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Há muita gente zangada no país mais rico da União Europeia

A economia alemã cresce, tem 4% de desempregados e um salário médio de 2300€/mês. Seria de esperar que todos os alemães estivessem satisfeitos. Mas os números não chegam para conter a fúria de alguns.

Reportagem na Alemanha

Casinhas de telhado bicudo enfileiradas em ruas compridas, uma igreja com uma torre alta, padarias com brezel, talhos com salsichas e velhinhas a passear de bicicleta. Hassloch é uma povoação igual a tantas outras na Alemanha. Não. Hassloch é mais igual do que qualquer outra. Há décadas que a aldeia da Renânia-Palatinado – a maior do país, com 20 mil habitantes – é estudada na sociologia e no marketing como o lugar médio da Alemanha. Hassloch partilha com a nação a média de idade (47 anos), o ordenado médio (2300 euros mensais) e a percentagem de habitantes sem cidadania alemã (22%), entre outras estatísticas. Hassloch é normal. Vulgar. Banal.

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“Para a maioria das pessoas, ser normal ou médio é uma coisa chata, sem interesse”, diz Ralf Troesch, de 46 anos, homem maciço, vereador do pelouro social do município, eleito pelos socialistas do SPD. “Mas nós temos muito orgulho em sermos médios e representativos da realidade da Alemanha. É isso que nos torna especiais.” Os padrões de consumo de Hassloch são tão semelhantes aos nacionais que há cerca de trinta anos a Gesellschaft für Konsumforschung (GfK) – Instituto para o Consumo – a tornou numa espécie de laboratório a céu aberto. “Desde então, as marcas testam os seus produtos em Hassloch antes de os lançarem no mercado”, diz Troesch. Ou seja, as casas das famílias são brindadas com produtos que não existem em mais nenhum lugar que não os supermercados locais. “Se um chocolate, uma cerveja ou um detergente resultar aqui, tem boas probabilidades de ter procura no resto do país.”

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Se o nível de vida e os hábitos de consumo são uma amostra perfeita dos existentes no restante território, é legítimo concluir que os resultados eleitorais de Hassloch no próximo domingo não diferirão muito do total nacional. “Mas nem as urnas estão no supermercado, nem a política é tão previsível como um estudo de marketing”, diz Troesch. Por um lado, é expectável que a CDU, o partido conservador, repita aqui a vitória das últimas eleições. Afinal, a vida parece correr às mil maravilhas: não há pobreza, quase não há desempregados, as casas são grandes, ruas limpas, estruturas funcionais, criminalidade zero. Mas, curiosamente, há muita gente insatisfeita com a grande coligação centrista chefiada por Angela Merkel. O AfD, de extrema-direita, alcançou 18% no sufrágio estadual do ano passado.

Ralf Troesch, de 46 anos, vereador do pelouro social de Hassloch, eleito pelo SPD

Incomodados com o resultado, Troesch e outros políticos locais do SPD e da CDU foram falar diretamente com os eleitores do partido nacionalista. “Quando lhes perguntámos que problemas tinham, responderam que não tinham nenhum, que estavam bem com a vida”, diz o socialista. “Isso só me leva a concluir que estamos perante votos de protesto. Mas protestam contra o quê? Aqui nunca tivemos um campo de refugiados e os 180 que recebemos estão distribuídos pela povoação e bem integrados. Então, só pode ser o medo, a insegurança que lhes é transmitida pelo que vêem na televisão e lêem nos jornais”. Até nisso Hassloch – que, literalmente, significa “buraco de ódio” – é um barómetro dos sentimentos dominantes na Alemanha. Há insatisfação e desconforto, apesar do melhor período económico da história do país.

“Os meios de comunicação convencionais estão muito ligados ao problema”, diz Sebastian Jader, 34 anos, filho de mãe italiana e pai alemão, gerente de uma gelataria no centro da aldeia. “Há pouco tempo o Bild tinha na capa que uma mulher de burqa tinha agredido uma vendedora de uma loja de lingerie. O que é isto? Numas situações exageram, noutras ocultam os problemas, tudo para obedecer a uma agenda dominada pelos partidos do sistema”. Sebastian, formado em economia, trocou Mannheim por Hassloch, porque a sua empresa o nomeou para ali testar novos sabores e uma parceria com a Coca-Cola. Os crepes salgados, ensaiados no início no ano, falharam por completo. Mas a mudança agradou-lhe: “Vou ser pai daqui a dois meses e eu e a minha mulher decidimos ficar a viver aqui porque a qualidade de vida é superior à que temos na cidade”.

Uma qualidade de vida que não é suficiente para fazer com que recompense a política de Merkel. “Estou farto dela e dos partidos do governo”, diz. “A economia pode estar forte, mas há coisas que não posso aceitar. Porque continuamos a aceitar que drones assassinos sejam lançados e dirigidos a partir de bases militares americanas na Alemanha? E que continuemos a vender armas a países como a Arábia Saudita, que com elas matam inocentes no Iémen?”. Embora dizendo-se de esquerda, Sebastian afirma que não teria qualquer problema em votar na extrema-direita para castigar a CDU e o SPD. Como ele, muitos dos seus clientes já lhe demonstraram descontentamento. “Primeiro, é o tema da imigração, mas também vejo muita gente preocupada com o sistema de pensões, porque com a população a envelhecer desta maneira ainda não se encontrou solução para financiar a segurança social no futuro.”

Sebastian Jader, 34 anos, gere uma gelataria no centro de Hassloch

Wolfgang Merkel – que não aprecia muito brincadeiras em torno do seu nome, uma combinação entre o de Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças, e o da chanceler Angela Merkel —, é um desses clientes críticos. O pintor e fotógrafo, cujas obras estão expostas na parede da gelataria, não hesita em usar o termo “Lügenpresse” (imprensa mentirosa) para se referir aos meios de comunicação social, que diz ter deixado de consumir. Costumava votar no SPD, mas no domingo vai colocar a sua cruz nos liberais do FDP. “Recuso-me a votar na mutti [mãezinha, termo pejorativo associado a Angela Merkel], e não só devido aos erros cometidos durante a crise dos refugiados. A vida na Alemanha não está melhor, é uma farsa. As famílias têm cada vez mais dificuldades em pagar as despesas.”

Diante do portão do seu quintal, onde uma bandeira com a águia alemã se agita entre flores vermelhas, Ingo, camionista retirado e dedicado à plantação de batatas, explica quais são essas dificuldades: “Mais de metade das nossas reformas é para pagar a casa, as despesas e os seguros de saúde. Ficamos com o quê? Quase nada. Antes conseguíamos fazer umas férias no estrangeiro, agora temos de acampar no lago aqui da zona. O país tem capacidade para nos dar mais apoio, mas se tem de o dividir com os estrangeiros, não chega”, diz.

Um bairro social na Alemanha? É diferente…

Mainz, 60 quilómetros a norte, é a capital da região. Na rua, é difícil identificar pobreza: os carrinhos de supermercado transbordam de alimentos, restaurantes cheios, lojas movimentadas. Mombach, o bairro que mais gente se identifica como da classe baixa, tem casas sólidas, pintadas de fresco, cheias de dignidade, um planeta a milhas de distância de um bairro social em Portugal. Alguém do sul da Europa pode ter tendência a considerar as queixas dos alemães meras pieguices. No fim de contas, num inquérito recentemente promovido pela ZDF, 93% dos alemães responderam que o seu nível de vida era aceitável, bom ou muito bom, enquanto apenas 7% responderam que era mau ou muito mau.

Com este contexto, um poster eleitoral como o de Martin Malcherek, 45 anos, advogado e líder local do Die Linke, parece desajustado: “Pão, vinho e salsichas para todos”, lê-se. Qual a razão deste slogan se aparentemente ninguém sente falta dos produtos básicos? “Na nossa região, o pão, o vinho e as salsichas fazem parte da vida social”, diz o candidato da esquerda. “A maior característica da pobreza na Alemanha é a falta de capacidade económica para integrar a vida social. Estamos a falar de pessoas que não são contabilizadas como pobres, mas que não têm posses para se juntarem aos amigos para beber uma cerveja, ir ao cinema ou frequentar a piscina pública. A Alemanha movimenta muito dinheiro na economia mas não o distribuiu equitativamente.”

Poster eleitoral Martin Malcherek, 45 anos, advogado e líder local do Die Linke. “Pão, vinho e salsichas para todos”, lê-se

As desigualdades sociais cresceram ao longo dos 12 anos de Angela Merkel no poder. Segundo a OCDE, o rendimento médio per capita dos alemães é de quase 30 mil euros anuais. Mas há um grande fosso entre ricos e pobres – os 20% da elite ganham quatro vezes mais do que os 20% da base. “Os alemães têm a tendência para ignorarem os seus próprios interesses e para privilegiarem um conceito abstracto que é o poder económico”, diz Malcherek. “Continuam a votar em Angela Merkel, não por acharem que recebem aquilo que merecem, mas por se iludirem com os dados macroeconómicos que mostram uma riqueza que nunca chega a eles.” Martin acha que o subsídio de desemprego devia ser de 1050 euros. O vigente, para uma pessoa sozinha, é de 404,50, acrescido de apoio para a renda de casa.

Segundo os padrões dos estudos internacionais, uma pessoa vive em pobreza quando recebe menos de 60% do rendimento per capita. Na Alemanha, isso significa pouco mais de 900 euros para alguém a viver sozinho e cerca de 2000 para uma família com dois filhos, contemplando 15,4% da população. Mas a pobreza é um conceito complexo. Como mostra a justaposição destes dados com o do estudo da ZDF, há pessoas identificadas como pobres que consideram a sua vida razoável. Outras haverá que passam por dificuldades económicas, embora não estando contabilizadas nas estatísticas. Há solidão? O emprego é precário? O apartamento é demasiado pequeno ou precisa de reparação? Só compra roupa em segunda mão e não pode jantar fora? Estes critérios começam a ser estudados por investigadores para definições mais precisas de pobreza. E muitos acreditam que possam estar por trás da insatisfação da fatia do eleitorado que, apesar dos resultados económicos, optará por punir o governo alemão nas próximas eleições. “Apesar da vitória provável, não nos podemos esquecer que a CDU vai ficar pouco acima do seu mínimo histórico”, diz Wulf Schmiese, 50 anos, coordenador do Heute Journal, da ZDF.

Em última instância, tudo passa por sabem com quem nos comparamos. Ser pobre num bairro social português, em que a maioria dos que nos rodeiam sofrem das mesmas privações, é mais fácil de aceitar do que sê-lo em Munique, uma cidade abastada em que uma cerveja custa 4 euros e o aluguer de um apartamento raramente abaixo de 1000. Esta é uma discussão que vem frequentemente à baila na antecâmara das eleições. Discussão de bar em Mainz: ele, jornalista, salário líquido acima dos 3000 euros, ela, sozinha com quatro filhos, 1800 de salário mais 1000 de pensão de alimentos. “Temos bons salários, benefícios sociais, pouco desemprego. Compara com os outros países europeus, do leste e do sul. Somos demasiado ricos”, diz ele. “O que tenho mal me dá para pagar a renda, a escola dos meus filhos e os seguros de saúde. Se o país tem tanto dinheiro, porque não nos ajuda mais? Não me quero comparar aos países mais pobres, mas à Suécia e à Dinamarca.”

Wulf Schmiese, 50 anos, é o coordenador do Heute Journal, da ZDF

Na margem do rio Reno, onde centenas de universitários aproveitam os raios de sol para se estenderem na relva a beber com os amigos, uma senhora de 66 anos recolhe as garrafas vazias; tem um gorro branco, de onde lhe fogem finos cabelos grisalhos, olhos acinzentados como a água do rio e um pesado casaco até aos joelhos. Depois, vai depositá-las nos supermercados, que lhe pagam à unidade: 25 cêntimos por garrafa de plástico, 8 cêntimos por uma cerveja. “Nasci na Áustria, mas vim para a Alemanha muito nova. Vivi com um alemão quase trinta anos, mas não casámos. Quando ele me deixou, fiquei sem nada”, diz. Recebe através do Hartz IV, o programa criado no tempo do governo SPD de Gerhard Schröder, que cortou os benefícios sociais na Alemanha, 648 euros. “Com estas garrafas consigo mais uns 200 ou 300 euros por mês”, diz. No próximo domingo, não vai votar: “Acho que é o que merecem por me deixarem viver assim”, diz. Junta-se assim aos 35% esperados de abstenção. Gente zangada. Ou alienada. A quem os dados económicos não impressionam.

Perguntamos-lhe o nome. Não diz. Nem nome nem fotografia, porque não quer que os familiares a vejam. Pobreza envergonhada. Também existe na Alemanha.

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