O vice-presidente da Comissão Europeia Frans Timmermans, responsável pela implementação do European Green Deal — a grande estratégia da UE para tornar a Europa no primeiro continente a atingir a neutralidade carbónica, até 2050 —, acredita que ainda é possível alcançar as metas previstas no Acordo de Paris, mas reconhece que é um “desafio enorme” manter o aumento da temperatura do planeta abaixo dos 2ºC em relação aos níveis pré-industriais. Numa entrevista ao Observador a partir de Bruxelas, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros holandês, que é vice-presidente da Comissão Europeia desde 2014, mostra-se satisfeito com o acordo recentemente alcançado para a Lei Europeia do Clima, que consagra em lei os objetivos climáticos da UE, e explica porque é que ela era necessária: “Na política, quando temos objetivos a longo prazo, não podemos depender do que decidimos apenas para hoje”.
Timmermans, que pertence ao mesmo grupo político europeu que o Partido Socialista, multiplica-se em elogios a António Costa e à presidência portuguesa do Conselho da UE, que termina este mês antes de passar para a Eslovénia, e classifica o acordo para a Lei do Clima e a Cimeira Social do Porto como grandes sucessos dos seis meses de Portugal à frente da União Europeia.
Conselho da UE aprova compromisso sobre Lei Europeia do Clima
Relativamente aos esforços internacionais para combater as alterações climáticas, Frans Timmermans saúda o regresso dos Estados Unidos ao Acordo de Paris e reconhece que foi “muito difícil” dialogar com Washington durante os anos da administração Trump. As atenções de Bruxelas viram-se agora para a China, sobretudo depois de, nos últimos meses, a imprensa internacional ter trazido a público investigações que dão conta de como a maioria dos painéis solares usados no ocidente têm origem em campos de trabalho forçado na China, onde são “internados” milhares de pessoas da minoria islâmica uigur para serem “reeducados”.
Frans Timmermans também tem liderado um conjunto de esforços a nível europeu para reformar a Política Agrícola Comum, um dos mecanismos comunitários mais antigos e mais estruturais da União Europeia. A última ronda de negociações terminou na última semana sem acordo, mas o vice-presidente da Comissão Europeia não baixa os braços e acredita num acordo ainda durante a presidência portuguesa. Um dos pontos em discussão prende-se com o condicionamento da atribuição de subsídios aos agricultores ao cumprimento de padrões laborais, para evitar a exploração de trabalhadores mal pagos, incluindo migrantes, como foi possível testemunhar recentemente em Odemira. “A pandemia trouxe à luz do dia algumas das piores situações, alguns dos piores abusos, a exploração do trabalho das pessoas”, assume.
Na última sexta-feira, disse no Twitter que as negociações para reformar a Política Agrícola Comum (PAC), uma das mais antigas e estruturais políticas da UE, terminaram sem acordo. Qual é o objetivo da UE com a nova PAC e o que é que falta no acordo?
A Política Agrícola Comum não é algo que se possa revolucionar, não é algo que se possa mudar do dia para a noite rumo a uma direção completamente diferente, porque toca na parte mais pequena da União Europeia. Muitos, muitos agricultores dependem dela. Muitas famílias, muitas áreas rurais dependem dela. O que estamos a tentar fazer é mudar a sua direção. Tradicionalmente, o que acontecia na PAC é que tínhamos dois pilares: o pilar dos pagamentos e o pilar em que olhamos para a estrutura. O que estamos a introduzir agora é a ideia de que não se use apenas o segundo pilar, relativo à estrutura, para reestruturar a agricultura numa direção mais sustentável; mas que também se usem elementos do primeiro pilar. Introduzimos esta ideia dos chamados eco-esquemas, que estimulariam os agricultores que abraçassem a agricultura ecológica. Penso que o que está no centro da discussão ainda em curso é até que ponto podemos introduzir estes eco-esquemas. Até que ponto é possível e desejável fazê-lo. O cerne da discussão entre os dois co-legisladores — o Conselho e o Parlamento — está aí: qual é a percentagem dentro do primeiro pilar, sob que condições e durante quanto tempo. Se, no próximo mês, conseguirmos encontrar uma solução para essa questão, isso seria um enorme passo na direção certa para termos um acordo sobre a PAC.
Ou seja, impor condições aos pagamentos que são dados aos agricultores.
Abrir aos agricultores a possibilidade de adotarem a agricultura ecológica e apoiá-los nisso. Quanto maior for a percentagem, mais dinheiro estará disponível para os agricultores o fazerem. Estamos a falar de mais de 50 mil milhões de euros num período de sete anos — ou melhor, num período de cinco anos, se olharmos para o modo como se vai desenvolver.
Segundo a imprensa europeia, um dos principais impasses na discussão atualmente é que os agricultores tenham de cumprir padrões de emprego e condições laborais para receber financiamento, para evitar a exploração de trabalhadores agrícolas mal pagos, muitas vezes migrantes. Isto é algo de que a UE está consciente há muito tempo ou a pandemia ajudou a expô-lo? Pergunto isto porque, por exemplo, em Portugal vimos um exemplo muito concreto no sul do país, no Alentejo, onde a pandemia expôs a falta de condições em que vivem milhares de migrantes que trabalham na agricultura com baixos salários.
O partido político de que eu faço parte, o partido social-democrata [PES, Party of the European Socialists, representado no Parlamento Europeu pelos S&D, Socialists and Democrats] — em Portugal, o Partido Socialista, para evitar confusões! — tem defendido a introdução de um elemento social na política agrícola há muito tempo. Penso que provavelmente tem razão quando diz que a pandemia trouxe à luz do dia algumas das piores situações, alguns dos piores abusos, a exploração do trabalho das pessoas. Isso ajudou também a que alguns dos membros mais conservadores do Parlamento Europeu e do Conselho entendessem que é necessário introduzir um elemento social na Política Agrícola Comum. Francamente, não acredito que este vá ser um ponto de rutura nas negociações. Creio que há um consenso crescente de que precisamos de fazer algo neste sentido.
Espera que ainda seja alcançado um acordo durante a presidência portuguesa?
Certamente, espero que sim. Tenho trabalhado de modo muito próximo com a presidência portuguesa na Lei do Clima — esse foi um feito incrível também da presidência portuguesa. Não vejo porque é que a presidência portuguesa não poderá ser igualmente bem sucedida na reforma da PAC em junho.
Vamos às políticas climáticas da UE. Ao longo dos últimos anos temos ouvido falar do European Green Deal, que é o pilar central da política climática europeia, mas também do Pacto Climático Europeu, agora da Lei do Clima. São muitos nomes e muitas políticas — e isto pode tornar-se confuso. Em suma, quais são os objetivos climáticos da UE hoje e quão perto estamos de os atingir?
Bom, para o pôr de modo muito simples: nós tínhamos concordado, antes, que reduziríamos as nossas emissões de dióxido de carbono entre 1990 e 2030 em 40%. Como os dados científicos mostram que as temperaturas estão a subir mais rapidamente do que pensávamos, temos de aumentar esse objetivo. Então, decidimos ir de menos 40% para, no mínimo, menos 55%. Isso tem consequências, porque é um enorme aumento do nosso objetivo — e precisamos de o fazer num período de nove anos. É por isso que, em julho, a Comissão Europeia vai apresentar doze propostas, num conjunto de áreas, nas quais precisamos de aumentar os nossos esforços para atingir o objetivo de neutralidade carbónica em 2050 e de, no mínimo, menos 55% em 2030.
E estamos no caminho certo?
Se conseguirmos chegar a um acordo o mais rapidamente possível com o Parlamento e o Conselho no que toca às propostas que vamos pôr em cima da mesa em julho, então estaremos no caminho certo para os alcançar. Mas vai ser preciso um trabalho árduo para lá chegar.
A Lei Europeia do Clima, cujo acordo foi alcançado há poucas semanas, consagra na lei estes objetivos climáticos da UE. Porque é que precisamos de uma lei vinculativa? Os compromissos que já são conhecidos não eram suficientes?
O que se passa na política é que, quando temos objetivos a longo prazo, objetivos que são mais longos do que o tempo entre eleições, objetivos que têm a ver com o modo como sobrevivemos enquanto humanidade, não podemos depender do que decidimos apenas para hoje. Temos de decidir hoje dar passos consistentes entre hoje e 2050. É por isso que precisávamos da Lei do Clima. Ao mesmo tempo, ela também nos dá o conforto de que quando estamos envolvidos noutros assuntos — uma pandemia, um desafio geopolítico, algum outro desastre natural… pode acontecer alguma coisa que exija toda a nossa atenção política e todo o nosso tempo —, como os objetivos estão consagrados na lei, eles não mudam. Eu estou na política há 30 anos, sei que se somos distraídos, se a nossa atenção é atraída por outro lugar qualquer, arriscamos sempre baixar a guarda noutros assuntos. A Lei do Clima ajuda-nos a evitá-lo.
E qual foi a importância da presidência portuguesa para chegar a esta lei?
Diria que o papel de Portugal não foi importante, foi crucial. Absolutamente crucial. As incríveis capacidades negociais da equipa portuguesa em Bruxelas, um ministro muito empenhado, um primeiro-ministro muito empenhado… Para uma presidência, o primeiro desafio é negociar com o Parlamento Europeu, no trílogo, com a comissão, onde estamos os três. O outro desafio é que o que é negociado tem de ser aceite por 27 Estados-membros no Conselho. E aí eu vi a presidência a fazer telefonemas a toda a hora, a convencer aqueles que estavam mais relutantes a aceitar o compromisso, a explicar o que aquilo significava. O papel da presidência foi absolutamente crucial.
E o ministro do Ambiente e o primeiro-ministro intervieram diretamente.
Sim, intervieram.
Se o European Green Deal funcionar, a UE deverá tornar-se no primeiro continente a alcançar a neutralidade carbónica, em 2050. Isto significa, obviamente, repensar a maioria dos aspetos da vida humana. Um dos aspetos cruciais da UE é a liberdade de movimentos — estamos sempre a viajar e usamos frequentemente voos de curta duração. A pandemia obrigou-nos a ficar fechados em casa. Pode este regresso ser um momento definidor para mudarmos o modo como nos movemos?
Sim, penso que irá haver verdadeiras mudanças. Em primeiro lugar, acho que as pessoas vão querer viajar talvez ainda mais do que antes. Não menos, mas mais. Não sei quanto a si, mas todos sentimos que nos faz falta viajar, temos saudades de ver outros lugares, temos saudades de ver outras pessoas. A procura de viagens não vai diminuir. Para estarmos alinhados com o Green Deal, não temos de dizer às pessoas para não viajarem. Mas temos de oferecer às pessoas alternativas aos modos muito poluentes de viajar. É por isso que diria que até 800, 900 ou mil quilómetros, as viagens de comboio — se os comboios estiverem disponíveis e funcionarem bem —, tornam-se mais interessantes e têm uma pegada de carbono muitíssimo menor do que viajar por via aérea. Sobretudo os voos de curta duração, podemos viver sem eles se tivermos um sistema ferroviário que funcione bem e se as companhias aéreas e as empresas ferroviárias trabalharem bem em conjunto para oferecer a melhor solução possível aos seus clientes.
Mas, por exemplo, nesta recuperação pós-Covid: a aviação foi um dos setores mais afetados e agora está muito dependente de financiamento público para recuperar. Devem os países e a UE impor objetivos climáticos como condição para apoiarem as companhias aéreas? Por exemplo, reduzir os voos curtos?
Isso faz parte, em muitos casos, dos planos nacionais de recuperação, que incluem planos de apoio para as companhias aéreas em que exigem que elas façam alguma coisa relativamente aos voos de curta duração. A França é um exemplo. Noutros países, a discussão está a ser tida nas mesmas linhas. E, já agora, penso que a maioria das companhias aéreas gostariam de eliminar os voos de curta duração, porque são os menos rentáveis e elas gostariam de se concentrar nas situações onde é mesmo necessário que haja viagens aéreas. Não é possível ir de comboio de Amesterdão para Lisboa. Ou melhor, é possível apanhar o comboio, mas não é uma alternativa a um voo. Mas é possível, facilmente, ir de comboio de Amesterdão para Bruxelas. Ainda assim, há vários voos diários de Amesterdão para Bruxelas. Isso tem de mudar. É deste tipo de coisas que estamos a falar. Depois, obviamente, também é preciso descarbonizar a indústria da aviação. É preciso investir em biocombustíveis, em combustíveis mistos, em combustíveis sintéticos. Talvez, no futuro, usar hidrogénio ou amoníaco para os aviões. É preciso empurrar a indústria da aviação nesse sentido também. Na Europa, fazemo-lo ao apoiar o desenvolvimento. A Airbus está a desenvolver motores com capacidade para trabalhar com hidrogénio. Trabalhamos em diferentes níveis, mas o ponto de partida é sempre o de que precisamos de ter soluções para o desejo das pessoas de viajar. Não devemos inibir o desejo de viajar. Pelo contrário.
Mencionou um ponto importante: é possível viajar facilmente de comboio na Europa central sem usar aviões. Mas, em Portugal, na maioria das vezes precisamos de aviões para chegar a outros países da Europa. A pandemia obrigou à suspensão dos comboios internacionais para Espanha e França e não há a certeza se vão voltar a operar novamente. Há um plano a nível europeu para levar a ferrovia aos países mais periféricos da Europa?
Completamente. Estamos a trabalhar com as empresas ferroviárias e estamos a reintroduzir os comboios noturnos na Europa. O que liga Amesterdão a Viena começou na semana passada e cada vez mais destes comboios noturnos vão regressar. Eu próprio estou desejoso de viajar num. Vocês fazem o correto e a minha mulher concordaria — é muito romântico além disso. E muitos jovens estão interessados. Mas os preços têm de ser acessíveis. Não sei quanto tempo demoraria, na situação atual, a viagem entre Paris e Lisboa. Provavelmente, mais de uma noite. Mas podemos ver o que acontecerá no futuro se melhorarmos a infraestrutura ferroviária, que é algo que também está a acontecer, como sabe, entre França e Espanha, e depois também para Portugal. Temos de ser realistas quanto a isto: não podemos substituir todas as viagens aéreas da Europa por comboios. Isso é impossível. Há países mais na periferia da UE. Ilhas como Malta e Chipre, mas também Portugal ou os países bálticos, onde as viagens aéreas vão continuar a ser importantes. Mas temos de garantir que só as usamos quando é necessário e que também descarbonizamos a indústria da aviação.
Recentemente, vieram a público notícias de que a maioria dos painéis solares usados no mundo — ou pelo menos alguns dos seus componentes — são feitos na China em campos de trabalho forçado. Ao mesmo tempo, a Comissão Europeia considera a energia solar como uma “pedra angular” da transição energética e quer fazê-la crescer até 2030. Estas revelações dos últimos meses mudam alguma coisa no modo como a Comissão vê a energia solar?
Deixe-me começar por outro lado. A Agência Internacional de Energia, ao longo dos anos, tem subestimado consistentemente a evolução do preço da energia renovável — eólica off-shore e solar. Estive a falar esta manhã com o presidente de uma grande empresa mineira australiana e se vir o que eles estão a desenvolver em termos de energia solar… É espetacular o que a energia solar vai fazer às necessidades energéticas do mundo. Por isso, vamos precisar de continuar a desenvolver painéis solares. A tecnologia tem de melhorar, tem de ser mais facilmente aplicável a telhados de edifícios tradicionais. Em muitas partes da Europa, incluindo em Portugal, existem cidades incrivelmente históricas. Se queremos introduzir a energia solar lá, temos de o fazer muito cautelosamente, temos de desenvolver novas tecnologias para isso. Temos de desenvolver, também, a indústria dos painéis solares na Europa. Neste momento, já existem painéis solares que produzem diretamente hidrogénio verde. É nesse tipo de coisas que precisamos de investir. A energia solar, a energia fotovoltaica, é a grande fonte de energia do futuro. Podemos dar ao planeta Terra toda a energia de que precisa através da energia fotovoltaica.
Mas não pode ser através de um custo humano.
Temos de nos tornar mais autossuficientes e mais resilientes enquanto europeus. A política industrial que estamos a desenvolver baseia-se nisso. Mas não podemos desenvolvê-la sem ter atenção ao custo humano dela. E isso é algo que é uma fonte constante de tensão com a China, mas também uma plataforma onde temos um debate com a China para garantir que vamos na direção certa. Também o acordo comercial que a UE estabeleceu com a China aborda os assuntos dos direitos humanos e das condições laborais.
Então a UE está em contacto com a China relativamente a este assunto?
Sim, estamos. Não é que estejamos de acordo, é um assunto muito difícil de discutir, mas é também um assunto inevitável. Temos de olhar para as condições laborais — não apenas na questão dos painéis solares — sob as quais os produtos que importamos para a Europa são produzidos. Também para criar um terreno equilibrado para garantirmos que a nossa própria indústria europeia está em condições de concorrência.
E no que toca à energia nuclear? Qual é o lugar dela no plano climático europeu? Os ativistas são contra, os lobistas são a favor, mas nem sabemos se a energia nuclear deve ou não ser considerada uma fonte de energia verde.
Em primeiro lugar, o bom da energia nuclear é que tem zero emissões. Mas não é verde, porque precisa de combustível e cria resíduos. Por isso, não podemos dizer que é verde — mas é boa para o clima porque tem zero emissões. Espero que possamos ter uma abordagem mais racional ao tema da energia nuclear, porque penso que às vezes as discussões são tidas num contexto muito emocional. Ou somos radicalmente contra ou radicalmente a favor. Vamos tentar ter uma discussão racional e olhemos para os custos. Olhe para o investimento que é preciso para construir uma central nuclear. Faça uma análise dos custos para a manutenção. O combustível de que precisa e o que faz com os resíduos. E depois olhe para o custo do ciclo de vida e compare-o com o custo do ciclo de vida da energia renovável. E tire as suas conclusões. Não vou dar uma resposta definitiva, mas olhe para os números e descobrirá que a energia nuclear é extremamente cara.
Mas tem um futuro no plano climático da Europa?
Já tem um presente e continuará lá no futuro. Mas não é verde. Tem zero emissões, o que é bom. É muito melhor do que o carvão, isso é claro, no que toca às emissões. Tendo em conta o modo como as energias renováveis se estão a desenvolver do ponto de vista dos preços, parece mais racional investir em energias renováveis do que em energia nuclear. Mas ela vai continuar lá, alguns países vão investir nela. E nós, na Comissão Europeia, não nos opomos a isso. Só pedimos aos países que tomem decisões racionais.
A mobilidade elétrica tem sido apresentada como uma das principais soluções para a transição de combustíveis fósseis para o uso de energias renováveis. No entanto, e isto também é uma discussão em Portugal, são necessárias baterias de lítio para armazenar essa energia — e o lítio também tem um grande custo ambiental. Uma análise recentemente citada pela BBC diz que a mineração convencional do lítio emite 15 toneladas de dióxido de carbono por cada tonelada de lítio extraída. Podemos dizer que os carros elétricos, com base na tecnologia atual das baterias de lítio, são a solução para a transição energética?
No quadro da estratégia europeia para as baterias, estamos a tentar desenvolver baterias mais sustentáveis. Mas o lítio terá um papel importante. Vamos precisar de fazer mineração de lítio, mas apenas com o apoio da população, e se for possível fabricar as baterias no lugar onde minamos o lítio — e o fizermos de um modo ambientalmente seguro —, então poderá ser um modelo económico interessante para essas regiões. Para veículos pessoais, carros ligeiros, essa é a tecnologia do futuro. Saiu recentemente um relatório da Bloomberg que mostrou que um carro elétrico já é mais barato de manter. É mais caro de comprar, mas é mais barato de ter. Os custos operacionais são mais baixos. Em 2027, também o preço do carro vai ser mais baixo do que o de um carro com motor de combustão convencional. Por isso, têm um grande futuro. O que precisamos de fazer na Comissão Europeia, em conjunto com as autoridades nacionais, é garantir que há capacidade suficiente para o carregamento dos veículos elétricos em todo o lado — até nas mais remotas áreas rurais —, e que a rede é alimentada com energia renovável. Porque, de outro modo, não alcançamos os objetivos climáticos a que queremos chegar.
Vem aí a COP26, em Glasgow, em novembro, este ano com os Estados Unidos novamente completamente alinhados com o Acordo de Paris — o que, imagino, é uma boa notícia para a Comissão Europeia. O que espera deste encontro, quais são os objetivos da UE?
Para o colocar de modo muito simples, o que queremos fazer é garantir que o mundo ainda tem uma oportunidade para limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC e para se manter substancialmente abaixo dos 2ºC. É isso que a COP precisa de alcançar e isso vai ser muito difícil, mas temos de tentar. Penso que há uma hipótese de o conseguirmos, mas não vai depender apenas da UE. Vai também depender dos Estados Unidos — eles agora estão muito comprometidos, mas ainda têm de desenvolver o seu plano nacional —, mas também de lugares como a China ou a Índia, que têm de fazer a sua parte também. Vai ser um desafio enorme, mas ainda é possível que, no fim da conferência de Glasgow, possamos dizer que o mundo ainda tem uma hipótese de manter o aumento da temperatura bem abaixo dos 2ºC.
Está esperançoso de que a presença mais comprometida dos EUA ajude a alcançar este objetivo? Como foi lidar com os EUA durante os anos de Trump?
Relativamente à primeira questão, claro que é muito melhor tê-los nesta posição do que tê-los na posição em que estavam durante a administração Trump. Eles nomearam um enviado presidencial, que é um grande amigo meu, o John Kerry, que está a trabalhar arduamente para pôr os EUA no caminho certo e para convencer os parceiros internacionais a fazê-lo. Por isso, juntarmo-nos aos Estados Unidos nisto é muito encorajador e dá-nos uma probabilidade muito maior de chegarmos onde precisamos de chegar. Há duas coisas que posso dizer sobre a administração Trump que posso dizer. Em primeiro lugar, foi muito difícil ver que um dos países que haviam sido cruciais para alcançar o Acordo de Paris estava ativamente a tentar fugir dele enquanto discutíamos, por exemplo, na COP de Madrid. Essa é a parte da desilusão. No entanto, ao mesmo tempo, não ao nível federal, mas ao nível dos estados e na América empresarial, as coisas estavam a andar muito rápido. Embora a nível federal estivesse a ser dito que não se acreditava nas alterações climáticas e coisas do género, os estados acreditavam e agiram nesse sentido. As empresas avançaram rumo a descarbonizar as suas operações. Por isso, não estamos a começar do zero. Eles têm um desafio maior do que nós na Europa porque tiveram um impasse a nível federal. Mas não começamos do zero nos EUA.
Mas foi difícil manter o diálogo entre Bruxelas e Washington durante aqueles quatro anos?
Neste tópico, absolutamente. Em vários tópicos, mas também neste assunto. Muito difícil, sim.
Estamos a chegar ao final da presidência portuguesa. Como avalia o desempenho de Portugal? Muito se tem falado de um possível futuro europeu para o primeiro-ministro António Costa. Acha que ele dava um bom presidente do Conselho Europeu?
Absolutamente. Não sei se ele é candidato, mas sim. Penso que António Costa provou que é um construtor de pontes, que leva a Europa rumo ao futuro. Penso que a Cimeira Social foi um grande sucesso — e também um sucesso pessoal para ele. Já aqui falei da Lei do Clima. Também sei que dentro do Conselho Europeu ele está sempre a procurar estabelecer pontes, a procurar soluções, e penso que ele demonstrou, como primeiro-ministro de Portugal, que há uma alternativa às políticas de austeridade. Há uma alternativa que traz mais empregos, mais crescimento e penso que António Costa o provou. E isso deu-lhe uma reputação muito forte a nível internacional, especialmente na União Europeia.
Mencionou a Cimeira Social, que decorreu no Porto, mas a Declaração do Porto não é vinculativa. Teme que o resultado da cimeira possa ser uma mão cheia de nada, se a declaração não é vinculativa?
Não, não. Absolutamente não. Isto foi um processo iniciado por dois primeiros-ministros socialistas. Stefan Löfven, na Suécia, e António Costa, em Portugal. Fizeram-no em dois passos. O primeiro foi em Gotemburgo e o seguinte no Porto. E não há hipótese de isto sair de cima da mesa. A nível europeu, temos os parceiros sociais completamente envolvidos, temos um entendimento crescente na sociedade de que, embora a UE tenha competências limitadas nesta área, o tema social é crucial para a equidade, para a justiça, para uma sociedade sustentável de que todos precisamos. Claro que, como as competências da UE são limitadas nesta área, é por isso que a declaração é o que é. Mas o facto de os assuntos sociais estarem agora no cerne de todos os debates políticos na União Europeia é algo pelo qual temos de agradecer a António Costa.
No início do ano, António Costa acusou um eurodeputado, Paulo Rangel, do PPE, de liderar uma conspiração internacional para perturbar o Governo português durante a presidência. Como é que a Comissão viu isto? Parece-lhe que houve um esforço dentro do PPE para fragilizar a presidência portuguesa?
Francamente, não tive nenhuma experiência pessoal nesse sentido. Sei que a política se está a tornar mais conflituosa, mas o nível de conflito que temos visto no vosso país vizinho, Espanha, onde os amigos de Rangel no Partido Popular não poupam esforços para atacar o governo… Não foi assim que vi Rangel agir. Pessoalmente. Mas pode ter escapado à minha atenção.