Índice
Índice
Desmond Morris (n.1928) ganhou fama mundial em 1967, quando publicou The naked ape (O macaco nu), que, não tendo sido o primeiro livro a olhar as características físicas e comportamentais do Homo sapiens no contexto da sua condição de animal, foi dos primeiros a popularizar essa perspectiva. Nem todas as teorias nele expostas estavam fundamentadas e os progressos na ciência nos 53 anos entretanto decorridos vieram a desacreditar algumas delas, mas a ideia de que parte do comportamento humano é determinado biologicamente e pode ser melhor compreendido comparando-o com o de outros animais ganhou implantação na comunidade científica.
Morris não ficou a dormir à sombra das vendas astronómicas de O macaco nu e nos últimos 50 anos lançou dezenas de livros (por vezes três no mesmo ano), nenhum dos quais se aproximou do sucesso do livro de 1967, embora A tribo do futebol (The soccer tribe, 1981) tenha feito sensação e tenha conhecido várias reedições (a de 2016 teve prefácio de José Mourinho). Alguns desses livros funcionam como adendas e ramificações de O macaco nu, outros focam-se no comportamento de outros animais (como cães, gatos e cavalos) e outros abordam o mundo da arte – Morris é também pintor surrealista – como é o caso de The artistic monkey, de 2013, editado em Portugal em 2019 como O macaco criativo.
A obra mais recente, Postures: Body language in art, surgida no final de 2019, combina as perspectivas sobre linguagem corporal humana que Morris explanou em Manwatching: A field guide to human behavior (1977) e títulos afins, com a vertente de escrita sobre arte; Postures chega agora a Portugal como Poses: Linguagem corporal na arte, pela mão da Bizâncio e com tradução de Maria Carvalho.
Saudação romana
A ascensão da extrema-direita na Europa tem tornado cada vez mais frequente um gesto que raramente era visto no espaço público desde o final da II Guerra Mundial: a saudação com “o braço direito retesado, num ângulo superior à horizontal, com a mão espalmada, os dedos muito juntos e a palma para a frente e virada para baixo” (Morris). Os movimentos e grupúsculos mais marginais não têm grande pejo em assumir a vinculação fascista do gesto, mas os partidos que aspiram a ser governo e precisam de manter uma fachada de respeitabilidade optam pela ambiguidade, pois não querem alienar os apoiantes extremistas, que se identificam com o ideário e folclore fascistas, mas também não querem assustar o pacato eleitor de classe média que “apenas” quer “mais autoridade, mais respeitinho, menos corrupção e menos estrangeiros”. A ambiguidade é favorecida por a saudação fascista poder ser confundida com um aceno, embora a similitude, plausível numa foto, possa ser dissipada nas imagens em movimento, uma vez que o aceno é fluido e momentâneo e a saudação fascista é hirta e persistente. Algumas figuras da extrema-direita de hoje gostam de jogar com esta ambiguidade e fazem do alçar do braço um jogo duplo: o gesto é recebido com cumplicidade e regozijo pelos seus apoiantes de inclinações fascistas e com indignação e furor pela extrema-esquerda, mas é executado com displicência suficiente para que, perante o escrutínio dos media ou das autoridades judiciais, possa ser explicado, em tom descontraído e chocarreiro, como um simples aceno.
O gesto é mais frequentemente associado ao nazismo, mas não foi inventado por este: os nazis alemães inspiraram-se nos fascistas italianos, que, por sua vez, o tinham adoptado por ser, supostamente, a saudação usada na Roma da Antiguidade – uma escolha apropriada, uma vez que a Itália fascista pretendia ser uma reencarnação dos tempos de glória de Roma. Porém, não há nas estátuas, relevos e textos romanos qualquer comprovativo do uso do “saluto romano” – na verdade, este parece ter sido uma invenção dos artistas neo-clássicos franceses do final do século XVIII, tendo o famoso quadro “O juramento dos Horácios” (1784-85), de Jacques-Louis David, sido decisivo para cimentar essa falsa ideia.
O quadro refere-se a um episódio lendário da história de Roma e fixa o momento em que os três filhos da família dos Horácios (Horatii) juram dar a sua vida por Roma num combate que os oporá aos três irmãos Curiácios (Curiatii), da cidade rival de Alba Longa. Descartando os detalhes do enredo (que inclui o ingrediente romântico de a irmã dos três Horácios estar noiva de um dos Curiácios) para nos concentrarmos no essencial, o que o quadro de David transmite é a ideia de que o patriotismo, levado ao extremo de se estar disposto morrer pela pátria, é o mais nobre e exaltante destino a que os jovens machos podem aspirar. A composição do quadro, separando (e contrastando) as figuras erectas e vigorosas dos três irmãos e do pai, à esquerda, com as mulheres da família, desfalecidas e lamurientas, à direita, deixa também claro que a guerra e a política não são assuntos para o sexo fraco. O que é curioso é que o episódio do juramento não figura em nenhuma das fontes romanas e foi inventado por David, o que não impediu que o quadro se convertesse num paradigma da arte neo-clássica e, ao mesmo tempo impusesse a ideia de que os romanos se saudavam de braço retesado.
Napoleão Bonaparte apreciava dar-se ares de imperador romano e retomou alguns dos rituais marciais romanos, nomeadamente a distribuição dos estandartes com as águias imperiais às legiões, pelo que, quando encomendou a David (que, entretanto, trocara a devoção pelos ideais republicanos pela admiração pelo imperador) quatro telas de formato XXL para se celebrar a si mesmo, estipulou que uma delas representaria a cerimónia da “distribuição das águias” ao exército francês, no Champ-de-Mars. A tela “Juramento ao Imperador pelo Exército após a distribuição das águias, 5 de Dezembro de 1804” retoma vários elementos de “O juramento dos Horácios”, quer nos braços erguidos e hirtos quer por representar a resolução cega dos jovens em morrer pela pátria (neste caso, pela sede de glória de um homenzinho cínico e desmedidamente egocêntrico).
No início do século XX, o cinema ajudou a consolidar o equívoco da “saudação romana”, fazendo-a figurar em filmes “históricos” como “Ben-Hur” (1907) e “Cabiria” (1914).
O argumentista deste último, Gabriele D’Annunzio (1863-1938), um ultra-nacionalista que se distinguiu por feitos heróicos (e apurado sentido de espectáculo) na I Guerra Mundial e no seu rescaldo, foi também um precursor do fascismo, embora nunca tenha estado directamente envolvido com ele. Mas quando Benito Mussolini tomou o poder em Itália, em 1922, lembrou-se certamente de que, em 1919, quando, D’Annunzio reclamara para Itália o território de Fiume (subtraindo-o ao Reino da Jugoslávia e contrariando o acordado na Conferência de Paris), se auto-intitulara Duce e adoptara a “saudação romana”.
No início dos anos 20, nem Hitler nem o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla alemã) tinham um pensamento político particularmente elaborado e, naturalmente, Hitler deixou-se influenciar por alguns aspectos do triunfante fascismo italiano, nomeadamente pelo aparato cénico – saudações, uniformes, desfiles – e pela importância dada à propaganda e estes elementos acabaram por ser assimilados (e até exacerbados) pelo nazismo. A saudação de braço erguido e retesado foi introduzida no NSDAP em 1923, mas nem todos os militantes aceitaram de bom grado a adopção de uma saudação estrangeira (para mais vinda de um povo de pele morena e cabelo preto), pelo que o partido, através de um artigo de Rudolf Hess, tratou de forjar raízes germânicas para o gesto e reivindicou que os nazis o tinham adoptado em 1921, antes da ascensão do fascismo italiano. Hitler não só confirmou esta data precoce de adopção, como fez recuar a origem do gesto à Dieta de Worms, em 1521, momento decisivo na afirmação da Reforma luterana e da história da Alemanha, e explicou-o como uma demonstração de que não se têm armas na mão e que, portanto, se está animado de intenções pacíficas (é difícil imaginar uma ideologia mais pacifista do que o nazismo). Alguns nazis especularam mesmo que o gesto tinha tido origem nas cerimónias de aclamação dos reis das tribos germânicas e que os romanos o tinham imitado.
Em Julho de 1933, pouco depois de Hitler ter tomado o poder na Alemanha, a “saudação a Hitler” (Hitlergruß), que aliava a “saudação romana” às palavras “Heil Hitler!” ou “Sieg Heil!”, foi tornada obrigatória na rotina quotidiana do funcionalismo público e para todos os alemães nas ocasiões em que se entoava o hino nacional e o hino nazi, só ficando dispensado de o executar quem sofresse de comprovada incapacidade física. A Wehrmacht (o Exército) conseguiu que a Hitlergruß fosse opcional e se pudessem manter as saudações militares tradicionais; porém, estas apenas eram admitidas em ocasiões em que os militares envergassem capacete ou quépi, se a cabeça estivesse descoberta, teria de se fazer a Hitlergruß. Após o atentado falhado contra Hitler, a 23 de Janeiro de 1944, perpetrado por oficiais da Wehrmacht, a Hitlergruß tornou-se obrigatória para todos os militares em todas as situações, para que não restasse qualquer dúvida da sua lealdade ao Führer. Embora Hitler também fizesse esta saudação, quando respondia à Hitlergruß empregava frequentemente um gesto diferente: erguia o braço a partir do cotovelo e exibia a palma da mão na vertical ou virada ligeiramente para trás.
Os regimes autoritários de extrema-direita na Península Ibérica adoptaram algumas instituições, práticas e rituais da Itália fascista e da Alemanha nazi, entre os quais a “saudação romana”, que foi praticada quer por Salazar e outras figuras gradas do regime quer por organizações como a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa.
Como o repertório de gestos é necessariamente limitado, a saudação romana/fascista/nazi tem grande semelhança com a “saudação Bellamy” (Bellamy salute), que fora adoptada em 1892 nas escolas americanas para o juramento de lealdade (Pledge of Allegiance), executado diariamente pelos alunos perante a bandeira nacional. A saudação e o texto do juramento saíram da mente do pastor baptista (de inclinações socialistas) Francis Bellamy num contexto de promoção do nacionalismo americano (o amor pela pátria parece ter uma qualquer conexão com braços retesados no ar), que teve como pretexto a comemoração do 400.º aniversário da chegada de Colombo ao Novo Mundo. A ideia da comemoração, que envolveu as escolas públicas americanas, partira de James B. Upham, que desempenhava funções de “marqueteiro” no jornal juvenil em que Bellamy colaborava, The Youth’s Companion, e tinha também o propósito menos nobre de vender bandeiras americanas. As diligências de Bellamy e Upham chegaram ao Congresso e ao Presidente dos EUA e resultaram na oficialização, em 1892, do dia 12 de Outubro como Columbus Day e na adopção do texto e saudação concebidos por Bellamy para o juramento de lealdade nas escolas.
Quando os fascistas italianos e, depois, os nazis alemães adoptaram um gesto semelhante à “saudação Bellamy”, gerou-se controvérsia nos EUA, potenciada, à medida que as tensões políticas na Europa se agudizavam, pela divisão da sociedade americana entre os que defendiam o isolacionismo e o apoio aos países que se opunham ao Eixo. Algumas escolas tomaram a iniciativa de alterar ligeiramente a “saudação Bellamy” de forma a diferenciá-la da saudação fascista/nazi, mas nem a entrada dos EUA na guerra, em Dezembro de 1941, fez desaparecer completamente a “saudação Bellamy”: o Congresso decretou, em Junho de 1942, um procedimento novo para o Pledge of Allegiance, mas que mantinha elementos em comum com a saudação fascista, e só em Dezembro desse ano dissipou equívocos, ao instituir o gesto de colocar a mão direita sobre o coração (que se manteve até aos nossos dias).
Na Alemanha e Áustria, fazer a saudação fascista/nazi constitui crime desde 1947 (punido na Alemanha com até três anos de prisão), e algo de similar se passa na Polónia e Eslováquia. Em Itália pode ser considerado crime (punido com até quatro anos de prisão) se for usada com o propósito de “reinstaurar o extinto Partido Nacional Fascista” ou se estiver associado a actos violentos. Há vários países, como França, Suécia ou Rússia, em que fazer o gesto, apesar de não ser, por si só, um crime, cai sob alçada da lei se o seu contexto for o do “discurso de ódio” ou se servir para fazer propaganda do nazismo.
Na Alemanha, por razões compreensíveis, a sensibilidade ao Hitlergruß é alta e em 2007 um homem que treinara o seu cão, Adolf, para fazer a saudação nazi em resposta às palavras “Heil Hitler!”, foi condenado a cinco meses de prisão (na verdade a condenação resultou também da exibição continuada de símbolos nazis) e perdeu a custódia de Adolf, que foi entregue a um canil (onde, quiçá, terá sido submetido a um processo de desnazificação).
Durante muitos anos a saudação fascista/nazi tornou-se quase invisível no espaço público europeu, mas começou a ressurgir nas claques futebolísticas, sobretudo em Itália e nalguns países de Leste, como a Polónia e Ucrânia (que, paradoxalmente, foram dos mais martirizados pelo nazismo germânico, mas o conhecimento da História não costuma ser o ponto forte dos hooligans). A recuperação deste gesto e da simbologia nazi e o entoar de cânticos racistas, deveria ter desencadeado sinais de alarme, mas como até os aspectos mais obnóxios do futebol são encarados com ilimitada benevolência pelos governantes e pela opinião pública, as claques raramente têm sido alvo de medidas dissuasoras eficazes.
Esta permissividade permitiu que, os últimos anos, o hooliganismo futebolístico e a extrema-direita política estabelecessem uma profícua relação: por exemplo, a organização de juventude do partido grego Aurora Dourada, a Galizia Stratia (Exército Azul), é, ao mesmo tempo, um grupo de hooligans que reivindica a missão de “defender o orgulho grego nos estádios”; os hooligans Chelsea Headhunters têm vínculos com a National Front britânica; e o Grupo 1143, uma facção ultra-nacionalista da Juventude Leonina, foi liderada por Mário Machado, que depois assumiria posição cimeira nos Portugal Hammerskins, no Partido Nacional Renovador e na Nova Ordem Social. Esta “promiscuidade” tem ajudado a que muitos braços que só revelavam a sua simpatia pelo fascismo nos estádios, assumam essa postura agora também em manifestações e comícios políticos.
Uma vez que o livro de Morris apenas trata das poses nas artes plásticas, fica por mencionar a mais famosa manifestação da saudação fascista/nazi na 7.ª Arte: o braço com vida própria de Dr. Strangelove no filme homónimo de 1964, realizado por Stanley Kubrick. Strangelove (Peter Sellers), um cientista nuclear alemão que trabalhara para o regime nazi e fora “reciclado” como assessor científico do Presidente dos EUA, Merkin Muffley (papel igualmente desempenhado por Sellers), tem um problema: o seu braço direito toma, de vez em quando, a liberdade de executar o Hitlergruß, apesar dos esforços do cientista para o travar (é possível que a mente e o braço direito de Strangelove não sejam assim tão divergentes, já que por duas vezes Strangelove trata o Presidente por “Mein Führer”).
O “braço com vida própria”, embora apresentado de forma caricatural no filme, corresponde a uma condição clínica real que é conhecida como “síndrome da mão alheia” (e, desde 1964, como “síndrome de Dr. Strangelove”), mas, até agora, ninguém apanhado de braço alçado em público invocou esta maleita em sua defesa.
[Excerto de “Dr. Strangelove”:]
Aperto de mão
O aperto recíproco da mão direita quando dois homens se encontram poderá ter servido, originalmente, para demonstrar que nenhum dos intervenientes estava armado, mas já é mais difícil de explicar porque devem as mãos ser sacudidas verticalmente de forma enérgica. O aperto de mão está documentado em relevos e esculturas com milénios, sendo a mais antiga a que representa o encontro entre o rei assírio Shalmaneser III (também grafado Salmānu-ašarēdu III; reinado: 858-825 a.C.) e o rei babilónio Marduk-zakir-shumi I (reinado: 855-819 a.C.), tal como representado num relevo na sala do trono do primeiro, em Nimrud (hoje no Iraque). O aperto de mão entre os dois reis simboliza a aliança que estabeleceram quando Marduk-bēl-ušati, o irmão mais novo do rei babilónio, se revoltou contra este e tentou usurpar o trono, acabando por ser derrotado com a ajuda do rei assírio.
O aperto de mão é corrente no mundo ocidental mas os povos do Médio Oriente e Ásia, ainda que o aceitem nas interacções com ocidentais, tendem a preferir cumprimentos “contactless”, como a saudação verbal “salaam aleikum” (ou as-salamu alaykum) no mundo islâmico, o adab e o namaste na Índia, o wai na Tailândia, o nop no Laos, o sampeah no Cambodja, o mingalar em Myanmar e um sistema de vénias ajustado em função da hierarquia social e das circunstâncias no Japão. Não é de excluir que esta diferença nos cumprimentos tenha contribuído, num primeiro momento, para uma difusão mais contida da covid-19 na Ásia, apesar das muito elevadas densidades populacionais aí registadas nos aglomerados urbanos.
Toque de cotovelos
Entretanto, a pandemia de covid-19 baniu temporariamente o aperto de mãos, substituído pelo toque de cotovelos, possivelmente derivado do fist bump que terá tido origem no toque das luvas entre adversários antes do início dos combates de boxe e foi depois adoptado e popularizado pelas vedetas do basquetebol. O toque de cotovelos foi recebido como novidade no mundo ocidental em Março de 2020, o que atesta a aflitiva falta de memória das massas e dos mass media, já que este cumprimento fora recomendado como alternativa ao aperto de mãos pela OMS em 2006, quando da pandemia de gripe das aves e a expressão “toque de cotovelo” (elbow bump) até foi escolhida como Palavra do Ano de 2006 pelo New Oxford American Dictionary. A recomendação do uso do toque de cotovelos foi reforçada em 2009, quando da pandemia de gripe suína – mas nada disto ficou inscrito na memória, o que contribuiu para que a covid-19 alastrasse pelo mundo perante a passividade e estupor de governos e autoridades de saúde, que depois vieram justificar a sua inacção alegando tratar-se de um fenómeno inaudito e imprevisível (ver Se a covid-19 fosse um cisne que cor teria?).
Mão escondida
Poderá haver quem pense que o facto de Napoleão surgir frequentemente representado com uma mão enfiada no vestuário resulte de alguma idiossincrasia do retratado (não têm faltado teorias descabeladas para a explicar, de uma úlcera no estômago a um sinal maçónico secreto, passando pela ocultação aos olhos de Josefina de um anel que lhe fora oferecido por uma amante), mas Morris esclarece que a pose era corrente nos retratos de outras figuras proeminente da sua época.
A pose poderá ter origem na Grécia e Roma da Antiguidade, em que algumas escolas de pensamento reprovavam a gesticulação dos oradores como sendo pouco digna e preconizavam que os tribunos discursassem com uma mão dentro das vestes. Esta postura terá sido recuperada no século XVIII, acompanhando o fascínio das elites pela Antiguidade Clássica, e passou a ser recomendada nos manuais de etiqueta e adoptada pelos cavalheiros quando se faziam retratar. Morris sugere que, além de contenção e auto-domínio, a mão direita nas vestes também sugere que não se pretende fazer uso da espada, o que transmite a ideia de que “sou demasiado dominador para me preocupar com ameaças ou com a necessidade de me defender. Sou um líder firme que também é calmo, tranquilo e imperturbável”.
Se os tribunos e homens de Estado de hoje assumissem esta pose grave e pomposa, com a mão escondida, pareceriam ridículos, mas o estilo histriónico e hiper-enfático que se tornou regra na intervenção e debate político nalgumas democracias parlamentares (em particular na portuguesa) talvez provoque a troça das gerações vindouras.
Um aspecto que teria sido interessante analisar num livro como este seria a evolução da pose em que os poderosos deste mundo são retratados, que sofreu apreciável evolução nas últimas décadas, em direcção a uma maior informalidade e proximidade com o cidadão comum.
Expressão de sofrimento
No capítulo “Sofrimento simbólico”, Morris aborda um aspecto muito relevante da História da Arte: durante muitos séculos as convenções artísticas interditaram a representação de sentimentos extremos, levando a que, mesmo em situações muito penosas as personagens assumissem um ar impassível ou até seráfico (situação que é bem evidente nos quadros que representam o martírio de santos). Alguns artistas tentaram dar solução a este paradoxo complementando os rostos serenos dos sofredores com uma representação simbólica do seu sofrimento, sendo o exemplo mais conhecido o das espadas que atravessam o peito da Nossa Senhora das Dores.
Morris argumenta que “o idealismo platónico era a norma na arte da época, e a expressão emocional individual não constituía um elemento importante. À medida que a sociedade passou a centrar-se menos no ‘mundo divino, eterno e imutável’ e mais no mundo material, esta situação começou a mudar”. Morris aponta como um momento de viragem na história da pintura a publicação (póstuma), em 1698 (não em 1688, como erradamente se indica no livro), do Méthode pour apprendre à dessiner les passions, do pintor francês Charles LeBrun (1619-1690), mas não aproveita o ensejo para apresentar exemplos ilustrativos dessa evolução, nem sequer reproduz um quadro de LeBrun – é uma falha que pode ser generalizada a um livro que toca em muitos assuntos mas não desenvolve nenhum. Em jeito de reparação, aqui se deixam três representações de Maria Madalena por três pintores, do início do século XVI a meados do século XVII, sendo a terceira do próprio LeBrun.
A mudança na representação das “paixões” (“paixões” era o termo empregue na época para “emoções”) em pintura que teve lugar no século XVII tem paralelo na que teve lugar na música, com a serenidade imperturbável da polifonia renascentista a dar lugar ao amplo espectro emocional do barroco, mudança em que teve papel pioneiro Claudio Monteverdi (1567-1643), podendo encontrar-se afinidades entre o tratado de Charles LeBrun e o prefácio do VIII Livro de Madrigais (1638), de Monteverdi, onde o compositor argumenta persuasivamente em favor da “representação das paixões em música” e, em particular, do stile concitato (estilo agitado), por ele introduzido, e sem o qual não seria possível exprimir adequadamente as emoções mais intensas (ver Monteverdi: O génio que inventou o Barroco).
Armadura
O capítulo “Armadura” tanto trata de figuras posando com uma armadura propriamente dita, como de escudos e de gestos de defesa perante ataques. É também um capítulo exemplificativo da ligeireza em que Morris incorre amiúde. Para explicar a nossa necessidade de nos protegermos, afirma que “embora os seres humanos consigam correr depressa, os nossos corpos macios pouca protecção nos oferecem quando somos encurralados”. A parte dos corpos macios é correcta e poderia acrescentar-se que temos músculos fracos e não estamos dotados de dentes, garras ou cascos que possam compensar a “macieza”. Mas a afirmação sobre a nossa velocidade é surpreendente (mais ainda por vir de alguém que consagrou a vida a comparar humanos e animais), uma vez que o ser humano corre bastante devagar (18 Km/h, em média, para um não-desportista), aliás tal como os seus primos chimpanzés e gorilas (que compensam este handicap no solo sendo ágeis e lestos em habitat arbóreo).
Essa lentidão na corrida limitaria seriamente a capacidade do ser humano para caçar presas (e fugir a predadores), não fosse possuir outros atributos. O que é hoje a hipótese mais consensual na comunidade científica é que, quando assumia a posição de caçador e antes de ter descoberto armas mais sofisticadas que compensassem a inocuidade dos seus dentes e garras, o Homo sapiens tirava partido, não da velocidade, mas da resistência e da capacidade de trabalhar em grupo (no que tem pontos de contacto com os lobos). O tipo de caça que os nossos antepassados praticaram nas savanas africanas envolveria longas perseguições durante as horas quentes do dia, a passo de corrida e com os caçadores a revezarem-se, até que a vítima, sobreaquecida, colapsasse. Os antílopes e zebras que os humanos perseguiam tinham uma velocidade de ponta muito superior à sua – 60-80 Km/h – mas perdiam na corrida de fundo com os humanos, devido à superior capacidade de transpiração proporcionada pela pele nua, que é um dos factores distintivos da nossa espécie (ver o capítulo “Nascidos para caçar” em A cadeira e outros grandes inimigos da humanidade). A hipótese que vincula ausência de pêlo, transpiração e método de caça é muito mais plausível do que a hipótese avançada por Morris em O macaco nu para a “nudez” do Homo sapiens, que era a de esta permitir um contacto táctil mais íntimo do casal e, logo, o estabelecimento de vínculos mais fortes entre os casais.
Mas, se a ciência de Morris nem sempre é muito sólida e se algumas das suas afirmações são levianas, por outro lado, as suas reflexões sobre as obras de arte que escolheu para ilustrar os temas tendem a ser superficiais, telegráficas e já vistas (é difícil perceber o que viu neste livro o Irish Times para o elogiar por “apresentar a arte de uma forma inteiramente nova”). Para mais, algumas das obras que Morris escolheu reproduzir não lhe merecem comentário algum, ao mesmo tempo que discorre sobre obras que não são reproduzidas.
O assunto do livro mereceria certamente reflexões mais complexas e aprofundadas do que este amável desfile de generalidades, mas Morris estará provavelmente correcto, do ponto de vista comercial, ao escolher como destinatário um público que busca dilatar um pouco os seus conhecimentos, mas sem ter de fazer um grande investimento de atenção. Afinal, vivemos numa época de capacidade de concentração minguante, em que muitas pessoas esperam poder aprender tudo o que interessa sobre economia, física quântica ou alterações climáticas numa TEDTalk de dez minutos e se encara a cultura como uma provisão de soundbites destinados a sinalizar que quem os solta a meio de uma conversa possui interesses requintados e um espírito sofisticado. Se cada um dos capítulos do livro fosse convertido num episódio de três minutos para o YouTube, Poses: Linguagem corporal na arte seria uma série de sucesso, conquistando milhões de visualizações – e provavelmente seria essa a “encarnação” mais apropriada para esta obra. E que não se veja nesta sugestão uma conotação pejorativa: existem vários níveis de interesse e empenho pela parte dos receptores e diferentes circunstâncias de acesso ao conhecimento e há lugar para diferentes tipos de trabalhos de divulgação.