assis. Na altura em que apoiei António Costa contra António José Seguro isso aconteceu também com a generalidade dos secretários-gerais antigos. Nesta altura, a disponibilidade que tenho para a reflexão e intervenção política não é propriamente partidária. É no sentido de contribuir com quem queira, mesmo que de outros partidos, para agir no sentido da defesa do Estado de Direito democrático.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Na sua vida política houve vários momentos em que é possível fazer um paralelismo quase perfeito com o que se passa hoje. Por exemplo, em 2001 António Guterres demite-se em dezembro e Ferro Rodrigues vai a votos em diretas em janeiro e depois às legislativas de março. No livro conta que avançou com uma sensação de “sacrifício inesperado e inexplicável”. Depois do pântano, o PS perdeu as eleições. Está condenado ao mesmo agora?
Não tenho a certeza, porque as situações são muito diferentes. O país evoluiu muito. Explico nestas memórias que fiz tudo para evitar ser candidato praticamente único — ainda houve uma candidatura, mas muito minoritária; a crise também foi inesperada, porque foi como consequência das eleições autárquicas; e a questão do pântano não tem nada a ver com relações promíscuas entre Estado e sociedade, mas com o pântano político que existia porque o Governo tinha um empate absoluto na Assembleia da República e precisava de um voto do chamada deputado do queijo limiano. E António Guterres achou que continuar nesse processo seria pantanoso.

Nessa altura da corrida à liderança há uma concertação entre si, Jaime Gama e António Costa para decidir a liderança do PS. Devia ter havido uma candidatura de unidade desta vez?
Nessa altura, eu e o António Costa conseguimos convencer Jaime Gama a avançar. Ele chegou a convocar as televisões e a avançar, mas foi uma candidatura que não durou sequer 24 horas, porque concluiu quando estava em casa, em reflexão, que não tinha condições familiares nem políticas para avançar. A partir daí estava inscrito nos astros que teria de ser eu a avançar.

Mas houve uma tentativa de avançar em unidade.
Foi mesmo uma candidatura de unidade, uma vez que todos os altos quadros estiveram no lançamento da minha candidatura. A situação é completamente diferente, as razões da crise são diferentes. Nesta situação há muito tempo que não era segredo para ninguém que havia uma candidatura assim que fosse possível haver eleições no PS, que era a de Pedro Nuno Santos. É normal que pessoas que não se revissem optassem por outro candidato. Foi tão normal haver unidade há 22 anos como é haver vários candidatos em 2023.

Mas tendo em conta que há eleições legislativas tão próximas, é aconselhável que haja um clima mais crispado entre os candidatos? José Luís Carneiro, por exemplo, veio recordar a famosa frase de Pedro Nuno Santos sobre não pagar a dívida e pôr as pernas dos banqueiros alemães a tremer. Isso não pode sujar a imagem de candidatos a primeiro-ministro?
Quem está na política muito ativa e faz muitas intervenções, o que normalmente acontece com os dirigentes de topo, diz sempre qualquer coisa que não correu bem. Contra mim falo, no período em que fui secretário-geral do PS e também Presidente da Assembleia da República, e disse muitas vezes coisas precipitadamente, e que mais tarde, se pudesse, retirava. Falo disso no livro com uma certa auto-ironia e auto-crítica. Julgo que depois das eleições haverá certamente unidade no PS, porque o que está em jogo é também muito importante. Para mim, é mais importante do que as eleições: antes, durante e depois das eleições haver um esforço nacional, pluripartidário, para defender o Estado de Direito democrático.

"Compreendi [a demissão de António Costa] mas não me parece que tenha sido uma atitude refletida. Em todo este processo houve muita precipitação"

António Costa fez bem em demitir-se?
Eu disse logo que não e reafirmei-o na Comissão Nacional. Compreendi mas não me parece que tenha sido uma atitude refletida. Em todo este processo houve muita precipitação.

Acha que foi impulsivo na demissão?
A pergunta tem de ser feita a António Costa, mas eu, embora compreendendo as razões — não é propriamente todos os dias que acontece uma ofensiva do Ministério Público, e policial, sobre a residência do primeiro-ministro. Era normal que ele tivesse equacionado a questão. Mas acho que houve uma certa precipitação numa decisão sem recuo, a partir do momento em que foi tornada pública. Do meu ponto de vista, também houve alguma precipitação por parte do Presidente da República em ter aceitado à primeira essa demissão. Todos nos interrogamos sobre se a informação que depois tivemos com o despacho do juiz da instrução, que foi um juiz das liberdades e considerou que não devia haver prisões preventivas, se as decisões teriam sido as mesmas ou não. Ficaremos sempre com essa dúvida.

António Costa demitiu-se apoiado na questão do processo-crime contra ele, dizendo que era a integridade do primeiro-ministro que estava em causa e não havia condições para manter o cargo.
Compreendo, embora julgue que se ele se tivesse mantido e o Presidente não tivesse sido tão rápido, as condições para pressionar bem a que a Justiça dissesse de sua justiça — ou seja, que a procuradoria explicasse um pouco melhor o que estava em causa e sobretudo o Supremo Tribunal de Justiça deveria dar mais informações e se ele se tivesse mantido a pressão para isso seria mais eficaz.

Essas entidades já deviam ter falado?
Neste momento aquilo a que assistimos é qualquer coisa muito estranha num país democrático. Pelo Ministério Público fala o sindicato dos magistrados do Ministério Público, pelo Supremo Tribunal de Justiça fala o sindicato dos magistrados judiciais. Não me parece que a função dos sindicatos sejam a de fazerem comunicados a substituírem-se aos órgãos de soberania. Lembro que o senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça é, suponho, o quarto na hierarquia do Estado português e tinha obrigação, pelo menos, de junto do primeiro — o Presidente da República — informar claramente se o que está em causa é uma coisa que vai ser arquivada, se é uma coisa com pouca importância, se tem muita importância…

Mas a investigação está em curso. Não seria precipitado?
Mas qual investigação?

Foram feitas buscas.
Mas todas as informações que temos são que o processo, a existir um que não seja arquivado contra o primeiro-ministro, se baseia em escutas. Essas escutas não precisam de mais investigação, estão lá. Saber até que ponto revelam indícios graves ou não é uma coisa que não necessita de mais tempo ou de investigação.

"Aqueles que têm a responsabilidade direta por esta investigação têm obrigação de dizer o Presidente da República, e o Presidente ao país, o que é que se vai passar e quais são as circunstâncias, além das aparências e das fugas de informação"

Esta semana, António Costa disse que não pode exercer cargos públicos enquanto esta questão não estiver esclarecida. Como é que vê o futuro político dele?
Vejo com otimismo, porque acho que a questão vai ser esclarecida. Nem me passa pela cabeça que não seja esclarecida com toda a rapidez. Isto não é uma investigação qualquer. Levou à demissão de um primeiro-ministro e à dissolução de uma Assembleia da República com maioria absoluta. Portanto aqueles que têm a responsabilidade direta por esta investigação têm obrigação de dizer o Presidente da República, e o Presidente ao país, o que é que se vai passar e quais são as circunstâncias, além das aparências e das fugas de informação.

A apresentação do seu livro foi muito marcada pela história da amizade e boa cooperação institucional com Marcelo Rebelo de Sousa quando eram as duas primeiras figuras do Estado. Acha que ele tem estado bem nesta crise? Já disse que foi demasiado rápido na resposta ao primeiro-ministro. O que é que ele poderia ter feito de diferente?
Poderia ter aguardado por mais esclarecimentos da procuradora-geral da República e do presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Eu calculo que a posição do primeiro-ministro também fosse irredutível. Mas podia ter tentado mantê-lo durante mais uns dias, até que houvesse uma clarificação nessas instâncias. Não conheço as circunstâncias diretas da conversa entre os dois, pelo que não quero desenvolver esse tema, mas acho que foi tudo excessivamente rápido. Compreendo, quando se está debaixo de uma tal pressão como estava o primeiro-ministro, que tivesse ficado com muita vontade de deixar à Justiça o que é da Justiça, mas ter-se-ia ganho em ter havido um pouco mais de reflexão.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Estava a dizer que não conhecia os contornos da conversa entre os dois mas Marcelo Rebelo de Sousa já foi revelando um bocadinho dessa conversa. Acha que ele tem estado bem nessa parte da divulgação de conversas, que até o primeiro-ministro já veio criticar?
Isso é uma derivada da derivada do que realmente se passou. Não me interessa muito, nem em termos informativos. A única coisa que sei é que há segredo de Estado nas reuniões do Conselho de Estado e nas reuniões entre o primeiro-ministro e o Presidente da República, e todos devem fazer um esforço para o respeitar.

Em 2004, perante a saída do primeiro-ministro Durão Barroso, o PS, que liderava, defendeu a antecipação de eleições. O Presidente Jorge Sampaio não o fez e na sequência disso abandonou a liderança do partido. Desta vez, o PS defendia a manutenção da maioria com outro primeiro-ministro. Estava certo?
Não acompanhei a posição da direção do PS neste contexto de propor a manutenção de um Governo do PS porque as circunstâncias eram de tal maneira pesadas, e o Presidente tinha avisado logo na posse do primeiro-ministro que esta maioria funcionava porque ele, portanto compreendi a démarche política feita no Conselho de Estado, segundo consta, que deu lugar a uma votação empatada. Mas nunca me viram defender a manutenção com atual Assembleia da República e outro Governo do PS. Não por uma questão de querer ser coerente com o que fiz e disse em 2004, porque as circunstâncias são completamente diferentes — Costa não se demitiu por vontade própria, mas por uma intervenção do poder judicial — mas feito o mal, que foi a demissão e ter sido aceite, julgo que não havia outro caminho que não eleições antecipadas.

"Estou absolutamente convicto de que não há no Ministério Público nenhuma política contra o partido A ou B ou C. Mas que há uma cultura justicialista, e de desconfiança e de ataque em geral a figuras que têm importância no plano dos partidos e do Estado"

Sobre os atuais processos judiciais, diz que já viu este filme há 20 anos, há algum paralelismo possível entre o atual processo judicial que envolve figuras do PS com o processo Casa Pia — que no seu livro descreve como os piores anos da sua existência?
Saltam à vista algumas coincidências que são, pelo menos, perturbadoras. Naquele período, em 2003, também estive sob escuta. Agora a lei só permite que o primeiro-ministro seja escutado, ou mesmo que seja apanhado em conversas, desde que seja autorizado pelo Supremo Tribunal de Justiça. Aí alterou-se alguma coisa. Mas convém não esquecer o que se passou com o antigo líder do PSD e da oposição, Rui Rio, que também viu a sua casa ser revistada, algo que ainda não se compreendeu muito bem, com o conhecimento da comunicação social, e a entrevista que ele deu à varanda ter sido a grande notícia durante uns dias. Ele também era na altura o líder da oposição. O que quer dizer que há um certo padrão que se mantém, e que me preocupa muito porque é um padrão justicialista. Estou absolutamente convicto de que não há no Ministério Público nenhuma política contra o partido A ou B ou C. Mas que há uma cultura justicialista, e de desconfiança e de ataque em geral a figuras que têm importância no plano dos partidos e do Estado, isso sem dúvida nenhuma que se mantém durante vinte anos e é gravíssimo para o Estado democrático.

No seu livro, quando fala do processo Casa Pia e das suas consequências, fala da possibilidade de se caluniar, pôr sob escuta, ameaçar o exercício do direito político ao líder da oposição e que nada mudou desde então. O que falta mudar?
O que constatei é que continua a ser relativamente impune, para quem faz este tipo de ações e depois se conclui que não havia base nenhuma. Continuam a ser completamente impunes esses ataques a pessoas que depois se verifica serem inocentes e nada terem a ver com nenhum processo criminal. Houve muitos políticos entretanto que foram constituídos arguidos, alguns chegaram a ser presos, e mais tarde foram totalmente ilibados. Aconteceu alguma coisa? Alguém se responsabilizou por isso no Ministério Público? Alguém deu a cara a responsabilizar-se por isso? Acho que não.

Mas também é responsabilidade dos partidos não terem feito alterações?
É, sem dúvida nenhuma.

Os partidos têm medo de mexer em legislação que toque na Justiça?
Houve várias oportunidades para fazer uma reforma da Justiça que permitisse toda a autonomia necessária ao Ministério Público, para não ficar debaixo da orientação de qualquer Governo. Mas uma coisa é a autonomia do Ministério Público, outra é a balcanização do Ministério Público. O facto de não haver ninguém que hierarquicamente seja responsável quando há situações como esta. Cada procurador é considerado um órgão de soberania? Não há uma hierarquia no Ministério Público que possa responsabilizar-se? É o sindicato que fala em nome dos procuradores?

"Com maioria absoluta do PS já é pouco aceitável que não se tenha procurado, a partir da proposta enviada antes por Rui Rio, melhorar essa proposta e avançar com uma verdadeira reforma da Justiça"

Por exemplo, a maioria absoluta socialista podia ter feito isso. Porque é que não fez?
Não faço a menor ideia, tem de perguntar a quem conduzia os trabalhos do PS no Parlamento. Enquanto fui presidente do Parlamento e, na altura em que o Governo de António Costa só podia manter-se com o apoio do PCP e do BE que são muito renitentes de qualquer alteração no funcionamento do MP, que não houvesse condições para alterar a legislação básica. Mas depois com maioria absoluta do PS já é pouco aceitável que não se tenha procurado, a partir da proposta enviada antes por Rui Rio, melhorar essa proposta e avançar com uma verdadeira reforma da justiça.

Os partidos têm medo de fazer essa reforma?
Não queria dizer que os partidos têm medo, mas a impressão que dá é essa.

"Num caso em que a Justiça manda com um Governo abaixo? À política o que é da política? Não, a política aqui foi posta em causa pela Justiça"

António Costa pediu ao PS que não se intrometesse no tempo da Justiça para o defender.  Mas no livro diz que, apesar do mantra “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”, demasiadas vezes se vê a “influência da justiça na política”. Não concorda com a estratégia de Costa? O PS deve criticar e apontar abertamente os erros do Ministério Público?
Quando se está a discutir uma questão qualquer em que há indícios suficientemente fortes para não ficarem grandes dúvidas, é evidente que os partidos e a política não têm nada de se envolver. Mas num caso em que a Justiça manda com um Governo abaixo? À política o que é da política? Não, a política aqui foi posta em causa pela Justiça.

Porque é que este sábado falou na intenção de alguns “destruírem a maioria absoluta” do PS? Foi o que aconteceu? Quem o espoletou?
Desde o momento em que, surpreendentemente, o PS teve uma maioria absoluta na sequência das eleições após do chumbo do Orçamento, em 2021, a única posição de muitos comentadores, órgãos de comunicação social e de quase todos os partidos representados na Assembleia da República, era acabar rapidamente com a maioria absoluta. E isso só se podia fazer com a dissolução. A pressão sobre o Presidente da República foi muito grande durante muito tempo, feita por alguns partidos de direita e de extrema direita, foi resistindo. Agora as circunstância levaram à necessidade de ativar esse mecanismo da bomba atómica. Mas a única estratégia que havia, para quem ficou politicamente irritado com a existência de uma maioria absoluta, foi desde o princípio destruir o atual quadro.

"É evidente que -- e isso acontece hoje -- por cada dez ou vinte pessoas que me querem cumprimentar e abraçar, há sempre um ou dois marginais que gritam coisas horríveis como "pedófilo". Faço o possível para, como as senhoras honradas, não ter ouvidos para esses casos".

Em 2004, era líder do PS e foi para a estrada eleitoral, para as Europeias, com um peso judicial às costas. Sentiu esse problema no terreno?
Senti exatamente o contrário. É curioso porque, em 2004, já depois de tudo o que se tinha passado no ano anterior, o PS fez uma campanha muito forte nas Europeias. Estive praticamente em todos os comícios, com o meu querido António Sousa Franco — que ainda hoje lamento ter convidado para ser número um da lista do PS, por ter morrido de forma dramática em Matosinhos –, e éramos recebidos com grande simpatia. Embora se visse que havia estruturas do PS que não estavam felizes e queria outra alternativa para secretário-geral, naquele caso quem andava também no terreno era José Sócrates. Acontece que nessas Europeias, depois do que tinha acontecido, o PS teve o maior resultado de sempre. Elegeu metade dos deputados ao Parlamento Europeu. É evidente que — e isso acontece hoje — por cada dez ou vinte pessoas que me querem cumprimentar e abraçar, há sempre um ou dois marginais que gritam coisas horríveis como “pedófilo”. Faço o possível para, como as senhoras honradas, não ter ouvidos para esses casos.

Disse na Comissão Nacional que António Costa nem sempre se soube rodear de “pessoas irrepreensíveis”. Estava a pensar em quem? João Galamba, Vítor Escária, Diogo Lacerda Machado?
Foi descoberto no gabinete do chefe de gabinete, uma pessoa muito próxima do primeiro-ministro, não sei quanto dinheiro em notas… não se pode dizer que essa conduta seja irrepreensível.

Mas não foi o próprio PS que falhou na análise? É que Vítor Escária já estava na órbita do partido há muito, tinha trabalhado no gabinete de José Sócrates.
Mas isso não é cadastro, há muita gente que trabalhou com José Sócrates e depois foi excelente quadro do PS. A questão é muito mais profunda do que essa, tem a ver com o funcionamento dos partidos democráticos. O PS tem muito pouca atividade quando está no Governo. Tem muita atividade quando está na oposição, porque organiza-se por sectores, para poder constituir equipas e programas, mas assim que está no poder, a atividade partidária diminui fortemente. E depois quando há necessidade de recorrer a pessoas, não há uma base suficientemente forte nos partidos democráticos para que se saiba quem é que se contacta.

E resolve-se com um “mecanismo de verificação prévia”, que é como chamou este Governo ao famoso questionário para governantes?
Não, isso não faz muito sentido. Os mecanismos têm de ser democráticos, feitos na própria lógica do funcionamento dos partidos, com os quadros dos partidos que se conhecem uns aos outros e sabem exatamente como é que as pessoas funcionam. Não é depois à última hora, quando alguém tem de ir para o Governo, que vai preencher um questionário. Achei sempre essa questão absolutamente ridícula.

"O facto de ter havido um Governo apoiado pela maioria de esquerda na Assembleia da República foi um facto positivo em si. Levou a que houvesse políticas bastante positivas para o país (...). Mas também não nos podemos esquecer que houve algum motivo para acabar essa experiência. Temos de tirar lições sobre a geringonça, mas também da sua queda"

Disse recentemente, em entrevista à Renascença, que “se houver outra vez uma grande ameaça de um governo que envolva a extrema-direita política” haverá “condições para restabelecer uma unidade mínima” à esquerda. Na altura ainda nem sequer se adivinhava que haveria uma crise política. Tendo em conta o cenário atual, o PS deve começar a pensar num entendimento alargado à esquerda?
Não quero falar em nome do PS, se quisesse tinha-me envolvido nas candidaturas. E continuaria a exprimir estas posições, que foi o que muito dirigentes do PS pediram para não se fazer. Eu não posso ter essa cedência porque estou muito preocupado com o que se passou, põe em causa o funcionamento do Estado democrático. Há muita gente que tem de dar explicações, e não me calarei enquanto não me sentir esclarecido e sentir que a opinião pública está esclarecida. Mas quanto a essa questão, tenho a minha opinião e está escrita nas minhas memórias. O facto de ter havido um Governo apoiado pela maioria de esquerda na Assembleia da República foi um facto positivo em si. Levou a que houvesse políticas bastante positivas para o país e para os que tinham sido mais agredidos pelo período da troika e para o Governo que incorporou esses desejos às vezes ultrapassando-os. Mas também não nos podemos esquecer que houve algum motivo para acabar essa experiência. Temos de tirar lições sobre a geringonça, mas também da sua queda. Quando se fizer a análise de tudo é preciso olhar para as duas faces da moeda, a positiva e a negativa.

Fala da diferença que é “destruir as políticas do passado e construir as políticas do futuro”…
Pois, uma coisa são as circunstância em que o país estava em 2015, depois de um conjunto de medidas restritivas e anti-sociais. Outra coisa é, a partir de 2021/22, ter um programa comum para responder aos desafios que o país tem. E verificou-se que era relativamente fácil encontrar a unidade na esquerda para destruir o que tinha sido mal feito antes — e ainda bem — mas que não era possível ter um programa comum em relação ao futuro. Porque os outros partidos da esquerda continuam a desprezar outras questões da Europa, da estabilidade financeira do país, de ter contas certas e reduzir a dívida pública, e quando hoje se põe dentro do PS como bandeira o ressuscitar dessa experiência, é conveniente que quem a queria ressuscitar faça um balanço da parte positiva e da negativa.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

José Luís Carneiro disse, agora na campanha interna, que não se deve partir a campanha com o pressuposto de alianças com partidos que são anti-NATO. Concorda ou a questão já está ultrapassada?
Estamos num processo de campanha interna entre dois candidatos e eu nunca vivi essa situação porque quando fui candidato foi quase à Coreia do Norte, infelizmente, tive 95% dos votos. Mas á natural que em períodos de candidatura haja palavras um pouco mais excessivas.

Mas faz sentido usar esses argumentos hoje, já que estamos num período com guerra e uma delas na Europa?
Não vejo que haja nenhuma proposta de nenhum dos candidatos a propor alianças ou coligações com partidos anti-NATO. O que vejo é que os dois consideram que vai depender dos resultados obtidos por cada partido e da nova configuração da Assembleia da República saber como é que há um Governo que seja estável e possa governar. Os governos minoritários devem ser evitados. A experiência europeia não vai nesse sentido, é a de ter coligações, governos com maioria. Aquilo que se passou com os governos de António Guterres e depois o pântano político… foi muito diferente o que se passou com o governo maioritário de José Sócrates e depois com o Governo minoritário que ficou à mercê de alianças contra-natura na Assembleia da República. Portanto, governos minoritários só mesmo se não houver mais nada a conseguir, porque o que é normal é terem maioria no Parlamento.

À esquerda a convicção é que a geringonça foi um programa de reversões e que é preciso um programa pensado em conjunto para o futuro. Há condições para isso? Neste caso provavelmente a motivação seria evitar uma maioria de direita em que o Chega tivesse um papel ativo…
Não gosto muito de especular sobre cenários. O que me preocupa nas eleições é a abstenção. Acho que a maneira como esta crise política foi gerada corre o risco de levar a um aumento da abstenção. Pode ser que não, que nos próximos meses haja um sobressalto democrático por parte dos eleitores e percebam que não estão a fazer um favor aos políticos, mas a exercer um direito seu. Estou muito preocupado com a evolução da abstenção nestes 50 anos.

"Não foi com Augusto Santos Silva que o Chega passou de um para doze deputados. Possivelmente terei agido sempre com boa intenção e defendendo a democracia, mas acabei por dar demasiada saliência às coisas que foram ditas pelo deputado do Chega"

No seu livro fala dos sucessivos incidentes com André Ventura quando era presidente da Assembleia da República e a procura de limitar o “desgaste para a democracia” das suas intervenções, sem “intenção de lhe dar um protagonismo desproporcional à sua representatividade”. O seu sucessor, Augusto Santos Silva, tem sido acusado precisamente de dar esse protagonismo exagerado ao Chega. Percebe essas críticas?
Percebo, mas neste caso mais criticado devia ser eu, porque eu tinha um deputado do Chega que todos os dias procurava inventar temas ou palavras que sabia que chocariam a Assembleia da República e a sua prática normal. Mas não foi com Santos Silva que eles passaram de um para doze deputados. Como também digo no livro, possivelmente terei agido sempre com boa intenção e defendendo a democracia, mas acabei por dar demasiada saliência às coisas que foram ditas pelo deputado do Chega.

O próprio PS é acusado de insuflar o Chega por motivos táticos. Não teme que o partido seja o mais beneficiado com estas eleições antecipadas?
As sondagens indicam isso, mas temos de ter muito cuidado nesta altura. Mesmo nas vésperas das eleições são duvidosas e influem para o voto. Às vezes também funcionam como pressão sobre os partidos para se coligarem antes das eleições — estamos a assistir neste momento a uma situação dessas, visto que, depois de uma fase de grande euforia por parte de alguns dirigentes do PSD por terem a possibilidade de ganhar eleições, algumas sondagens demonstram que o PS até continua à frente… Há grande pressão em vários setores da direita para haver uma coligação pré-eleitoral.

Mas o feitiço não se pode virar contra o feiticeiro? Ou seja, o PS não acaba por dar gás ao Chega?
Cada eleitor tem razões muito pessoais para votar. É muito difícil ter essa perceção exata.

Então acha que essa tática do PS é indiferente.
Não é indiferente que o Chega esteja fora de qualquer solução governativa, isso é absolutamente imprescindível para a saúde da democracia.

Falámos antes das aspirações futuras de António Costa. Seria um bom candidato para Belém em 2026?
Falta muito tempo, espero que tenhamos todos muita saúde até lá.

O PS já está há vinte anos fora desse circuito. Isso é um problema?
Foram vinte anos muito diferentes, entre os dez primeiros [de Cavaco Silva em Belém] e os dez segundos [de Marcelo Rebelo de Sousa]. Fui testemunha privilegiada desse relacionamento entre o Presidente e o primeiro-ministro, e uma maioria que não era propriamente dele no Parlamento, e posso testemunhar como as coisas correram sempre muitíssimo bem enquanto houve uma geringonça. E menos bem depois de haver a maioria absoluta.

"Admito que Costa possa ter um futuro europeu, se as coisas se resolverem claramente, do ponto de vista judicial -- e espero que possam ser resolvidas antes das eleições europeias, em junho -- e acho que tem todas as condições. Do ponto de vista da coerência e da defesa dos interesses europeus e do Estado português é uma pessoa como há poucas"

Mas já faz falta ou não ter uma figura próxima do PS em Belém?
Eu não senti falta dessa figura próxima do PS nos primeiros cinco anos do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. Eu próprio apoiei a sua reeleição. Não vejo isto como sendo necessariamente uma questão de bandeira partidária.

Mas falou nos primeiros cinco anos de Marcelo. Agora é diferente.
Ainda estamos em metade do segundo mandato. Vamos ver até 2026 o que vai acontecer.

Mas não projeta esse futuro para António Costa?
Admito-o. Admito também que possa ter um futuro europeu, se as coisas se resolverem claramente, do ponto de vista judicial — e espero que possam ser resolvidas antes das eleições europeias, em junho — e acho que Costa tem todas as condições do ponto de vista da coerência e da defesa dos interesses europeus e do Estado português é uma pessoa como há poucas. Tem todo o direito de ter ambições, vi como uma surpresa negativa o facto de admitir que não iria ter mais nenhum cargo público e espero que aconteça exatamente o contrário.

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