Ainda não é desta que há um acordo final assinado entre os municípios e o Governo para, de uma vez por todas, descentralizar o país — mas esta terça-feira trouxe avanços substanciais ao processo. Já existe uma proposta de acordo, enviada pelo Executivo e à qual o Observador teve acesso, que revê boa parte dos critérios e valores que os autarcas criticavam há meses. Mesmo assim, o processo continua a não ser complexo e falta acertar algumas partes do acordo, reclamam os autarcas do PSD — pelo que a assinatura final do acordo voltou a ser adiada.

A expectativa inicial, apurou o Observador junto de várias fontes que acompanham o processo, era de que o acordo que deve dar o empurrão final a um processo que se arrasta há quatro anos pudesse ser assinado já esta semana entre o Governo e a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP). Foi, aliás, por isso que no início da semana a ANMP fez uma maratona para terminar todos os pormenores a tempo de, nesta terça-feira, apresentar o novo acordo que está a negociar com o Governo aos membros do seu conselho diretivo e do conselho-geral, presidido por Carlos Moedas.

Ora as conclusões das reuniões dos dois órgãos trouxeram um novo adiamento, confirmado pelo presidente da câmara de Lisboa: o acordo não está ainda pronto a assinar e no dia 20 de julho os órgãos da ANMP voltarão a reunir-se para  “analisar melhor a documentação” e permitir que “o conselho diretivo seja mandatado para avançar na negociação”.

Mesmo assim, o social-democrata considerou que esta foi uma “excelente” reunião e a líder da ANMP, a socialista Luís Salgueiro, considera que agora, em vez de uma luz ao fundo do túnel do pesado processo da descentralização, já se vê um “clarão”. Não foram os únicos a ver sinais positivos. Hélder Sousa Silva, presidente dos autarcas sociais-democratas — que ainda no domingo tinham emitido um comunicado garantindo que as autarquias do PSD não estariam prontas para assinar o acordo, por haver muitas questões ainda a definir, incluindo sobre as verbas que as autarquias iriam receber — diz agora ao Observador, no rescaldo da reunião, que “o Governo veio dar-nos razão com este acordo” (também aos autarcas socialistas, que apontavam queixas coincidentes) e “aceitou uma série grande, importante, de propostas dos autarcas sociais-democratas e da ANMP”. “Foi um avanço interessante e considerável”, nota.

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Como o Observador pôde confirmar na proposta de acordo e junto do ministério da Coesão Territorial, esses avanços têm a ver com várias das reivindicações que estavam em cima da mesa e sem as quais os autarcas diziam ser impossível aceitar novas competências que eram, até agora, desempenhadas pelo Estado central. De questões que pareciam mais de pormenor, mas importantes para o poder local — como a participação dos municípios na definição dos horários de funcionamento dos centros de saúde, por exemplo — à criação de programas de maior dimensão, como os de requalificação ou reconstrução de edifícios em mau estado.

O documento, que será assinado por um conjunto alargado de ministros — Finanças, Educação, Saúde, Ambiente e Coesão Territorial — é resultado do “reconhecimento da necessidade de ajustamentos ao longo do tempo”, reconhece o texto, especificamente em duas das áreas mais pesadas, e cuja transferência está mais atrasada, da descentralização: a Saúde e a Educação.

Os detalhes do acordo: de centros de saúde a escolas requalificadas

O acordo estabelece, nestas áreas, vários montantes específicos e responsabiliza o Estado central por várias tarefas que as autarquias reclamavam não serem suas, incluindo dois programas para a requalificação de escolas e centros de saúde em pior estado de conservação, financiados a 100%.

Sobre a manutenção das escolas que passam a estar sob alçada dos municípios — um dos tópicos que mais críticas geraram e que Rui Moreira, o autarca do Porto que bateu com a porta da ANMP, usou para justificar a cisão — o valor a transferir para as autarquias ficará fixado nos quatro, seis ou oito euros por metro quadrado de área coberta, de acordo conforme a antiguidade de cada edifício. Daqui resulta que cada escola receberá o valor correspondente à soma dessas parcelas, ou pelo menos 20 mil euros, se esse cálculo não chegar a esta fasquia mínima.

No mesmo texto, o Governo compromete-se a recuperar e a reabilitar um conjunto de escolas do 2º e 3º ciclo e de escolas secundárias que estão identificadas como necessitando de intervenção prioritária, ao abrigo de um Programa de Recuperação/Reabilitação de Escolas (financiado com recurso a várias fontes de financiamento, do PT 2030 ao Plano de Recuperação e Resiliência).

Quanto às refeições escolares, que tinham sido outro ponto de discórdia, o valor máximo da refeição a cobrar aos alunos (parte das quais o Estado central comparticipa) já ia subir de cerca de 1,45 euros para 2,5 euros, mas o acordo passa agora a estabelecer 2,75 euros.

Outro ponto das reivindicações das autarcas que tem, aqui, resposta tem a ver com as condições dos trabalhadores que passam para a esfera das autarquias, nestas áreas. O texto estabelece que a administração central terá de suportar as despesas com seguros e acidentes de trabalho, higiene, medicina do trabalho ou ADSE.

Na área da Saúde, tal como acontece com as escolas, o Governo compromete-se também a fazer obras de construção ou de recuperação em vários centros de saúde (o número não fica, tal como nas escolas, especificado, faltando o mapeamento desses equipamentos), recorrendo igualmente a verbas do PT 2030 e do PRR.

O texto salvaguarda ainda uma outra condição: poderão ser recrutados trabalhadores para preencher postos de trabalho que em que tenha havido funcionários que se tenham reformado até doze meses antes da transferência de competências, assumindo o Estado central esses custos.

Quanto às verbas que serão aplicadas em todos estes casos, e que não são cobertas pelo Orçamento do Estado — uma vez que a negociação entre o Governo e a ANMP para este novo acordo visa precisamente corrigir falhas entretanto denunciadas, particularmente no périplo que as ministras da Coesão e da Saúde andaram a fazer pelo país — o texto lembra que o Fundo de Financiamento da Descentralização, que consta do OE, “prevê um mecanismo de correção das verbas transferidas”. Mas, segundo as várias fontes envolvidas no processo e ouvidas pelo Observador, as garantias já envolvem promessas para o Orçamento de 2023 — até porque o Orçamento de 2022 só estará, em rigor, em vigor por poucos meses.

Quinze dias para a reta final

Se os pontos em que há avanços são consensuais e reconhecidos por Governo, PSD e ANMP, as divergências têm a ver com as partes do acordo que não estão concluídas. Ao Observador, Hélder Sousa Silva diz que “falta algo essencial”: a listagem de “todos os equipamentos quer na educação, quer na saúde, mapeados, calendarizados, e quais os critérios de prioridade na intervenção em cada um, assim como as suas fontes de financiamento”.

No entanto, de acordo com a informação apurada pelo Observador junto da ANMP e do ministério da Coesão Territorial, o que fica a faltar neste momento é fechar lista das escolas (que está feita, mas existe uma cláusula que permita que escolas em falta possam ser acrescentadas) e centros de saúde (neste caso, as intervenções devem ficar definidas até dezembro) prioritários para serem alvo de requalificação. Espera-se que estes mapas fiquem finalizados até à reunião de 20 de julho, para que o acordo possa ser assinado depois. “Serão mais 15 dias para a ANMP poder continuar as negociações com o Governo para clarificar estas situações”, diz o líder dos autarcas sociais-democratas.

Das reuniões de autarcas saiu ainda a data para um novo encontro nacional de autarcas, que vai decorrer a 17 de setembro, para debater o tema da descentralização — mesmo que a Saúde e a Educação fiquem finalmente fechadas, falta outra das pastas mais pesadas, da Ação Social, cuja transferência ficou adiada para o próximo ano. Mas os autarcas planeiam abordar nesse encontro também outros temas de fundo, como a lei de finanças locais e o estatuto dos eleitos locais.