Este artigo foi originalmente publicado a 24 de setembro de 2018 e atualizado a 28 de outubro de 2018, após serem conhecidos os resultados finais da segunda volta das eleições presidenciais brasileiras
Há duas maneiras de olhar para alguém que parece fazer uma coisa e o seu contrário. Quem chega com vontade de dizer mal, vai dizer que é incoerência. Quem só é capaz de ver o lado bom, responderá antes que é ponderação.
Incoerente ou ponderado, o candidato do PT derrotado nestas eleições, Fernando Haddad, encerra em si múltiplas hipóteses. Desde novo, reza todas as noites antes de dormir, apesar de não ser religioso. Enquanto estudante, defensor do marxismo e militante do PT, escrevia a tese de mestrado “Caráter sócio-económico do sistema soviético” ao mesmo tempo que trabalhava como analista de investimento no Unibanco. Como ministro da Educação, conseguiu uma medida que embevece qualquer esquerdista — garantiu bolsas de estudo aos mais pobres — mas utilizando um mecanismo do qual a maioria dos esquerdistas foge, que são as parcerias público-privadas. E enquanto prefeito de São Paulo, implorou à Presidente Dilma Rousseff que o deixasse aumentar os preços dos autocarros, apesar de ser o meio de locomoção dos mais pobres, espoletando a primeira onda de manifestações anti-PT, que mais tarde ganharia proporções de tsunami.
Não é por acaso que lhe chamam “o petista mais tucano do Brasil”. Ou seja, o militante do PT mais próximo do PSDB, que atualmente oscila entre o centro e o centro-direita.
Mas a maior contradição — ou talvez antes ato de ponderação — da vida de Fernando Haddad reside precisamente no momento que viveu nestas eleições, como candidato presidencial do PT. Anunciado como vice de Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde abril e legalmente impedido de concorrer a eleições por uma lei que o seu próprio governo ajudou a fazer, Fernando Haddad acabou por saltar para a posição de principal candidato do PT quando se tornou evidente que o partido não podia esticar por muito mais tempo a ideia fantasiosa de que Lula seria candidato.
[Que país é este que vai a votos? Veja no vídeo o retrato do Brasil em 3 minutos]
Até aí, a campanha do PT era feita com logótipos onde se lia: “Lula com Haddad”. A partir do momento em que a candidatura de Lula foi retirada, o logótipo mudou — mas com Lula lá, na mesma. Aos mais míopes, pode parecer que ali se lia “Haddad e Lula”. Mas não era bem isso. Com atenção, notava-se a pequena, mas importante diferença no “e”, que afinal tinha acento: “Haddad é Lula”. Uma contradição ponderada.
Para lançar a campanha, o PT fez um vídeo onde brincava com o facto de Haddad ser pouco conhecido, sobretudo quando comparado com Lula. Num post do Twitter, a candidata a vice-presidente que concorrer com Haddad, Manuela d’Ávila, escreveu mesmo: “Haddad, Raddad, Andrade, Haide… Fernando Haddad é Lula!”.
Haddad, Raddad, Andrade, Haider…
Fernando Haddad é Lula! #LulaManuHaddad #OBrasilFelizDeNovo pic.twitter.com/QCNnfdPPfk
— Manuela (@ManuelaDavila) September 12, 2018
O homem que “não saía do lado do telefone” à espera de um convite de Lula
Se é muito difícil Haddad ser Lula, a verdade é que Haddad chegou onde chegou pela mão do ex-Presidente do Brasil, figura maior do PT.
O início da lenta, mas irreversível transformação do Haddad académico para o Haddad político deu-se em 2000, quando Marta Suplicy, então eleita prefeita de São Paulo pelo PT, o chamou para ser seu sub-secretário das Finanças e Desenvolvimento Económico. Ele não tardou a querer outros voos quando, em 2003, Lula conseguiu, à quarta tentativa consecutiva, ser eleito Presidente pelo PT.
Fernando Haddad admite que vivia obcecado com a possibilidade de entrar para o governo. Mas essa oportunidade não se apresentou quando ele queria. “Foi uma frustração enorme quando ninguém me convidou para o governo”, disse à revista piauí, num perfil publicado em 2011. “Passei janeiro [de 2003, o mês em que Lula tomou posse] num estado de dar dó: não saía do lado do telefone.”
A espera prolongou-se até maio, altura em que participou num jantar onde, além da sua mentora no mestrado de Economia, Leda Paulani, estava o ministro do Planeamento, Orçamento e Gestão, Guido Mantega. A académica e o ministro, que já se conheciam, entraram numa conversa sobre a política económica do recém-formado governo de Lula — e Leda Paulani não teve problemas em demonstrar o seu desagrado. “Larguei o pau na política económica”, recordou à piauí. E, depois de acusar o governo de Lula de não chamar para as suas fileiras novos talentos, foi buscar Haddad e meteu-o à frente do ministro.
Resultou. Uma semana depois, o ministro Mantega ligou a Haddad e convidou-o para o seu ministério. Enfim, o académico entrara no governo de Lula — e a sua mulher, Estela Haddad, também foi mais tarde chamada para o Ministério da Educação e Ciência (MEC). Ao início, terá passado despercebido para o então Presidente. Mas em 2004, como escreveu a Folha de S. Paulo, encontrou uma maneira de ganhar um “cartão de visita para o coração de Lula”.
Tudo começou com a transferência em 2004 de Haddad para para o MEC, onde passou a ser secretário-executivo. Foi nessa altura que formou aquele é o seu gesto político mais consensual: o ProUni, o programa que já permitiu a mais de 1 milhão de brasileiros frequentar universidades privadas sem pagar.
À Folha de S. Paulo, Haddad contou que o ProUni surgiu após uma conversa em que a sua mulher lhe ligou a chorar, porque tinha recebido a carta de uma mãe que se queixava de não ter meios para pagar um empréstimo para as propinas do seu filho, que entretanto tinha morrido. “Eu disse que deveria haver uma amnistia, como há em financiamentos imobiliários”, disse Haddad àquele jornal. Depois de horas de estudo, apresentou ao ministro da Educação e Ciência o esboço da sua proposta: “Eu e a Estela temos um programa que vai te permitir matricular 400 mil jovens nas universidades”. O ministro perguntou quanto é que isso custaria e a resposta parecia impossível, sobretudo dada com aquele grau de certeza: “Zero”. No ano seguinte, tornou-se ele próprio ministro da Educação, pondo em prática o seu programa e aproximando-se de Lula como nunca antes.
Zero, sublinhe-se, para o Estado, já que o programa seria financiado pelas universidades privadas, que até então recebiam isenções fiscais sem dar contrapartidas ao governo. Com o ProUni, as universidades privadas que se associassem ao programa criado por Haddad passaram a ter de acolher estudantes de classes sociais desfavorecidas — e muitas fizeram-no com especial dedicação, conseguindo com isso uma quebra tremenda nas suas despesas com impostos. Em 2017, o ano em que houve mais bolsas do ProUni, e já sem o PT no poder, a renúncia foi também a mais alta de sempre desde que o programa foi criado: ao todo, em troca de bolsas para estudantes, o governo abriu mão de 1,32 mil milhões de reais em impostos — aproximadamente 280 milhões de euros.
“Deu-se uma grande entrada de novos universitários, de corpos que até então eram estranhos nas universidade”, disse ao Observador o professor universitário e politólogo Jean Tible. “De repente, havia na universidade pobres, negros e, por vezes, pessoas que eram uma coisa e a outra.”
Mas nem tudo foi fácil para Fernando Haddad como ministro da Educação.
A primeira polémica — anos mais tarde, o ex-ministro diria que foi a que mais o abalou — remete para um livro de português destinado a jovens e a adultos onde se lia que era correto usar expressões como “os livro”, “nós pega o peixe” ou “os menino pega o peixe”. À pergunta “mas eu posso falar ‘os livro’?”, respondia-se: “Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico”. Como tal, os autores daquele manual aconselhavam: “O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião”. De seguida, havia um exercício que convidava os alunos a mudar as frases da “norma coloquial” para a “norma culta”.
A segunda polémica ainda hoje está por trás de críticas e muitos boatos em torno de Fernando Haddad. Tudo começou quando, após aprovação da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, cinco ONG elaboraram uma série de conteúdos, entre textos e vídeos, que serviriam para combater a homofobia nas escolas. Entre estes, havia um vídeo baseado na história verídica de uma mulher que foi chamada com urgência para falar com o diretor da escola do seu filho, porque o rapaz tinha uma boneca na mochila. Ainda noutro vídeo, com o título “Encontrando Bianca”, uma jovem transexual contava a sua história de transição do sexo masculino para o feminino.
Ainda antes de serem aprovados pelo Ministério da Educação, os ficheiros foram divulgados na Internet e causaram a revolta entre os meios mais conservadores do Brasil. Além de manifestações nas ruas, houve exaltação no Congresso dos Deputados, com a Frente Parlamentar Evangélica — grupo que junta os deputados evangélicos de diferentes forças políticos (a certa altura, incluindo até deputados do PT) a prometer um boicote. Na sua contestação, introduziram no léxico do brasileiro comum um novo nome para aquela iniciativa: de “Escola Sem Homofobia”, expressão que nunca vingou, passou para “kit gay”. Jair Bolsonaro, então deputado da extrema-direita, foi dos parlamentares mais empenhados na oposição àquela iniciativa. Na atual campanha, páginas de apoio a Bolsonaro têm publicado imagens falsamente atribuídas ao projeto “Escola Sem Homofobia”, com ilustrações de cenas de sexo explícito entre pessoas do mesmo sexo.
O próprio kit anti-homofobia acabou por não vingar. Perante a contestação gerada por aquela iniciativa, a Presidente Dilma Rousseff vetou a sua distribuição pelas escolas do país. A 26 de maio de 2011, Dilma assumiu claramente: “Não concordo com o kit”. “Não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”, ditou Dilma Rousseff.
Haddad era, assim, uma figura fragilizada no governo de uma Presidente que ainda tinha força. Acabou por sair em janeiro de 2012. Estava de costas viradas para Dilma — mas, quando olhou em frente, Lula estava de braços estendidos para ele. Desta vez, para concorrer às eleições autárquicas de São Paulo. Com o carimbo de aprovação de Lula, venceu contra José Serra, com 55,6% dos votos.
De volta aos corredores de São Paulo, Haddad identificou um grande problema: o trânsito. Para isso, fez uma enorme campanha de sensibilização para o uso dos transportes e também das bicicletas, à qual juntou a construção de uma rede de ciclovias. Foi amplamente criticado na imprensa, acusado de construir na cidade paulistana a ciclovia mais cara do mundo — a revista Veja escreveu que, enquanto noutras cidades do planeta o custo médio do quilómetro de ciclovia era de 300 mil reais (64 mil euros), em São Paulo o número subia aos 650 mil (138 mil euros).
De qualquer das maneiras, as ciclovias passaram a fazer parte da vida de muitos paulistanos e as estradas ficaram um pouco mais desimpedidas. Pouco tempo depois, porém, as estradas e as ruas acabariam por ficar tão cheias como nunca estiveram nos anos do PT no poder. Em vez de carros, as ruas foram tomadas por uma das maiores ondas de manifestações da História recente do Brasil.
A decisão de Haddad que encheu as ruas contra ele e o PT
Em 2012, na primeira reunião que Haddad teve com a Presidente Dilma Rousseff após ter sido eleito prefeito de São Paulo, ele tinha um objetivo: conseguir o aumento do preço dos autocarros. A proposta foi-lhe negada pela própria Presidente, com medo de que um aumento dos transportes pudesse levar a uma subida ainda maior da inflação.
“Ela [Dilma] encerrou a conversa, me acompanhou até à porta e disse uma frase que de que não me esqueço: ‘Espero que o nosso próximo encontro seja mais produtivo’”, contou Haddad, num texto escrito na primeira pessoa e publicado em 2017, onde fazia o balanço da sua vida política.
Haddad aguentou os preços dos autocarros até junho de 2013, até que anunciou uma subida do bilhete de autocarro, até aí a custar 3 reais (cerca de 1,10€ à altura), para 3,20 reais (a valer então perto de 1,20€).
Os confrontos que se seguiram, que ficaram conhecidos como as “Jornadas de Junho”, foram notícia em todo o mundo. Centenas de milhares de manifestantes saíram às ruas, primeiro em São Paulo e depois noutras cidades do Brasil. Se as primeiras manifestações aconteciam à esquerda de Haddad e do PT, com o Movimento Passe Livre a ganhar protagonismo, numa fase mais avançada os protestos estenderam-se a outros setores da população, incluindo a classe média, desencantada com o PT, e as classes mais privilegiadas, que nunca estiveram ao lado daquele partido. Desde então, o Brasil não deixou de ser um constante palco de manifestações.
Para Haddad, aquele foi um grande momento de viragem na política brasileira, levando a outros acontecimentos incontornáveis na vida política do país. “Tenho para mim que o impeachment de Dilma não ocorreria não fossem as Jornadas de Junho”, escreveu Haddad.
Ao Observador, o politólogo Jean Tible discorda da análise que Haddad daquele momento. “Ele diz que 2013 foi o ovo da serpente, mas eu acho essa leitura completamente errada”, diz. “2013 foi a abertura de um novo ciclo político e o grande erro do PT foi não ter conseguido trabalhar essa energia social a seu favor, até porque as reivindicações iniciais eram grosso modo mais à esquerda.”
Haddad acabou por revogar a subida dos preços dos autocarros, mas a medida não chegou para apagar o que tinha acontecido. E ele sabia-o. “Num final de tarde melancólico, sozinho na sala do meu apartamento no Paraíso [bairro de São Paulo onde Haddad vivia à altura], anoiteceu sem que eu me desse conta”, recordou. O filho mais velho viu-o naquele estado e perguntou o que fazia ele “no escuro”. Explicou-lhe que “estava pensando naquela situação toda e na dor de ver doze anos de dedicação à vida pública serem liquidados em seis meses de gestão”.
Os anos que se seguiram foram difíceis para Haddad, e para a generalidade do PT, como nenhuns outros. Em 2014, a abertura da Operação Lava Jato tornou claro que os dias de ouro dos trabalhistas estavam já no passado. Em agosto de 2016, o impeachment de Dilma Rousseff afastou o PT do poder até aos dias de hoje. E em outubro do mesmo ano, nas eleições para a câmara de São Paulo, o candidato do PSDB, João Doria, conseguiu 53,3% dos votos logo à primeira volta, atirando Haddad para um canto, que se ficou pelos 16,7%.
De novo, o agora candidato presidencial podia ter pela frente uma travessia no deserto. Mas não. Aos poucos, o seu nome foi subindo na escala do PT, mesmo contra aqueles que achavam que o lugar dele não era no palanque, mas sim nos corredores e nos gabinetes. Como já o tinha feito noutra altura, porém, Lula escolheu-o a dedo, quando o seu próprio futuro político começou a ficar comprometido pela Operação Lava Jato.
“O Haddad não é um quadro centralizado pelo petismo, é totalmente centralizado pelo lulismo”, assegura a politóloga Clarisse Gurgel.
O intelectual ungido por Lula que foi obrigado a enfiar chapéus
Haddad não é propriamente uma máquina de fazer campanha. Até à primeira volta das eleições, um dos maiores atos de expansividade que tinha demonstrado em ações públicas resumiu-se a pegar numa viola, tirar dela uns acordes e arranhar uns versos da Three Little Birds, de Bob Marley. “Singing don’t worry about a thing, ‘cause every little thing gonna be alright…”
https://www.youtube.com/watch?v=nukHfSuTuXU
Nesta campanha, Haddad já foi outro homem. Longe de ter os banhos de multidão com que Lula era recebido em cada lugarejo nordestino onde pusesse os pés, o ex-prefeito de São Paulo não pode ser acusado de não ter tentado. Se, nos seus anos de ministro da Educação, os assessores de Haddad já tomavam como um grande feito convencê-lo a despir o blazer, tirar a gravata e arregaçar as mangas da camisa, nestas eleições o caso — e Haddad — mudou de figura.
O teste final foi a 2 de setembro. Numa altura em que oficialmente ainda era vice de Lula, Haddad foi a uma ação de campanha em Garanhuns, terra onde o ex-Presidente nasceu. À medida que o tempo se aproximava da hora de chegada, houve quem perguntasse se o “Andrade” já lá estava. Ainda não — mas, quando chegou, enfiou um chapéu de couro em forma de meia-lua, usado pelos cangaceiros, milícias armadas que agiam em defesa do campesinato no século XIX e na primeira metade do século XX.
“Haddad percebeu que não pode ser um tecnocrata ou, então, tem que ser um tecnocrata melhor. Tem de convencer as pessoas”, disse Jean Tible ao Observador, em setembro.
E se é verdade que Haddad não foi capaz de imitar todos os gestos de Lula, gritando naquela voz rouca, como fez antes de se entregar na prisão, que o seus únicos crimes foram “colocar pobre na universidade, negro na universidade, pobre comer carne, pobre comprar carro, pobre viajar de avião”, o ex-prefeito de São Paulo não precisou inteiramente disso. Até porque, em abril deste ano, a horas de ser preso, Lula disse uma das frases mais sintomáticas da política brasileira de hoje em dia: “Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia”.
Para uma boa fatia do eleitorado, que em setembro ainda dava 37% a Lula nas sondagens, apesar de ser já claro que ele não ia poder concorrer às eleições, bastaria que o ex-Presidente indique o voto em Haddad para a sua vontade ser feita. “Se fosse pelo Haddad, por si só, ele nunca seria Presidente. Nem sequer candidato”, diz Jean Tible. “A questão é que ele foi ungido por Lula.”
Esse efeito de Lula sobre Haddad foi demonstrado a cada sondagem publicada. A título de exemplo, olhe-se para os estudos de opinião da Datafolha. A 21 de agosto, Fernando Haddad tinha apenas 4% dos votos. Porém, com o avançar do calendário eleitoral, os números subiram rapidamente. A 10 de setembro, um dia antes de o PT retirar a candidatura de Lula, já tinha 9%. Na última sondagem da primeira volta, lançada a 7 de outubro, tinha 25% de votos válidos previstos. Na verdade, contados os votos a sério, ficou com um pouco mais do que isso: 29,3%. Estava provada que essa era a força que Lula conseguia transportar para Haddad. Tudo o resto, a partir daí, teria de passar por ele.
E, se não dependia de Lula, então Haddad afastou-se dele. No dia 8 de outubro, o seu primeiro ato a seguir à primeira volta foi visitar Lula na prisão. A partir daí, não mais voltou a visitar o seu mentor político e fez de tudo para deixar de dizer o seu nome em campanha. Em vez de citar Lula como um exemplo a cada ocasião, passou a fazê-lo com outras figuras. Falou do pai, Khalil Haddad, emigrante libanês que começou uma empresa de comércio de tecidos em São Paulo; citou como exemplo de sabedoria o juiz Joaquim Barbosa, que no tempo de Lula lhe deu água pelas barbas; quando chamado a escolher uma grande referência na História política do Brasil, fintou o nome do fundador do PT e escolheu antes o ex-Presidente Juscelino Kubitschek.
Haddad fez de tudo para sair debaixo da sombra de Lula. Porém, esta perseguiu-o ao longo da campanha eleitoral. E, se na primeira volta o carimbo de Lula foi o grande garante da sua passagem para uma corrida frente a frente com Bolsonaro, na segunda a história já foi outra. No espaço de alguns dias, o nome de Lula passou de vantagem para empecilho.
Tudo isto porque, à medida que o combate a dois se foi acirrando, a taxa de rejeição de Haddad foi crescendo. E cresceu tanto que chegou a ultrapassar a de Bolsonaro. Entre a última sondagem da Datafolha antes da primeira volta e a última antes da segunda, a taxa de rejeição de Bolsonaro subiu de 44% para 45%. No caso de Haddad, foi dos 41% para os 52%.
A ajudar a este facto não está o facto de Haddad ter tido uma grande dificuldade de fazer o mea culpa que muitos no centro e também na esquerda exigem ao PT; o facto de a sua campanha estar rodeada dos fantasmas de um partido manchado de corrupção e no passado mais recente ameaças de tomada do poder; e mesmo a acusação de Haddad pelo Ministério Público, que em plena campanha pediu a sua condenação por enriquecimento ilícito enquanto era prefeito de São Paulo, por alegadamente ter tido “pleno domínio” de um pagamento de uma construtora à sua campanha em 2012, no valor de 2,6 milhões de reais.
A tudo isto, juntou-se também uma tempestade de notícias falsas que, embora nalguns casos visassem a campanha de Bolsonaro, na sua grande maioria tiveram Haddad e o PT como alvo. Através do WhatsApp, que no Brasil tem 120 milhões de utilizadores e zero filtros, espalhou-se todo o tipo de informação para denegrir Haddad. Numa delas, lia-se que ele era a favor do incesto. Noutra, era garantido que o seu programa incluía a ideia de que as crianças deviam passar a ser propriedade estatal a partir dos 5 anos, para que o governo lhes escolhesse o género. Escreveu-se até que ele tinha um Ferrari, quando o próprio assegura que nem carro tem.
A pouco mais de uma semana das eleições, a Folha de S. Paulo denunciou alegadas campanhas de empresários pró-Bolsonaro que terão servido para alimentar “disparos” de mensagens falsas em vários grupos do WhatsApp. A campanha de Fernando Haddad fez queixa ao Tribunal Superior Eleitoral, que agora investiga o caso. Se for provado que esse esquema aconteceu, e mesmo que não seja determinada a relação de Bolsonaro com ele, as eleições podem vir a ser anuladas.
No final, só lhe sobrou a teoria da luta de classes
A contradição ponderada que diz ao eleitorado que “Haddad é Lula” teve os seus limites. Pelo menos, assim explicou Luciana Veiga, politóloga especialista em opinião pública, numa entrevista em Setembro. “A questão daqui para a frente é clara: o Lula saiu”, disse então ao Observador. “Embora a campanha do PT queira meter o Lula até dizer chega, ele saiu. Agora, está entre Bolsonaro e Haddad”, sublinha. E, entre os dois políticos, Luciana Veiga não hesita em escolher o mais carismático: “Bolsonaro é líder-nato e o Haddad não é”.
Ainda assim, o carisma não é tudo — pelo menos para todos. Quando vistas de repente, as sondagens entre os diferentes segmentos da sociedade brasileira podiam sugerir que a vitória de Bolsonaro era um dado certo. Na sondagem de 25 de outubro da Datafolha, a última desta empresa a discriminar os diferentes grupos demográficos, só os mais pobres estavam do lado de Haddad. Entre quem ganha até dois salários mínimos — ou seja, até 408 euros — Haddad surgia com 47% e Bolsonaro com 37%. Depois disso, Bolsonaro seguia à frente com enorme vantagem.
Havia, porém, um dado que as sondagens não demonstraram, mas que é incontornável no Brasil: a grande maioria da população é pobre. Segundo apurou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 50% dos trabalhadores brasileiros recebem em média 15% abaixo do salário mínimo.
Por tudo isto, Luciana Veiga chegou a dizer ao Observador que o PT podia ganhar as eleições se soubesse repetir as receitas de sucesso de eleições anteriores. “Se colocarem o Bolsonaro como sendo o candidato dos ricos, será mais fácil. Certamente vão fazer isso”, disse a politóloga, em setembro. “O PT fez isso em 2002, 2006, 2010, 2014 e agora em 2018 vai repetir. Esse discurso compensa qualquer falta de carisma de Haddad.”
Jean Tible concorda e, olhando para o programa de Bolsonaro, identifica uma “fragilidade” ainda maior do que “o facto de ele ser machista, homofóbico ou racista”: o seu plano económico. “Do estatismo de contornos militares que ele sempre defendeu, agora passou a abraça o ultraliberalismo. Quer privatizações, quer tudo. Isso não cola com a população mais pobre”, assegurou o politólogo, também em setembro.
No entanto, a campanha para as eleições brasileiras repetiu as características vistas em recentes plebiscitos pelo mundo, como nos EUA, França, Alemanha, Itália e Holanda. Ali, como no Brasil, preferiu falar-se de discursos identitários em vez de se falar da economia. Ou, num termo querido de Haddad nos seus tempos de académico, da luta de classes. Um termo que, com esta derrota, terá de continuar a explorar apenas na teoria e não na prática.