A escritora brasileira Giovana Madalosso, de 46 anos, chega stressada. Um imprevisto fez com que se atrasasse para a entrevista, num dia organizado ao minuto. Depois de descer em passo acelerado a Rua de São José, em Lisboa, pede desculpas – pedirá várias vezes. Não tem muito tempo. Já pressa tem de sobra, como é comum em tantas mulheres, sempre a correr, incluindo uma das protagonistas do livro que apresentará daí a menos de duas horas na Livraria A Travessa, na zona do Príncipe Real, Suíte Tóquio (Tinta da China).
É, aliás, a falta de tempo que serve de gatilho a toda a ação. Na verdade, o facto concreto é o rapto de uma criança de quatro anos, a filha dessa mulher. Mas se não fosse a falta de tempo, motivada por uma promoção na produtora televisiva onde trabalha, Fernanda nunca teria tido de seduzir a “babá” (“ama”, em Portugal) a passar a viver em sua casa, com uma única folga de 15 em 15 dias. “De certa forma tudo dependia dela”, reflete. Também não se teria sentido culpada e, por conseguinte, obrigada a transformar o quarto de empregada “num lugar claro, descolado e dotado de amenidades como tevê e frigobar, um quarto que poderia bem ser a suíte de um hotel japonês” – e que para se sentir “menos escravocrata” baptiza “de Suíte Tóquio.”
Madalosso ainda é um nome desconhecido em Portugal, mas este terceiro livro – e primeiro editado por cá – está já a chamar a atenção em várias partes do mundo, com uma edição colombiana e outras previstas para os Estados Unidos, Reino Unido e Itália. Com uma frescura e honestidade surpreendentes, leva-nos numa viagem alucinante por dois mundos opostos, paralelos e em silenciosa tensão, o da patroa, Fernanda, e da babá Maju. Da luta de classes às lutas interiores, do urbanismo limite de São Paulo à natureza essencial da Amazónia, da espiritualidade das santas e santinhos às viagens de auto-conhecimento à boleia da ayahuasca. Em fundo, uma série de reflexões certeiras sobre a maternidade, o casamento e o medo. Gente que, apesar das suas diferenças radicais, se encontra na solidão, na alienação e no humor – que torna tudo isto suportável.
O que quis dizer com esta história?
De início achei que estava a escrever uma história sobre maternidade. Quando levei o livro já pronto ao meu editor, ele disse: “Não quero dececionar, mas, primeiro, este não é um livro sobre maternidade, é um livro sobre afetos; segundo, ‘Maternidade’ não é um título que eu desse.” Aí percebi que estavam presentes no livro muitos mais temas: maternidade, casamento, crise na relação monogâmica – e a questão das classes. Daí o nome Suíte Tóquio, porque o título de um livro também o define.
Por que razão contar a história a partir de duas perspetivas muito pessoais e quase opostas, a da babá e a da mãe?
Primeiro, a babá: tenho uma filha de nove anos, e a ideia para este livro surgiu da minha experiência de vida quando ela tinha quatro, a mesma idade de Cora.
Tinha uma babá na altura?
Este livro critica a tensão de classes mas – e gosto sempre de dizer isso — não existiria se eu não tivesse tido ajuda de uma babá. Não tive uma babá a viver em minha casa, numa Suíte Tóquio, numa situação que para mim muito análoga à escravidão, mas tive uma babá algumas horas por dia durante todo esse processo. Este é um livro que não existe para criticar a narradora Fernanda, mas para criticar o sistema social brasileiro: sem creches, sem escola pública, com uma carga horária muito reduzida. Também quero que as mulheres de classe média se questionem: como é que eu remunero? Como é que eu cuido da mulher que me permite ser a profissional que eu quero ser? Sou escritora: tenho o privilégio de poder passar muitas horas com a minha filha. Ia para a Praça de Buenos Aires, em São Paulo, que aparece no livro, ouvia as babás e pensava, “Nossa, essas histórias são tão da literatura e ninguém está a pegar nelas.”
Como é que isso acontecia? Metia conversa? Entrevistava-as?
Há uma abordagem muito comum que é elas procurarem emprego para as amigas: “A senhora” — se dirigindo a mim — “não sabe de alguém que esteja precisando?” Isso “vira” um gancho e, enquanto as crianças estão brincando, começa uma conversa. Uma história muito comum é virem trabalhar do Nordeste para São Paulo e deixarem lá os filhos, que ficam quatro, cinco anos sem ver.
Tinha noção de tudo isto antes de ser mãe?
Isto faz parte da nossa vida no Brasil. A minha avó era cuidada por uma mulher que deixava a filha de 10 anos cuidando de três mais novos. A minha geração foi criada por empregadas morando dentro de nossas casas. Eu também. Na minha geração já há menos empregadas em casa, mas contaram-me que parte dos brasileiros que vieram morar para Portugal trouxeram com eles uma série de hábitos de lá, como o facto de as babás usarem uniforme branco e o uso do elevador de serviço, que o sector imobiliário teve de acompanhar. Assisti a tudo isto, mas sem me dar conta. A gravidez, ter a minha filha e ter convivido com essas mulheres fez com que houvesse um clique: “Vi isso a vida inteira e nunca parei para pensar?”
Aquilo a que chama “o exército branco”.
Por isso que eu digo que esse “exército branco” é um exército invisível. São as mulheres que permitem que o Brasil seja o Brasil. Elas carregam o país às costas. Se não fossem elas, homens e mulheres não poderiam trabalhar fora de casa. Muitos casamentos nem sequer resistiriam. Por fim, houve um caso decisivo, no bairro onde moro, que transformei num dos capítulos do livro [a história de uma ama que tem um bebé e o abandona num saco junto a uma árvore]. O mais curioso foi que os meus amigos escritores que leram o manuscrito disseram: “Giovana, o seu livro é ótimo, é tudo crível, mas tem um capítulo que não ‘cola’.” E era o único capítulo real do livro.
As duas persongens têm características que permitiriam apresentá-las como vilãs: uma rapta uma criança; outra é uma mãe que não estabelece uma ligação com a filha e que trai o marido. Mas ao longo do livro não parece haver um julgamento. A dada altura refere-se, aliás, que um dos problemas de uma personagem é “julgar tudo o tempo todo”. Posto isto, o que representam elas?
A questão do não-julgamento é central. Embora me incomode muito a forma como a Fernanda explora a Maju, eu consigo olhar para a Fernanda e ver as dificuldades que ela enfrenta num sistema de trabalho inclemente. A Fernanda “carrega” a casa, o marido, a mãe. Ela enfrenta os desafios universais da maternidade. Tentei ter nesse livro um olhar muito generoso. A vida é bastante complexa para a maioria das pessoas – e o que me interessa é o lado vulnerável do ser humano.
E como é que se consegue vestir a pele e dar uma voz na primeira pessoa a duas pessoas tão diferentes?
É um processo meio esquizofrénico. Queria deixar as duas em pé de igualdade e dar ao leitor o mesmo acesso ao universo subjetivo de cada uma. Há uma tentativa de equilíbrio a toda a linha, mesmo a nível de número de páginas.
Porquê?
Porque eu não queria tornar uma delas melhor que a outra. Interessava-me baralhar os leitores.
A maternidade ainda é um tabu? Esta coisa de as mulheres poderem dizer que não querem ser mães ou que não conseguem ligar-se a esse sentimento?
Acredito que a literatura só começou a desconstruir a maternidade quando foi empurrada pela quarta onda feminista. É um movimento recente, de há 50 anos. Ainda há muita coisa para desconstruir
E é intencional, neste caso, dar voz a uma mãe que não quer ser mãe?
É uma mãe que não consegue conectar-se com a maternidade. Cobra-se que mal se tem um filho deve começar a amar-se esse filho. Há quem leve um mês, um ano, dez anos. Há mulheres que morrem sem fazer essa transição. Interessou-me escrever sobre esta mulher porque eu, pessoalmente, demorei um pouco. Sinto ao mesmo tempo esse amor excessivo da Maju e em alguns momentos a falta conexão com a maternidade da Fernanda. E tudo isso pode estar numa pessoa só.
Todas estas personagens procuram ajuda na transcendência, sejam os santinhos da Maju, o tarot do Cácá ou a ayahuasca da Fernanda. Porquê?
Sabe que eu não sei… Acho que dá para pegar na solidão. Eu moro em São Paulo e é um espaço urbano muito pouco amigável. As pessoas veem pouco os amigos. As babás às vezes demoram duas horas e meia para chegar ao local de trabalho, daí dormirem em casa dos patrões. Toda a vida é muito pautada pelo trabalho. Essa busca de respostas nasceu muito de mim. Estou sempre tentando ter fé e nunca consegui. A religiosidade é muito natural nas classes mais baixas, então seria natural na Maju — foi uma coisa que incorporei quase sem pensar, inspirada na minha avó que era uma grande devota da Nossa Senhora Aparecida. Nessa minha busca de espiritualidade encaixou-se um outro interesse meu, pela tribo dos Yawanawa. Eu já tinha tomado o chá [ayahuasca] em São Paulo, mas queria tomar dentro do conceito ritualístico da Amazónia. Esse episódio foi daquelas coisas que eu encaixei na narrativa para poder ir.
E que papel desempenha na narrativa?
A Fernanda está à procura de respostas. Na verdade, todos estamos. Mas ela chega à Amazónia numa altura de crise, em que não faz ideia de como vai resolver a questão do seu casamento. E a ayahuasca é uma planta que traz respostas. Às vezes você quer resolver uma coisa, mas o que vê é outra. Quando a Fernanda toma o chá, surge-lhe aquilo que está crucialmente mal resolvido dentro dela: a relação com a filha. Temos um acesso raro ao inconsciente dela, geralmente muito oprimido pelas elaborações intelectuais.
No seu caso, o facto de ir em trabalho afetou a experiência?
Você vai até rir-se. É muito duro chegar lá. São 24 horas de viagem, primeiro de avião, depois carro e no fim barco. Quando começa a subir o rio de barco, acabou a sua comunicação com o mundo. Numa aldeia ao lado da minha, a uma hora de distância, havia um telefone público – quebrado. Se uma cobra me mordesse, que era o meu grande medo…
… e que é o medo da Fernanda.
Isso. Para “chegar” num pronto socorro são 10 horas. Para mim foi muito interessante fazer isto porque foi o meu primeiro desligamento materno. A minha filha tinha seis anos na altura e eu fiquei sem notícias dela durante 10 dias. Só que, por acaso, cheguei na altura de um festival anual, o Mariri, e…
Foi sozinha?
Fui com o meu irmão e o meu primo. E aí cheguei na altura do pôr do sol e vi-os todos nus, só com uma saia de palha (eles no dia-a-dia vestem-se como nós), a cantar – e chorei de emoção. Fui tão tomada por toda a experiência, sem tomar ayahuasca – e isso é outra história — que me esqueci completamente do romance. Não anotei nada. Só quando entrei no barco de regresso é que me lembrei. Mas aí há uma coisa fantástica. Se você for antropóloga, bióloga, jornalista, você tem de tomar notas. Mas como escritora, trabalho muito com a leitura olfativa, visual, táctil que faço das coisas. E quando cheguei a casa estava tudo pronto na minha cabeça para começar a trabalhar.
Já agora, por que razão acabou por não tomar ayahuasca?
Gostaria muito de ter tomado, mas a ayahuasca é incompatível com alguns poucos medicamentos e eu estava a tomar um deles. Fiquei de coração partido. Mas vou voltar.
No livro fala muito sobre o medo. A pajé (xamã) da tribo não tem medo, mas todas as outras pessoas têm. Lê-se: “[Entre os indígenas] Tudo girava em torno de enfrentar o medo, algo que achei fascinante, porque fui treinada para suprimi-lo.” Este livro também é um alerta sobre o poder que o medo tem de nos amputar?
Eu sinto muito medo. O medo priva-nos de viver muitas coisas. Experiências ricas que poderíamos ter. Aquilo que escrevi é uma coisa que costumo dizer à minha filha: “Bota o medo na garupa e vai com o medo!” Ou seja, vai apesar do medo. Há aí uma questão que é minha.
E, na sua opinião, temos mais medo agora do que há 100 anos?
Com certeza. Tenho um enteado de 14 e outro de 16 e já vejo que a geração deles arrisca menos. Vive com mais medo de se relacionar, medo da pandemia. Também existe a questão do digital — as pessoas deixaram de olhar olhos nos olhos. Acho que o medo é uma coisa para ser atravessada; não eliminada, porque isso não é possível.
E é no regresso à natureza que está a resposta? Esta cena de que falamos passa-se na selva, quando a Fernanda se liberta de uma série de camadas.
A resposta está dentro de nós. Muitas vezes é muito difícil entrar em contacto com as coisas mais óbvias. A ayahuasca e algumas outras experiências espirituais podem ajudar-nos a ver. Da mesma maneira que não consegui enxergar a babá quando era pequena ou que, quando tomei o chá, descobri que me abaixava pouco para olhar nos olhos da minha filha. Eu que sou uma mãe tão dedicada. Que coisas pequenas e transformadoras não conseguimos ver dentro de nós? Essa busca está presente no livro.
E o humor, que papel desempenha?
Não consigo escrever sem humor. É a ferramenta que uso para lidar com a minha própria vida, com as questões mais difíceis. É uma coisa tão atávica que quando resolvi criar duas vozes bem distintas para as duas narradoras, com uma sintaxe [o discurso da Maju tem mais vírgulas, por exemplo] e vocabulários próprios [uma delas diz “trepar”, a outra “fazer amor”] e tentei que uma delas não tivesse humor, não consegui. Aí pensei que cada uma teria o seu tipo de humor: o da Fernanda mais sarcástico e o da Majú mais espontâneo.
No seu instagram apresenta-se como “feminista climática”. O que é isto?
Quando há uns anos descobri a gravidade da questão climática, fiquei tão impactada que durante meses não conseguia falar noutra coisa. É esse o grande assunto do momento. No Brasil temos uma responsabilidade enorme por causa da Amazónia. Mantenho com um jornalista, um cartoonista e uma poeta uma plataforma digital chamada Fervura, em que usamos todas essas linguagens para falar do clima.
Mas porquê juntar as duas coisas, feminismo e clima?
Primeiro, porque são as minhas duas grandes militâncias. Depois porque a gente não se dá conta, mas a mudança climática vai de novo castigar as partes mais vulneráveis: os negros, as mulheres, as pessoas menos favorecidas. Quem tem dinheiro vai estar muito bem, com o seu ar condicionado, a morar na Nova Zelândia ou na Lua. Já aqueles que menos contribuíram para o aquecimento são os que vão pagar a conta mais alta.
É também por isso que uma das personagens principais, que vive num mundo muito urbano e mediatizado, só quando vai para a natureza é que se encontra?
A literatura é um trabalho lindo porque nada é aleatório. Até brinco e digo que o romance tem um poder oracular. Antecipa coisas a nosso respeito e entrelaça coisas sobre o autor de que não nos damos conta.
E a criança, o denominador comum entre as duas personagens. Por que razão é uma criança de quatro anos a personagem central?
Ela é um epicentro. Mas só depois de acabar o livro é que me apercebi que é uma personagem menor.
Não é desenvolvida. Um pouco como às vezes é a nossa relação com as crianças: gostamos muito delas, achamo-las muito engraçadas, mas não perdemos tempo a ir ter com elas e conversar com elas.
Talvez pela minha falta de me abaixar e olhar nos olhos da criança. E é a sério isto que digo: muitos dos meus dramas estão projetados nestas duas personagens, a Maju e a Fernanda, e eu me abaixei muito pouco para olhar a minha filha. Espero que esteja abaixando mais. Até lancei um livro infantil.