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Hungria 1956. Da revolução em outubro à contrarrevolução em novembro

No espaço de pouco mais de cinco anos, a Hungria atravessou um dos seus períodos mais conturbados. Em 1956, bastaram três semanas no final do ano para que tudo mudasse e voltasse ao ponto de partida.

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Ponto prévio

No dia 8 de março de 1953, três dias após a morte de Estaline, o Parlamento húngaro, presidido por Imre Nagy, aprovou legislação que perpetuava a “memória imorredoira” do ditador soviético. De seguida, decretou um período de luto nacional. No dia 16 de junho de 1958, o mesmo Imre Nagy, comunista histórico, que vivera na União Soviética nas décadas de 1930 e 1940, mas que se tornou no principal rosto da revolução húngara de 1956, foi executado e sepultado numa campa anónima. Nagy foi “julgado” e considerado culpado de traição e de organizar o derrube do regime “democrático popular” na Hungria.

No espaço de pouco mais de cinco anos, a Hungria atravessou um dos períodos mais conturbados da sua curta história enquanto estado moderno independente. Uma análise dos acontecimentos e do comportamento dos principais intervenientes individuais e coletivos deste período não deve basear-se na simplicidade e na linearidade destes ou daqueles. Se esta prevenção se aplica à conjuntura que se estende de 1953 a 1958, deve, no entanto, ser usada com especial cuidado quando se trata de tentar perceber e explicar o período compreendido pela última semana de outubro e a primeira quinzena de novembro de 1956.

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Imre Nagy

Qualquer exercício interpretativo sobre um acontecimento singular ocorrido durante cerca de meia década, mas com impressionante intensidade no decurso de duas ou três semanas, não permite generalizações simplistas, nomeadamente se lhe atribuírem um sentido e um significado predeterminados. Nomeadamente aqueles que decorrem de uma tradição Whigh segundo a qual a realidade histórica não é mais do que um avanço inevitável das sociedades em direção a mais liberdade e a um maior e melhor uso da razão, coroados aquela e esta pela afirmação e consolidação de sistemas demoliberais.

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Estaline sai de cena

Desde a morte de Estaline, a União Soviética e a generalidade dos países europeus pertencentes à sua esfera de influência conheceram mudanças políticas, embora em muitos domínios mais aparentes do que reais e, sobretudo, muito mais superficiais do que aqueles que seriam os desejos de boa parte das respetivas populações. Tanto do ponto de vista formal como substancial foi na União Soviética que se iniciou um processo político que pretendia introduzir reformas que pusessem fim àquilo que, para uma elite político-partidária nascida e consolidada à sombra de Estaline e do estalinismo, era uma realidade excessivamente violenta e injusta sob o ponto de vista político, económico, social e moral.

O ponto alto deste processo, e numa fase em que Khrushchov ainda lutava pela conquista do estatuto de sucessor incontestável do ditador georgiano, ocorreu durante XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em finais de fevereiro de 1956. Numa sessão à porta fechada dirigida exclusivamente a delegados soviéticos, Nikita Khrushchov denunciou em termos veementes os crimes cometidos por Estaline em nome do Estado soviético, do PCUS e dos princípios do comunismo, sendo que esta opção serviu para tentar reforçar a legitimidade da nova elite dirigente do Estado e do PCUS, mas, também, para defender a introdução de um amplo leque de reformas políticas cujo objetivo não era criar condições para alterar a natureza do sistema político, mas, pelo contrário, para torná-lo numa realidade capaz de atrair um maior apoio popular e uma maior intervenção das populações nos vários níveis da vida política e social. Paralelamente, Nikita Khrushchov pretendia ainda tornar o projeto político soviético mais competitivo e atrativo politicamente na sua luta global contra o bloco liderado pelos EUA, e, ao mesmo tempo, iniciar uma fase de distensão do ambiente político e militar internacional no contexto da Guerra Fria.

20th April 1956: First secretary of the Soviet Communist party Nikita Sergeyevich Khrushchev (1894 - 1971) greeting onlookers at the Mansion House in London. Travelling with him is Marshal Bulganin (1895 - 1975). (Photo by Fred Ramage/Keystone/Getty Images)

Nikita Khrushchov em 1956

Na União Soviética o processo de desestalinização mudou a face do regime, nomeadamente ao torná-lo menos repressivo. Mas a verdade é que a sua abertura — ou liberalização — política foi modesta, ao passo que as reformas económicas, nomeadamente no domínio da agricultura, foram um desastre que prolongou a situação catastrófica existente desde a Grande Guerra. De facto, a amplitude das mudanças foi mais um ganho relativo, tendo em conta a natureza totalitária do estalinismo e a vigência de uma estratégia de imposição de um terror permanente em todos os domínios da vida política e social, do que uma transformação efetivamente liberalizadora e democratizadora da realidade. Além disso, as dificuldades que a União Soviética nos tempos de Khrushchov registou nos domínios da política externa e da vida económica, entre outros, impediram uma perceção eventualmente mais objetiva daquilo que foram as mudanças introduzidas pelo processo de desestalinização.

Nos países que a arrumação geopolítica do pós-Segunda Guerra Mundial colocou sob a esfera de influência soviética, casos da República Democrática Alemã, da Polónia, da Checoslováquia ou da Hungria, as mudanças ocorridas, ou pelo menos a pressão no sentido de uma reforma profunda do sistema, foram inequivocamente mais profundas tanto nos resultados como, sobretudo, nos objetivos propostos, mesmo quando não atingidos. Entre estes, o caso húngaro foi um exemplo claro de como um processo de relativa abertura política induzido do topo da pirâmide política para a sua base, como sucedeu na União Soviética, e que, aliás, as autoridades russas forçaram junto das lideranças dos partidos “irmãos” no poder na Europa central e de leste, acabou por produzir resultados genericamente muito diferentes daqueles que seriam desejados.

Por outro lado, e ao contrário do sucedido em vários países do “leste” europeu uma vez iniciado o processo de desestalinização, na União Soviética só muito pontualmente se manifestaram vontades organizadas e com apoio popular no sentido de que o projeto reformista apresentado por Khrushchov pudesse e devesse ser mais ambicioso do ponto de vista de uma real liberalização política, económica e social. Ao contrário do sucedido na Polónia, na República Democrática Alemã, na Hungria, ou até na Bulgária e na Roménia, nunca houve qualquer mobilização das bases do PCUS ou da própria sociedade em torno de um programa alternativo, ou substancialmente corretivo, àquele que as cúpulas políticas definiam e impunham.

Ora entre os casos europeus de superação das propostas e das intenções soviéticas de liberalização do “comunismo”, o húngaro foi aquele que rompeu, ou procurou romper, com as baias, mais informais do que informais, definidas por Moscovo e, também, por Governos e “partidos irmãos” do PCUS na Europa situada a leste da “cortina de ferro”. As razões para que assim tenha sido serão explicadas nos próximos parágrafos.

A Hungria e os húngaros movem-se…

No decurso do verão de 1956, a situação política na Hungria foi-se tornando cada vez mais tensa. Esta circunstância decorreu em grande medida do facto de a substituição de Mátyás Rákosi à frente dos destinos do governo em junho de 1953 – com Imre Nagy designado para ocupar o seu lugar –, não ter produzido as mudanças políticas esperadas. No Partido Húngaro dos Trabalhadores, nos sindicatos, assim como em grupos e movimentos sociais emergentes, tornou-se mais notória uma oposição e uma contestação ostensiva ao domínio político-militar soviético e ao monopólio do exercício do poder político pela ala estalinista dos comunistas húngaros e seus aliados.

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Mátyás Rákosi

Opunham-se ainda àquilo que era a adoção do modelo estalinista de governação tanto na esfera política como na gestão económica. Note-se, aliás, que as mudanças na liderança do partido e do país foram impostas por Moscovo e em Moscovo numa reunião entre dignatários da Hungria e da União Soviética realizada em junho de 1953. Este acontecimento fez parte de um processo iniciado pelo Kremlin após a morte de Estaline e que rapidamente se estendeu aos países europeus pertencentes ao bloco soviético e nos quais as lideranças partidárias e governamentais impostas entre 1946 e 1953 por Estaline, assim como as estratégias governativas, foram substituídas.

Na Hungria da década do pós-Segunda Guerra Mundial, como por toda a Europa sob domínio soviético, a imposição do socialismo segundo a bitola estalinista caracterizara-se, economicamente, pela aposta na nacionalização dos “meios de produção”, pelo desenvolvimento das indústrias pesadas, ou de bens de capital, e pelo inevitável sacrifício da agricultura e das indústrias produtoras de bens de consumo. Esta realidade, que conduziu a uma degradação continuada das condições de vida dos europeus de leste e, claro, também dos húngaros, era reconhecida antes ainda da morte de Estaline. Por outro lado, os países europeus membros do bloco soviético tinham, todos eles, tarde ou cedo, sido aliados da Alemanha Nazi.

Por esse facto, sofreram um processo de apropriação de ativos (industriais, agrícolas ou de matérias-primas) como forma de pagamento à União Soviética dos custos da guerra iniciada em 1941 e concluída em 1945. Finalmente, e no plano político, o modelo estalinista impôs o monopólio do exercício do poder pelos partidos comunistas e seus aliados, pelo controlo rigoroso e centralizado de sindicatos e de todas as formas de organização política, social ou cultural autorizadas pelo poder exercido em regime de estrita exclusividade e, ainda, pela existência de um aparelho repressivo centralizado, eficaz e implacável que atuava em todos domínios da vida individual e coletiva, privada ou pública.

Foi neste contexto que no princípio de outubro de 1956 as cerimónias ocorridas em Budapeste de homenagem a Lászlo Rajk e seus camaradas (executados na sequência de um “julgamento” feito segundo a tradição estalinista), mobilizaram cerca de 100 mil manifestantes. Um par de semanas depois, a 16 e a 22 daquele mês, realizaram-se assembleias e pequenas manifestações de estudantes universitários que conduziram à redação e apresentação de uma lista de reivindicações. Entre elas destacava-se a exigência da nomeação de Imre Nagy como primeiro-ministro (uma proposta que retomava uma decisão tomada pelas autoridades soviéticas em Moscovo em junho de 1953), a convocação extraordinária de um Congresso do Partido Húngaro dos Trabalhadores, a retirada das tropas soviéticas da Hungria, a exigência de liberdade de imprensa e de expressão e a realização de eleições multipartidárias justas e livres.

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Wladyslaw Gomulka

No dia 23 de outubro, em Budapeste, os estudantes universitários deram início a uma manifestação pacífica que declarava a sua solidariedade com as reformas e os reformistas liderados por Gomulka e que recentemente, à revelia das autoridades soviéticas, se tinham apropriado do poder no Estado e no partido, sem que, por razões políticas e geoestratégicas, a União Soviética interviesse para inverter tão inesperada situação. Na capital da Hungria os manifestantes apelavam ainda à introdução do programa de reformas que haviam elaborado e que apresentavam publicamente. Foi esta manifestação que ao chegar da noite se transformou numa revolta armada, acontecimento que levou as autoridades magiares, há semanas preocupadas com a degradação da situação política, a pedirem a intervenção das forças soviéticas estacionadas na Hungria, o que aconteceu depois de muitas hesitações.

Aliás, toda a política soviética em relação à questão húngara foi alvo de discussões, reuniões e consultas entre responsáveis soviéticos, entre representantes soviéticos e húngaros, mas, também, entre autoridades soviéticas e emissários da República Popular da China que se tinham deslocado à União Soviética e à Polónia para avaliarem a situação política existente na Europa de “leste” uma vez iniciado o processo de desestalinização e que os comunistas chineses, por uma questão tanto prática como de princípio, consideravam politicamente errado.

Só com o partido de novo com as rédeas do poder político mãos seria possível influenciar a ação e a vontade das massas de modo a tornar possível a transformação da situação política numa realidade novamente aceitável para a União Soviética, para os interesses do socialismo de inspiração soviética na Hungria, mas, também, para os próprios revolucionários.

Tendo em conta as dúvidas e hesitações que assaltavam a liderança soviética, a resposta dada à solicitação do dia 23 foi irresoluta e descoordenada tanto do ponto de vista civil como militar. Em consequência da natureza desta primeira intervenção militar soviética e de uma degradação da situação política na Hungria, segundo a avaliação feita por Moscovo, uma segunda e decisiva intervenção iniciou-se 4 de novembro. Portanto, aquilo que começou como um conjunto de episódios esporádicos de violência no dia 23, espalhou-se por Budapeste e pela Hungria como um incêndio numa estepe seca durante uma dúzia de dias. Uma revolta transformou-se numa revolução com um caráter claramente nacionalista e antissoviético, mas também anticomunista. Ou seja, os húngaros que se rebelaram fizeram-no em nome do nacionalismo antissoviético (e que possuía, recorde-se, raízes históricas anti-russas que remontavam à aniquilação dos patriotas magiares por tropas russas na sequência da revolução de 1848) e de um patriotismo anticomunista. Além do confronto violento com militares do Exército Vermelho e forças especiais magiares, os primeiros dias da revolução húngara ficaram marcados pela convocação de uma greve geral e pela criação de comités revolucionários e de conselhos de trabalhadores.

Numa tentativa de aplacarem os protestos, os comunistas húngaros e, sobretudo, os seus camaradas soviéticos, indicaram ainda a 24 de outubro um comunista “moderado”, reformista, Imre Nagy, para a chefia do Governo. Estalinistas húngaros e pós-estalinistas soviéticos pareceram acreditar que deste modo seria possível apaziguar a revolução em curso e moderar e controlar os seus objetivos. Fizeram-no acenando aos revolucionários com um nome que os críticos da situação haviam já aceite como líder desejado para aplicar as mudanças propostas e desejadas. É claro que Nagy e o seu núcleo duro de colaboradores cedo terão percebido que qualquer mudança na situação política interna da Hungria dependia inteiramente da vontade dos soviéticos, embora estes estivessem dispostos a aceitar algumas mudanças que, no entanto, não poderiam ir muito além daquelas que os polacos tinham começado a pôr em prática desde que se iniciara naquele país um processo reformista que, muito mais na forma do que na substância, mudara alguns aspetos da governação.

Imediatamente após a sua chegada à chefia do Governo, Nagy tentou convencer a delegação de altos funcionários soviéticos de que o seu apoio era essencial para uma estabilização da situação. Porém, e para que tal pudesse acontecer, Nagy argumentou que a resistência armada húngara não devia ser reprimida pela força. Sustentou que o Governo e, sobretudo, o Partido Húngaro dos Trabalhadores deviam ser colocados à frente das movimentações políticas e sociais de massas que conduziam a revolução em curso. Ou seja, só com o partido de novo com as rédeas do poder político mãos seria possível influenciar a ação e a vontade das massas de modo a tornar possível a transformação da situação política numa realidade novamente aceitável para a União Soviética, para os interesses do socialismo de inspiração soviética na Hungria, mas, também, para os próprios revolucionários. Ou seja, Nagy estava convencido que uma solução moderada, à polaca, da questão húngara seria fazível e realista porque iria ao encontro, ainda que com cedências de parte a parte, daqueles que seriam os objetivos e os interesses de Moscovo e dos revolucionários húngaros.

No entanto, e como o desenvolvimento dos acontecimentos o veio a demonstrar, o Governo de Budapeste, o Partido Húngaro dos Trabalhadores e Imre Nagy só poderiam tentar, e eventualmente conseguir, controlar as “massas” sem recurso à força se obtivessem de Moscovo e dos seus altos-representantes na Hungria um conjunto de concessões muito substanciais. No entanto, se essas concessões fossem feitas a Hungria afastar-se-ia, talvez irremediavelmente, da esfera de influência soviética ratificada por Estaline, Churchill e Roosevelt na Conferência de Ialta de fevereiro de 1945.

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Churchill, Estaline e Roosevelt na Conferência de Ialta

De qualquer modo, a 28 de outubro Moscovo aceitou o programa reformista do novo Governo magiar e renomeou os acontecimentos iniciados cinco dias antes. Chamou-lhes “amplo movimento nacional” em vez de “contrarrevolução”. Estabeleceu-se o compromisso de dissolver a polícia política, de legalizar os movimentos políticos e sociais que sustentavam a revolução em curso e de retirar de Budapeste as forças militares soviéticas. No dia 29 a retirada iniciou-se e, a 30, o Governo soviético tornou pública uma declaração com a promessa clara de que as relações entre a União Soviética e os socialistas passariam a assentar em princípios de igualdade e de não interferência nos respetivos assuntos internos. Não admira, portanto, que esta declaração prometesse que a União Soviética iria considerar a possibilidade de uma retirada total das tropas soviéticas da Hungria, correspondendo assim àquela que era uma reivindicação central dos grupos revolucionários desde o início do movimento revolucionário. Aliás, neste mesmo dia, e em parte por influência da delegação chinesa que se encontrava em Moscovo para acompanhar e aconselhar os soviéticos sobre os acontecimentos ocorridos na Polónia e na Hungria, o Presidium do Soviete Supremo aprovou por unanimidade uma resolução que decidia a retirada das tropas do Exército Vermelho da Hungria.

É claro que as cedências de Moscovo não devem ser interpretadas como aquilo que não podiam ser. Em circunstância alguma as autoridades soviéticas equacionaram a possibilidade da Hungria abandonar o chamado bloco soviético e/ou de pôr um ponto final ao modelo político e económico “socialista”. Nesse sentido as cedências feitas apenas pretendiam evitar aquilo que para Moscovo, ou para Pequim, se veio a tornar não só inevitável como absolutamente necessário: uma intervenção militar que colocasse a Hungria e os húngaros no caminho certo quando outros meios entretanto usados não permitissem atingir os fins desejados. As cedências pretendiam apenas que a Hungria e os húngaros pudessem fruir, tal como a União Soviética ou os demais países do bloco soviético que assim o desejassem, de um sistema “socialista” reformado, menos dependente de Moscovo, por comparação com o sucedido entre 1945 e 1953, mas ainda assim leal à União Soviética e confinado ao bloco político-militar por si criado e liderado. Em certa medida, a mudança de atitude por parte dos soviéticos patente no dia 31 de outubro decorreu não apenas da forma como definiam e interpretavam os seus interesses, mas também do facto do Governo de Imre Nagy não ter podido, ou sabido, controlar os acontecimentos de modo a que a sua evolução não pusesse em causa o regime “comunista” e a integridade e a coesão presente e futura do bloco soviético. De facto, qualquer cedência excessiva aos revolucionários húngaros e ao novo Governo de Budapeste poderia abrir uma espécie de caixa de Pandora na zona de influência soviética que conduziria ao seu desmantelamento. Nesse sentido, a célebre “teoria dos dominós” que levou os EUA a travarem o avanço do comunismo no sudeste asiático intervindo militarmente no Vietname na década de 1960, ainda que não enunciada explicitamente por Moscovo, condicionou a reação da União Soviética e dos seus aliados aos acontecimentos ocorridos na Hungria a partir de 23 de outubro de 1956.

O Governo de Budapeste proclamou no dia 1 de novembro a sua saída do Pacto de Varsóvia e a sua neutralidade no contexto da Guerra Fria. Apelou ainda ao secretário-geral da ONU para que as quatro grandes potências, além da União Soviética, que eram membros permanentes do Conselho de Segurança (França, Reino Unido, EUA e China Nacionalista) agissem no sentido de defenderem a neutralidade húngara, devendo este pedido ser urgentemente agendado. 

No último dia de outubro, as autoridades soviéticas não só decidiram travar qualquer retirada de tropas da Hungria, como ordenaram que fosse preparada uma estrutura militar mais numerosa e com maior grau de prontidão e eficácia caso fosse necessário, como previam, agir militarmente para repor a “ordem”. As razões eram simples. Os factos indicavam que o regime “socialista” se encontrava à beira do colapso e que a possibilidade de uma estratégia reformista conduzida por uma personagem como Nagy, e que mantivesse a Hungria dentro das balizas definidas por Moscovo, só muito dificilmente se podiam concretizar. Entre e 30 e 31 de outubro os soviéticos reavaliaram a situação e concluíram que a criação de um sistema multipartidário, a dissolução da polícia política, o colapso da liderança no Partido Húngaro dos Trabalhadores, a passividade das Forças Armadas magiares, a instauração da liberdade de imprensa e a multiplicação de atos de violência contra funcionários daquele partido colocavam à beira do colapso a Hungria de qua União Soviética e os seus interesses necessitavam. Assim sendo, qualquer solução pacífica da questão húngara passou a ser para Moscovo uma questão meramente académica.

A “contrarrevolução” começa

Entre o dia 31 de outubro e o dia 4 de novembro, data do início da ofensiva militar soviética, as posições extremaram-se com as autoridades húngaras a insistirem na aplicação do seu plano de reformas que destruiria o “socialismo” e, sobretudo, restituiria toda a soberania política ao povo húngaro e à Hungria. A partir de 31 tornou-se evidente em Budapeste e por toda a Hungria que os soviéticos lançariam uma operação militar em grande escala e que se tinham esgotado os meios e as fórmulas que no passado recente tinham evitado que aquele acontecimento se materializasse. Multiplicaram-se os relatórios dando conta da entrada na Hungria de tropas soviéticas e da sua ocupação de locais com importância estratégica.

Constatada a iminência de uma operação militar em larga escala para depor o Governo húngaro, este reagiu fazendo um esforço derradeiro para salvaguardar o que já tinha sido garantido em termos de reformas políticas e de novo relacionamento com a União Soviética. Mas por outro lado, procurou dar continuidade àqueles que eram, ou se tornaram, nos verdadeiros objetivos da revolução húngara: a rotura total com a União Soviética, com o bloco soviético e com o “socialismo”. O Governo de Budapeste proclamou no dia 1 de novembro a sua saída do Pacto de Varsóvia e a sua neutralidade no contexto da Guerra Fria. Apelou ainda ao secretário-geral da ONU para que as quatro grandes potências, além da União Soviética, que eram membros permanentes do Conselho de Segurança (França, Reino Unido, EUA e China Nacionalista) agissem no sentido de defenderem a neutralidade húngara, devendo este pedido ser urgentemente agendado. Nada de substancial aconteceu em resultado destas ações do Governo magiar, exceto o início, a 4 de novembro, de uma invasão soviética na sequência da qual a revolução húngara foi esmagada, embora formalmente os confrontos entre revoltosos e forças soviéticas, ou leais ao Governo entretanto entregue pelos soviéticos a Kádár, só tenham terminado em meados de novembro.

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János Kádár

Nagy e os seus colaboradores mais próximos refugiaram-se na embaixada da Jugoslávia, facto que adiou por alguns dias aquilo que era inevitável: a sua entrega às autoridades húngaras que os encarceraram e dois anos mais tarde “julgaram” e executaram. Um novo Governo húngaro dirigido por János Kádár fora, entretanto, reconhecido pelos seus parceiros socialistas do bloco soviético no momento do início da invasão, a 4 de novembro. Da revolução e da invasão soviética resultou a morte de cerca de 2700 pessoas (algumas, poucas, eram militares soviéticos, membros da polícia política e funcionários do Partido Comunista Húngaro), a detenção e prisão de algumas de milhar de húngaros e a execução de 230. Cerca de 200 mil húngaros terão fugido da Hungria rumo a países que não pertenciam ao Pacto de Varsóvia.

O pós-revolução

Embora nos parágrafos anteriores tenha praticamente ignorado o impacto dos acontecimentos da Hungria fora do bloco soviético, especialmente nos EUA, na sua política externa e na política internacional, a verdade é que esse impacto foi significativo, ainda que não pelas razões que muitos húngaros e muitos ocidentais esperariam. Ou seja, a tentativa por parte dos revolucionários húngaros de inverterem com o veredito que lhe tinha sido imposto pelos três grandes Ialta no início de 1945, procurando abandonar o bloco político-militar hegemonizado pela União Soviética, assim como o modelo de organização política, económica e social que decorria da pertença àquele bloco, fracassou. E fracassou não apenas pelo facto da União Soviética e seus aliados europeus e chineses se mobilizaram política e militarmente para que tal não acontecesse, agindo depois em conformidade, como o “ocidente”, liderado pelos EUA, aceitou explicitamente o status quo existente na Europa no que respeitava à sua divisão em esferas de influência americana e soviética.

Apesar de toda a retórica que a Administração Eisenhower usou desde 1953, após a vitória do candidato republicano nas eleições presidenciais de novembro de 1952, defendendo a “libertação das populações escravizadas” pelo comunismo, a verdade é que num momento em que uma situação real reclamou atos e não apenas palavras, o “ocidente” optou pelo realismo político herdado dos tempos do presidente Truman, dando deste modo garantias políticas a Moscovo, ainda que apenas implícitas, que no futuro, e dentro das fronteiras do seu império, o Kremlin teria liberdade de agir de acordo com a sua vontade e as suas possibilidades. Daí que a condenação pelo “ocidente” da violência usada pela União Soviética para reprimir a revolução húngara se tenha reduzido a ações de propaganda e a intervenções nas Nações Unidas, organização a que a Hungria fora admitida apenas em finais de 1955. Finalmente, apesar da desconfiança que gerou nas relações entre Moscovo e Washington, a violenta repressão da revolução húngara não colocou qualquer travão naquele que era o desejo existente naquelas duas capitais de dar continuidade à estratégia entretanto iniciada de aproximação e de desanuviamento das relações entre os dois blocos no âmbito da Guerra Fria.

circa 1935: American president Franklin Delano Roosevelt on board an American warship. (Photo by Keystone/Getty Images)

F.D. Rossevelt

Paradoxalmente, foi na Europa sob domínio soviético e nas relações entre a União Soviética e a República Popular da China que os acontecimentos da Hungria, como aliás toda a estratégia apenas parcialmente executada de desestalinização, tiveram consequências maiores e mais duradoras. No que respeita às relações com a China e à reação chinesa aos acontecimentos do Outono de 1956 na Hungria, é por demais evidente que a desestalinização e o programa de reformas políticas por ela despoletadas na Europa de leste conduziram à perceção em Pequim de que a nova liderança soviética e o seu programa político-ideológico eram, por um lado, pouco capazes de resolverem problemas complexos e, por outro, contrários aos princípios considerados essenciais para o êxito do movimento comunista internacional, uma vez que negavam não só o estalinismo, mas, inclusivamente, o leninismo. Por último, o exemplo húngaro, mas ainda o da Alemanha de Leste em 1953, ou o da Polónia também em 1956, fizeram com que a liderança do Partido Comunista Chinês, e em particular Mao Tsé-Tung, concluísse que a “luta de classes” continuava a existir em países socialistas. Daí que Mao tivesse reforçado a sua convicção de que só a “revolução permanente” garantiria a consolidação no poder dos comunistas, tanto na China como noutros países “socialistas”.

No caso da Europa sob domínio soviético, uma lição foi aprendida: quaisquer revoltas ou revoluções que não contassem com apoio político e militar externo (i.e. do “ocidente”), e era certo que nunca contariam, estavam condenadas ao fracasso, sobretudo caso desejassem derrubar a ordem vigente definida e imposta por Moscovo. Poderiam, no entanto, ser relativamente bem-sucedidas se se comprometessem e se satisfizessem com agendas reivindicativas exclusivamente reformistas, como foi caso da Polónia no início da década de 1980, mas não da Checoslováquia em 1968. Isto significa que apesar do fracasso da revolução húngara e da forma violenta como foi reprimida, foi possível prosseguir o esforço de construção de uma ordem “socialista” pós-estalinista. Esta opção era exequível desde que não pusesse em causa o sistema político, a ordem económica e social e uma certa ortodoxia ideológica vigentes, além, claro está, da coesão político-militar do bloco soviético. Tudo isto era naturalmente distinto e ficava muito aquém daquela que foi a agenda política dos revolucionários húngaros no Outono de 1956 e cuja materialização, em caso de um triunfo improvável, nunca se verificou, pelo que é difícil saber no que efetivamente teria resultado. E se o desconhecimento do que realmente teria acontecido caso a revolução húngara tivesse triunfado em 1956 é uma realidade, dificilmente se poderá afirmar que 1989 foi uma espécie de continuação por outros meios, ou até de desforra, de 1956. É que em 1989 a Hungria, o bloco soviético, o “ocidente” e o mundo eram deveras diferentes do que tinham sido 33 anos antes.

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