Duas batidas, um instrumento. Na suavidade, João Gilberto domina o silêncio e com a mesma melodia, Jorge Ben Jor acrescenta barulho, a percussão nas cordas. No centro está o violão, impassível, alinhado a cada capricho, arma apontada e afinada, na linha de fogo para instaurar todas as revoluções da música brasileira. E o violão de Gilberto Gil, porta voz deste compositor com mais de 50 anos de canções. Que ritmo marca a batida, a que ritmo bate o coração? “O João Gilberto e Jorge Ben têm um estilo próprio, formaram um estilo”, explica o próprio ao Observador. Claro, mas Gilberto, que estilo é esse? “Estilo? Não, não, eu não tenho estilo, eu pego dos outros e transformo”.
“A gente ama/ E o amor produz transformações”, cantou certa vez Gilberto Gil, virtuoso do instrumento e composição, ex-ministro de Cultura e co-fundador da Tropicália, bisavô de 75 anos, multiplicado em muitos, mas indefinido como uma unidade, sempre em transformação. “A obra de Gil é plural, não se enquadra em um estilo”, explica-nos Mauro Ferreira, jornalista musical no G1. “Eu tenho um mix de estilos”, concorda Gil, “pois trafeguei por muitas influências e modos de fazer a música”.
O parceiro tropicalista, Torquato Neto, esclareceu melhor: disse que se haviam muitos estilos e formas de fazer música no Brasil, o Gil preferia todos. “A música brasileira tem sempre as suas revoluções ao violão”, diz o jornalista do Estadão, Júlio Maria. “E em três discos o Gil repensou o violão de João Gilberto, deu uma nova linguagem, fechou a identidade em três pilares, o homem do campo, a África e a cidade”. A trilogia de álbuns nos anos 70 — Refazenda (1975), Refavela (1977) e Realce (1979) — é um mapa astral para revelar o universo musical do baiano nascido em Salvador e foi o mote para esta entrevista, que acabou em email e começou por telefone, ditado pela voz grave de ancião revolucionário.
[Trinca de Ases ao vivo:]
“Nando Reis é a novidade”, diz-nos Marcus Preto, diretor musical do concerto Trinca de Ases, que junta o baiano a Gal Costa e ao ex-Titã Nando Reis. “Portanto havia muito valor em cada música de Nando que Gal e Gil pudessem invadir com suas vozes, com o violão, Gil fez isso em todas elas, o que as transformou na medida que o espetáculo pedia”. O violão de Gil já é companheiro de Gal Costa desde 1964, “Back In Bahia”, na terra mãe que partilha o filho pródigo com o resto de mundo, com carreira sempre “dividida pra lá e pra cá”. Calhou-nos a sorte grande, que agora a aparição é aqui, no triunvirato Trinca de Ases, dias 9 e 10 no Campo Pequeno, Lisboa, e dia 11 no Coliseu de Porto.
Há 50 anos, esta tendência de tocar entre amigos teve seu apogeu no insurgente Tropicália ou Panis et Circencis, desenlace intelectual lançado com Caetano Veloso, que, como não podia deixar de ser, foi quem o acompanhou na última visita a Portugal. “Temos muito esse costume de nos juntarmos para fazer shows como já aconteceu com Milton Nascimento, com Caetano, Gal Costa e Maria Bethânia em Doces Bárbaros, com Jorge Ben Jor há muitos anos”, lembra, referindo o álbum da super banda baiana em 76, e a exploração desenfreada de ritmo que é Gil & Jorge: Ogum, Xangô. “Agora vamos com esse Trinca de Ases e é fácil manter a harmonia quando se respeita e admira os companheiros.”
Admiração, respeito, aliada a vontade incontrolável de absorver a música do mundo e espremer em palco, como na peça musical de teatro Nós, por exemplo em 1964, que juntou pela primeira vez em Salvador os criadores da Tropicália, Gal, Bethânia e Tom Zé incluídos. “Senti logo ali que era uma turma especial, vi que aquelas pessoas tinham muito a dizer e disseram.” A bússola João Gilberto apontava o norte, antes de Jorge Ben revirar tudo de cabeça para baixo e puxar o campo magnético de volta para o ritmo afro-brasileiro. “João Gilberto foi uma epifania nas vidas de muitos artistas de minha geração, Chico e Caetano em especial”, concorda Gil, “e Jorge Ben trouxe algo muito novo, meio samba rock e muito peculiar para a MPB”.
No repertório deste Trinca de Ases está “Ela” e a introspecção de “Retiros Espirituais”, duas entradas a pés juntos para dentro do primeiro álbum da trilogia “Re”, o Refazenda, um regresso para o interior da Bahia, o recôncavo baiano de Ituaçu, onde Gil cresceu. “É um disco mais espiritualizado, interiorizado, mais ruralista”, sugere Mauro, “é um mergulho zen de Gil nas origens nordestinas”. “Refazendo tudo, refazenda” canta na canção que dá nome ao álbum, a viagem renovadora na música do compositor, na busca pela génese do homem sertanejo, que vive no precipício de uma planície desoladora. “O álbum traz o Gil debaixo do barro do chão, do interior, e traz Dominguinhos”, ajuda-nos Julio Maria, “que vai trazer muito claro a influência de Luiz Gonzaga”.
“Seguramente o meu primeiro e maior ídolo foi Luís Gonzaga, o Rei de Baião”, consente Gil. “Em Ituaçu, no sertão baiano onde vivi a minha infância, ouvíamos muito esse tipo de música que me marcou para sempre.”
“Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos”
Canta assim em “Lamento Sertanejo”, na companhia do acordeonista Domingos, parceiro infalível de Gonzaga, o trovador que descreveu melhor que ninguém o destino fatal do emigrante nordestino. “E é curioso que Gil mergulhe nessas questões por meio da figura do interiorano, do matuto, cujo pensamento é considerado tacanho pela população da cidade grande”, acrescenta Marcus Preto. “Tem uma referência ao Jeca Tatu, personagem criado por Monteiro Lobato que acabou se tornando o símbolo do preconceito contra o homem rural.” “Ituaçu hoje está muito diferente, antes só ouvíamos música em casa, no rádio ou no toca discos do meu pai”, recorda Gil. “Minha mãe diz que eu muito pequeno, disse a ela que quando crescesse queria ser pai de menino e ‘musgueiro’, e é o que sou”.
No ano passado, um dos pontos altos da rentrée brasileira foram os concertos Refavela 40, organizados por Bem Gil, filho do compositor do álbum de 77 que colocou a negritude, a soma de todas as cores, novamente no centro do debate cultural brasileiro. “Ainda estamos viajando com o projeto Refavela 40 anos”, indica Gil. “As novas gerações têm um apreço por esse álbum e meu filho Bem em especial, daí surgiu esse projeto.”
O brilho está intacto neste Refavela, que hoje é celebrado como nenhum outro álbum, numa carreira de mais de 60 possibilidades. “A inspiração para a concepção do álbum foi a viagem de Gil para a Nigéria, onde se deparou com o afrobeat de Fela Kuti”, conta Magno Brito ao Observador, baixista do Trinca de Ases e de Sinara, a recordar o II Festival Mundial de Artes e Cultura Negra em Lagos. “Ao mesmo que no Brasil acontecia o movimento Black Rio, nos bailes do subúrbio do Rio de Janeiro, e a reafricanização dos blocos Afros da Bahia”. Os blocos do carnaval baiano Filhos de Gandhy e Ilê Aiyê renderam canções imortais, nesta última onde canta que:
“Somo crioulo doido somo bem legal
Temos cabelo duro somo black power”
“Branco, se você soubesse o valor que o preto tem
Tu tomava um banho de piche, branco e, ficava preto também”
A conseguir tratar temas espinhosos com a mesma boa disposição de quem deu nome aos filhos de Bem, Preta e Bela. “Vivemos tempos difíceis em nosso país”, continua Magno, “e é imprescindível estar abordando esses temas para que possamos viver em uma sociedade mais justa”.
Nos bairros jamaicanos londrinos, e depois em Lagos, entre balafons e marimbas, o “Brasileirinho/ Pelo sotaque/ Mas de língua internacional”(“Refavela”), começa a exaltar em cantiga os Orixás de Candomblé, e incorpora uma nova identidade. “Antes não tinha essa consciência negra, só quando comecei a viajar”, revela, acrescentando que, “fui ganhando na idade adulta, pois na Bahia, onde os pretos são a maioria, não sentia nada de especial em ser preto ou branco.” O que sentia era uma responsabilidade com a família, com a figura paternal, que o incita a estudar na Universidade da Bahia, a casar, trabalhar numa empresa respeitada e, porque não, ser o primeiro executivo negro na multinacional Gessy Lever. “Eu fui trabalhar muito por causa do meu pai, que era um médico muito respeitado”, conta, “era muito difícil viver de música, eu era formado em administração e fui recrutado na Bahia para ir para essa empresa, em São Paulo”.
[Trinca de Ases em ensaio:]
Em São Paulo estava também a Elis Regina e os programas de televisão, que começa sorrateiro a participar, o amigo Caetano Veloso, os Beatles e Jimi Hendrix — e claro, um conjunto de pessoas que em reuniões decide organizar movimento, orientar o carnaval. “O Caetano acha que me encontrei nessas reuniões, que me formei ali”, diz ainda pouco crédulo nas palavras simpáticas do colega. “Ele gosta de dizer isso, mas eu digo sempre que sem Caetano nada seria possível”. O resto é história, uma ditadura que endurece a censura, a prisão dos dois amigos e um exílio em Londres, que começa a fase de descoberta do compositor, para longe das amarras da Tropicália. “Não necessariamente, eu queria evoluir e ir para outras praias”, discorda Gil, acrescentando que “de certa forma ainda estou fazendo a mesma coisa, sempre continuei a fazer o que propusemos com a Tropicália.” Falou, tá falado, não tem discussão. “Gil nunca se distanciou da Tropicália”, concorda Mauro, “as ramificações do movimento estão em toda a obra do artista”.
“Quanto mais purpurina, melhor”, ordena extasiado em Realce de 79, ordem vidente para os berrantes anos 80, êxtase confirmado pelas guitarras de Steve Lukather, dos Toto, e teclas de Jerry Hey, dos Earth, Wind and Fire, que nesse ano espalha o mesmo boogie num pequeno álbum chamado Off The Wall. “Estamos em 79, quando vai mudar tudo na MPB”, teoriza Júlio sobre o disco gravado nos estúdios Westlake Audio em LA, “a musicalidade, os teclados, ecos, e a primeira demonstração é no Realce“.
Gal Costa: “Tem que se ter coragem para ser ousada. E eu sempre tive”
Ninguém escapou incólume aos efeitos de caixas de ritmos para expressar a alegria de estar vivo, especialmente no Brasil, onde aterra finalmente a democracia. “É um álbum sintonizado com o universo da disco music”, afirma Mauro, “inovador por introduzir uma linguagem tecnopop na obra, anunciando o tom que a discografia do cantor teria ao longo dos anos 80”. Os grandes sucessos na nova e democrática onda de rádio FM são “Toda Menina Baiana” e “Não Chore Mais”, versão de Bob Marley. “Em Londres entrei pela primeira vez em contato com o reggae, através dos vizinhos e depois fui como um embaixador do reggae no Brasil”, conta, sendo que no set de Trinca de Ases está uma destas pérolas obrigatórias, o “Esotérico”. “Fiquei extasiado desde a primeira vez que ouvi Bob Marley, que foi o primeiro artista das Américas Central e Sul a virar Pop Star Mundial”, continua, “o reggae hoje está incorporado na nossa cultura, sobretudo na Bahia e no Maranhão”.
A sombra de Gil é grande, e é consequência direta disso que, hoje, a principal banda brasileira, BaianaSystem, seja baiana e inspirada também na cultura jamaicana, assim como na cultura de protesto social. Trinca de Ases tocam “Nos Barracos da Cidade”, sobre uma certa classe política brasileira, de gente estúpida, gente hipócrita, descrição estranhamente atual. “Concordo perfeitamente”, reconforta-nos Gil: “Continua uma letra actualizada, infelizmente”.
Outra deste concerto é “Copo Vazio”, que foi escrita para Chico Buarque quando a censura amordaçava os versos do compositor de “Construção”, obrigado a pedinchar músicas aos colegas. Será que existe um paralelo entre este tempo da ditadura e os de hoje, onde artistas como o amigo Caetano denunciam uma censura através de uma classe conservadora no poder? Gil veste a casaca de ministro novamente e procura o tom conciliador. “É diferente, hoje é uma questão de gosto”, argumenta. “Todas as ações civis fazem sempre sentido para mim, principalmente porque mostra que não estamos sendo enganados e podemos falar e reclamar de que não está bem”.
“Gil prefere chegar muito perto das questões”, sintetiza o diretor musical dos concertos no Campo Pequeno e Coliseu de Porto. “Nesse sentido, Gil é um artista implosivo, os temas que ele trata viram parte dele, como belas cicatrizes, troféus de uma vida dedicada à caça do que nós, humanos, temos de melhor e de pior.” O baixista de Trinca de Ases, que tem a tarefa árdua de acompanhar o mestre, realça a matriz criadora e completa do baiano. “É um exímio compositor, violonista e cantor, que tocou, cantou e compôs os mais variados géneros e estilos de música, consegue ser brasileiro e universal em tudo o que faz”.
[ao vivo:]
Em tempos de intriga e ebulição social e econômica, Gil é das poucas coisas totalmente consensuais no Brasil, o que justifica o momento de suspense que o país passou quando o cantor foi do palco para uma cama de hospital, no ano passado. “É resultado da idade”, confessa francamente: “Tive um problema sanguíneo que afetou minhas funções renais e cardíacas, foi bastante sério, mas felizmente os médicos brasileiros são muito bons e depois de algum tratamento voltei à ativa ainda mais cheio de energia”.
Recuperado, a vitalidade de Gil vai transparecer nos palcos portugueses e num novo disco de originais, produzido por Bem Gil, com lançamento para Abril. Nesta entrevista, depois de percorrer a trilogia Re, a criação dessa espécie de profeta campónio-citadino-africano, ainda estamos longe de decifrar o mistério que é a música de Gilberto Gil. Um dia, quando o mestre nos deixar desamparados, vamos ficar de mãos abanar, sem jeito, sem estilo, sem Gil. “Não é fácil pensar a música como ele, construir e desconstruir uma canção”, conclui Júlio. “É tão original que a seleção natural impede que surja uma escola Gilberto Gil.”