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Simão Costa

Simão Costa

Isabel Minhós Martins: “A injustiça até pode ser a escuridão, mas temos à mão o interruptor para acender a luz”

A autora lançou um primeiro livro sem ilustrações ou imagens, a partir de um espetáculo com Joana Providência e que tenta aproximar miúdos e graúdos de um equilibro que se entende a partir do injusto.

Escrever sobre Justiça não era algo de que estivesse alienada, assim como o palco. Apesar de ver os seus textos mais em livro do que em peças de teatro ou espetáculos, aquele não era um lugar desconhecido, mesmo que a sua última experiência “mais ou menos sólida” neste cenário tivesse acontecido dez anos depois do 25 de Abril de 1974, num grupo de teatro escolar, “as pessoas ainda tinham uma chama acesa de qualquer coisa”. Estava no segundo ciclo. Espera-se que depois de um texto que serviu para um espetáculo para crianças – assim como os livros – estes objetos possam ser o ponta pé de saída para um trabalho coletivo, nas escolas, nos teatros, em casa. Uma Ideia de Justiça – que passa por várias conceções – nasce da vontade de Joana Providência trabalhar o tema em palco e do à vontade da escritora Isabel Minhós Martins, da editora Planeta Tangerina, abraçar a curiosidade.

Parte deste caminho já estava feita, uma vez que Isabel Minhós Martins terminava um outro trabalho, em texto, para uma comunicação pedagógica que o Tribunal Constitucional se propunha fazer. Em simultâneo falava – e continua a falar – sobre as letras que cantam a Democracia no concerto “Mais Alto”, onde explica o contexto em que as músicas foram criadas, assim como a sua importância.

Este livro que se assinala o primeiro da coleção de Textos Dramáticos para públicos mais jovens, do Teatro Nacional São João, é também sobre isso – a Democracia — porque explicar a Justiça, ou a sua definição é um processo muito parecido com a definição de Democracia, “parece que está sempre incompleta”.

É preciso ler estes fragmentos de texto que Isabel Minhós Martins concentra, em coautoria com Joana Providência, para se perceber onde está o equilíbrio em trazer algo de novo que parece estar tão perto, quanto longe; ou como explicar o que significa Justiça quando é mais físico e claro o significado oposto, a injustiça. Em Uma Ideia de Justiça não se encontram conceitos idílicos ou formados, mas sim muitas questões e todas coletivas, porque tal como nos disse a autora enquanto se ouvia o dedilhar da guitarra portuguesa do outro lado da rua de Santa Catarina, no Porto, “o mundo é pesado, só lá vamos com muitos braços”.

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A capa de "Uma Ideia de Justiça", de Isabel Minhós Martins (Húmus)

Aberto o livro vê-se uma fotografia do espetáculo encenado por Joana Providência, texto escrito por si. Segue-se um destaque “corpos como museus vivos”. De que forma podemos transpor tudo isto partindo de um tema como o de Justiça para palco, em movimento, e, agora, para livro?
A ideia partiu da Joana Providência, tal como o nome do espetáculo que depois se tornou o título do livro. Quando a Joana veio ter comigo já trazia uma ideia consistente. É curioso, porque nunca tínhamos trabalhado juntas. Eu já tinha feito alguns textos para espetáculos infantis, mas pouca coisa — um texto para um espetáculo sobre a história do teatro [Daqui vê-se melhor], para o teatro LU.CA, e fiz também um outro mais ligado ao corpo e ao movimento [Na ponta dos pés], mas não tinha muita experiência de escrever para espetáculo.

Quando a Joana me falou do tema fiquei logo muito interessada e, por coincidência, estava a fazer outras coisas relacionadas com o mesmo, entre elas um texto para o Tribunal Constitucional, porque pretendiam fazer uma comunicação mais pedagógica, inclusive um livro onde explicavam um pouco da sua história e as suas funções a esse público infantil. Além disso, também estava a fazer o concerto “Mais alto”, dedicado à Democracia e à Política, onde explicava o contexto em que as músicas eram criadas e a sua importância para as pessoas, sempre músicas com o sentido do coletivo e, portanto, considerei que estava a investigar bastante o tema de Justiça, ainda que não fosse de uma forma académica.

Justiça… é um tema muito difícil, porque explicá-la ou defini-la, é um processo muito parecido com a definição de democracia: parece que está sempre incompleta.
A justiça toca em tantas vertentes da nossa vida, desde a forma como se entra para a universidade, a forma como se organizam os transportes públicos numa cidade, tudo é justiça. O livro e o espetáculo partem mais da definição de injustiça que é uma coisa que sentimos mais na pele e é menos abstrato. Quando sentimos que há justiça, parece que há um equilíbrio, e quando as coisas estão em equilíbrio é mais difícil falar sobre elas. Quando há desequilíbrio quase que se torna uma coisa mais física, porque a injustiça tem esses sentimentos todos de revolta, de dor, de humilhação. Sentimos tanta coisa que talvez seja mais fácil de transpor para palavras.

A certa altura do processo, a Joana esteve a falar com crianças nas escolas, no Porto, e fez entrevistas aos alunos. Eles próprios falavam sempre muito mais de injustiça do que de justiça. Falavam de situações vividas na escola e no recreio. Lembro-me muito bem de situações que referiam como, por exemplo, a forma como o tempo no campo de futebol era dividido pelas turmas. Tudo isto tem que ver com a distribuição de uma coisa que para eles também é importante.

Fui enviando textos. Foi uma coisa assim muito em colaboração de ir e vir e, a certa altura, a Joana também achou que fazia sentido o espetáculo ter interpretação de Língua Gestual. Há um trabalho de coautoria da parte dela quer com o texto e como da própria iniciativa. É também importante perceber que precisamos de falar sobre justiça atualmente. Fala-se muito de justiça social e os miúdos, de uma forma indireta, falam disso uns com os outros, mas haver um espetáculo para refletir sobre isso é importante, depois até para o tema passar para as escolas e para a conversa com os pais.

Este não é um texto com definições fechadas, até porque é muito difícil chegar a essa definição, mas lança questões. Dá exemplos concretos, fala também um pouco da história de várias formas de justiça que fomos criando ao longo do tempo, algumas delas profundamente injustas, mas que depois fomos tentando sempre aperfeiçoar. Acredito que a democracia é talvez a forma onde é mais fácil haver justiça para todos, e tem esse lado de se ter de construir todos os dias, uma coisa quase colaborativa que garanta que ninguém fica para trás.

"Atualmente com esta informação toda, a globalização e as redes sociais, temos muita consciência do que está a acontecer em outros lados do mundo e, se por um lado isso é esmagador e até paralisante, por outro tempo cria oportunidades únicas de estarmos atentos ao que se passa com o outro mesmo estando muito longe."

A consciência também possibilita esse reconhecimento do que é ou não a justiça? Em que lugar fica a preocupação coletiva e como se traz isso para uma conversa com crianças e adolescentes?
Essa é uma pergunta que surge no texto do espetáculo: se este sentimento do que é justo e injusto, é uma noção que nasce connosco ou não. E a certa altura o texto pergunta isso “quem é que pôs a definição de justiça dentro de nós?”.

Inclusive, há uma parte do texto que fala também da fome de justiça, que é uma fome que sentimos ao acordar. Acho que algumas pessoas ou para elas, essa fome de justiça ou essa definição esta dentro delas de uma forma mais consciente, talvez pela própria natureza de sermos diferentes e também tem que ver com o conforto e do desconforto. Estamos neste mundo e podemos ter uma postura de “estamos bem e não nos interessamos com mais nada”, ou “mesmo estando bem, vemos que há outras pessoas que não estão bem e isso incomoda-nos” e queremos que as coisas mudem.

Mas é um bocadinho misterioso pensar por que razão algumas pessoas têm essa consciência mais viva e outras nem tanto. Talvez seja da nossa natureza.
Alguns de nós somos mais pacíficos e conformados e outros mais lutadores e inconformados e as duas coisas são necessárias. Mas é uma pergunta importante e acho que o espetáculo também tenta um bocadinho acordar essa fome de justiça no espectador, mesmo que nunca a tenha sentido, se questione. Há uma parte do texto em que uso uma passagem de um poema de Sofia de Melo Breyner: “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar” que é um pouco esse acordar.

Começa logo aí. Perto do início, nascemos, temos uma família, preocupamo-nos muito uns com os outros, os pais com os filhos, os avós com os netos, os irmãos uns com os outros, com o nosso círculo de amigos, mas há um momento em que abrimos esse círculo e talvez já pensemos nas pessoas do nosso prédio, da nossa turma. Esse alargar do olhar aos outros é que é um exercício muito importante. É tornar o olhar cada mais amplo e o texto também fala disso, de sairmos um bocadinho da nossa casa. Acho que o mundo também está muito nesse ponto que é, atualmente com esta informação toda, a globalização e as redes sociais, temos muita consciência do que está a acontecer em outros lados do mundo e, se por um lado isso é esmagador e até paralisante, por outro tempo cria oportunidades únicas de estarmos atentos ao que se passa com o outro mesmo estando muito longe, como está a acontecer hoje com as guerras que estão a decorrer e que seguimos. Talvez tenhamos de dar outros passos. Ir além do ativismo da rede social. Parece que temos todos os meios para isso acontecer e, por vezes, pergunto o que nos falta. É tão estranho, porque é possível as coisas melhorarem, mas nem sempre isso acontece de forma rápida. Demora muito tempo.

"O espetáculo começa com um preâmbulo de como o nosso corpo se relaciona com a justiça e com as expressões que tem de ver sempre com o corpo, "dar o peito às balas" ou "dar o braço a torcer"

E de que forma é que as coisas podem melhorar? O relativismo da violência tem sido algo abordado ultimamente. De que forma isso se desmistifica, principalmente com as gerações mais jovens?
Acredito que as instituições não podem vacilar. As instituições que consideramos os guardiões do bem e do mal, a certa altura, como as Nações Unidas ou o Tribunal Penal Institucional, não o podem fazer, mas até estas instituições são ignoradas. Se pensarmos bem, criar estas instituições foi uma conquista civilizacional tão grande que agora serem ignoradas é mesmo o princípio do fim. Acho que é um retrocesso imenso. Acredito que os interesses económicos não podem falar tão alto. Tem de haver um limite para isso e esse limite está a ser ultrapassado. Agora, com o que está a acontecer na Palestina, já se pisaram todas as fronteiras possíveis.

Em relação a esse lado educacional e “como lidamos com isso”, acredito que a escola pública com todos os seus problemas é uma instituição muito importante para as sociedades. A escola pública e todos os lugares em que podemos conviver, enquanto somos crianças e jovens, com pessoas de diferentes classes sociais e diferentes origens. Isso pode ter um papel muito importante na forma como vemos o futuro: somos amigos de pessoas que têm um pai e uma mãe que se calhar tiraram o curso superior, ou por outro lado, temos uma família em que os pais não estudaram e vamos almoçar a casa de um amigo em que os pais são médicos ou advogados… isso alarga o nosso mundo nos dois sentidos. É muito importante mais tarde, nas nossas profissões, não necessariamente políticas, mas em todo o tipo de profissões. Temos uma consciência social completamente diferente e deixamos de ter uma coisa muito importante: o medo dos outros. Este medo é o cerne da questão que tem que ver com estes problemas todos como o medo dos imigrantes, o medo das pessoas de outras etnias. Se tivermos um contacto precoce com outras realidades, vamos conhecê-las melhor e não é aceitar tudo o que isso traz, mas é compreendê-las melhor e saber atuar e não diabolizar as pessoas. Este é um problema que, por exemplo, a extrema-direita usa muito como estratégia, o diabolizar, que é um caminho muito fácil.

Quando falamos de crianças temos de ter o especial cuidado de nunca ir por esse caminho. Sei que há os contos de fadas em que existem as personagens boas e más, mas o mundo não é assim e a realidade é muito mais complexa. O trabalho que eu faço e os livros que escrevo, às vezes até nos textos, tento que sejam muito simples, mas acredito que essa complexidade deve ser ensinada às crianças desde cedo, para que vejam as perspetivas, os diferentes pontos de vista e que entendam que não é sempre tudo preto e branco. Há sempre vários lados. Isso torna-nos mais moderados, num bom sentido, e mais capazes de agir quando é preciso.

Dessa forma a realidade pode parecer menos assustadora?
Esse caminho da extrema-direita, da radicalização de tudo, torna o mundo num lugar altamente assustador. Em Portugal esse discurso é completamente ridículo. Vivemos num país muito seguro. Esse caminho do diálogo até parece que é impossível às vezes, mas essa frase é importante, porque é o caminho de nos aproximar dos outros e de tornar as coisas menos assustadoras. É o caminho contrário ao medo. Agora na editora Planeta Tangerina estamos a fazer um livro em que o tema é conversar e o diálogo. É feito com uma investigadora da Universidade Nova de Lisboa, a Dina Mendonça, e tem muito que ver com isso. Com o ser muito importante nós conseguirmos conversar uns com os outros. As redes sociais também têm sido um bloqueio dessa conversa. A pandemia também foi, perdemos o treino, mas se formos ver a história, os passos que se deram sempre no sentido da paz e das conquistas sociais foram sempre conseguidas através do diálogo e da negociação e da diplomacia.

Falou há pouco sobre o trabalho que fez para o Tribunal Constitucional. Há uma preocupação com essa linguagem?
Eu própria quando fiz esse livro sobre o Tribunal Constitucional, tive dificuldades. Sabia o que era o Tribunal Constitucional, mas não fazia ideia como é que ele funcionava, como é que os juízes eram eleitos, como se garantia a imparcialidade daquelas pessoas. Acredito que também há um desconhecimento grande e isso era uma coisa que a escola devia trabalhar melhor, que é perceber como as instituições funcionam, quais são as que existem e como é que elas se relacionam entre elas.

E sabendo isso, sabemos quais são as ferramentas que existem para podermos fazer uma queixa, até sabermos os direitos que temos e os deveres mais facilmente. A informação e o conhecimento são poderosos. Aliás, a prova de que a informação e o conhecimento são poderosos é também a força da desinformação e a forma como consegue virar os tabuleiros do jogo muito facilmente. Depois as armas que são usadas para criar desinformação são truques cheios de manha que são difíceis de lidar, mas que têm de ser desconstruídos. Acredito muito nisso, nos livros, nos professores quando são bons e empenhados, nas instituições culturais como teatros e museus que têm mesmo de ser elementos ativos. Há imenso trabalho a fazer e temos de trabalhar todos juntos.

"[Com as crianças] Podemos ter uma postura mais paternalista, quase uma pirâmide hierárquica em que nos sobrepomos a elas, do "eu sei tudo, já cá ando há muito tempo e eu é que tenho o dom de te ensinar", ou podemos ter uma postura mais exploratória, que é o caminho que tento seguir quando escrevo."

A Cultura tem um papel fundamental na desconstrução destes temas? O palco, o livro, são lugar de conhecimento, “seguros”, para isso?
Sem dúvida. Por exemplo, com o telemóvel estamos sempre a ser distraídos e solicitados, interrompidos, o que também pode acontecer quando estamos num teatro, mas há algo nestes dois elementos, ou seja, no palco e no livro: somos transportados para um lugar em que alguém nos está a chamar e, de certa forma, a iluminar tudo o que está à nossa volta para entrarmos naquela experiência, quer da leitura quer de estar a assistir ao espetáculo e àquela comunicação com os atores. Isso é uma coisa poderosa. É importante essa emersão — e eu sei que esta palavra está muito na moda —, mas é realmente importante porque não a conseguimos ter muitas vezes na nossa vida. Atualmente estamos muito dispersos, a nossa atenção está muito fragmentada e tanto o livro como o palco chamam-nos. É como entrarmos numa sala de cinema. Fica tudo às escuras, e nós estamos ali com o livro, o palco ou o ecrã do cinema concentrados a pensar, a lembrar-nos de coisas, a criar ligações na nossa cabeça entre coisas que sabemos e coisas que estamos a pensar pela primeira vez. Isso é importante. Pode ser até uma arma poderosa. Não gosto muito de livros nem espetáculos muito panfletários, isso incomoda-me. Tento não dar lições, não apresentar as verdades muito preto e branco, mas lançar muitas questões, questionar. Temos de viver com as contradições das coisas e creio que isso é muito mais saudável do que ter o mundo a preto e branco, com o bom e o mau. É tudo muito complexo. Mesmo as questões do Colonialismo, os Descobrimentos. É possível falar sobre tudo e falar sobre os lados positivos e negativos das coisas. Como leitora e espectadora e, depois, como criadora, prefiro que não sejam coisas demasiado panfletárias. O que não quer dizer que não tenha as minhas opiniões e espírito crítico, mas creio que tem de haver espaço para o contraditório, mesmo num espetáculo e num livro. O espectador e o leitor têm de sentir liberdade de não concordarem com o que está a ser dito e não se sentirem mal com isso.

Há espaço para a “não-linguagem” nestes lugares, ou seja, uma reflexão sobre si mesma nos momentos em que acaba por não existir, mas que é necessária?
Por um lado, as duas experiências são interessantes. Por exemplo, vermos um espetáculo e sairmos de lá em silêncio. Isso também é bom e ficamos a digerir sobre o que vimos, não falar durante algum tempo, porque por vezes nem sabemos bem o que havemos de pensar. Mas acredito que a conversa com os artistas e criadores, lugares em que partilham as suas dúvidas, quando os espectadores colocam em causa algumas das posições que se tomam. Acho que isso também é muito importante. Em relação ainda a estes temas que definimos hoje como temas fraturantes, como é o caso da linguagem inclusiva ou quando falamos do Colonialismo, sinto que somos um bocadinho severos, por exemplo, com as gerações mais velhas. Tal como a conversa das touradas. Não concordo de todo com as touradas, são horríveis, mas tenho quase a certeza de que essa conversa não terá tanta expressão daqui a uma geração ou duas. Claro que é necessário este empurrão da manifestação, da revolta, mas não é preciso violência. Tenho dúvidas que isso resulte. Acho que só afasta as pessoas e as radicaliza. Mas, a verdade, é que depois há assuntos como esta questão das alterações climáticas e dos jovens irem para as ruas que são mesmo urgentes.

"É muito importante este lugar onde nos pomos quando escrevemos, quando nos relacionamos com as crianças e quando dialogamos com elas"

Simão Costa

É o primeiro livro que não tem ilustrações. Como se ultrapassa um desafio destes com o foco na palavra?
Como estava a escrever para um espetáculo, sabia que não existiriam ilustrações, mas de certa forma, na minha cabeça houve sempre imagens. O espetáculo começa com uma espécie de um preâmbulo de como o nosso corpo se relaciona com a justiça e com as expressões que tem de ver sempre com o corpo, como por exemplo, “dar o peito às balas” ou “dar o braço a torcer”. O texto sempre teve esse lado mais visual, apesar de que como não sou da área do teatro, não pensava em soluções para encenar o texto, mas há sempre imagens. Sempre que se escreve um texto, visualizamos coisas na nossa cabeça. Depende dos autores e escritores, mas, no meu caso, os meus pensamentos são sempre muito visuais. Quando escrevi o texto não sabia que seria transposto para um livro. Fui buscar algumas das partes que não foram usadas, melhorei algumas ligações entre o texto, um bocadinho para funcionar também sem as ilustrações e tive a colaboração da equipa do Teatro Nacional de São João, que foi bastante rigorosa e ajudou-me muito para que o texto ficasse mais cuidado. Esta foi uma enorme responsabilidade. Quando se escreve para algo ilustrado o objetivo é até escrever um texto incompleto que, de certa forma, seja completado pelas imagens, para que não haja redundâncias. Foi uma responsabilidade grande, diferente, também porque não sou muito desta área do teatro e sinto-me um pouco uma forasteira. Continuarei a senti-lo.

Apesar do título do livro ser Uma ideia de justiça, há na verdade várias ideias realçadas nele.
Qualquer pessoa que vá pensar e conversar sobre o tema traz ideias novas para a mesa desta conversa. É um tema muito multifacetado. Não uma ideia de justiça. Há muitas vertentes e depois todos os assuntos tocam de certa forma nela.

Este é o primeiro texto da coleção de textos dramáticos.
É até intimidante. Esta coisa de se fazer textos para se transpor para palco para um público mais jovem é mesmo importante e faz falta. Não há muita coisa. O Manuel António Pina escreveu teatro para a infância e há alguns criadores, mas sinto que não há muita disponibilidade. Há o festival PANOS, ligado ao Teatro D. Maria II que faz esse trabalho muito bem, põe escritores a escrever para teatro e que depois são utilizados pelas escolas e pequenos grupos de teatro na escola e fora. Mas faz muita falta haver esse material disponível para uma escola ou um grupo de adultos poder pegar nele e fazer espetáculos para infância. Havendo-o acho que é algo muito enriquecedor. Depois pode também inspirar a criação. Por vezes quando vemos o trabalho dos outros também sentimos vontade de fazer coisas. Gosto muito quando os livros servem de pontapé de saída para outras coisas.

E de que forma se obtém esta relação de horizontalidade, num espaço sem conceções predefinidas, há base de questões sobre um tema, quando se escreve e pensa num universo infantojuvenil?
É muito importante este lugar onde nos pomos quando escrevemos, quando nos relacionamos com as crianças e quando dialogamos com elas. Podemos ter uma postura mais paternalista, quase uma pirâmide hierárquica em que nos sobrepomos a elas, do “eu sei tudo, já cá ando há muito tempo e eu é que tenho o dom de te ensinar”, ou podemos ter uma postura mais exploratória, que é o caminho que tento seguir quando escrevo. Sou muito movida pela curiosidade e isso é muito diferente quando se é académico ou especialista em determinado assunto.

Por exemplo, um académico escreve sobre um assunto porque já o estudou muito e sabe muito sobre ele. A minha postura é sempre de raramente saber muito sobre o assunto e tenho um motor que é a curiosidade e, de certa forma, tenho essa postura da exploração. Não sou uma criança que está a explorar, mas tento ter esse olhar de alguém que pouco conhece e que vai fazer aquele trabalho de embarcar numa aventura, de descobrir, de recolher informação, de ler várias fontes e juntar as peças.

O livro ou a peça será o resultado dessa viagem exploratória que faço como autora. O que passa para o texto nunca é alguém que explica o que quer que seja de um lugar superior, mas sim sobre estarmos todos num planeta. Há coisas boas, coisas más, dias espetaculares, dias difíceis. Fazemos todos parte deste sistema complexo, os adultos e as crianças. É muito importante os livros mostrarem que não há mundo das crianças e o mundo dos adultos. É tudo o mesmo mundo. Quando escrevo um texto estou com eles no mesmo barco, não sendo igual ainda assim. Não se trata de uma postura “infantilizante”, mas sim levar a lugar em que nos encontramos, um público mais novo, eu um bocadinho mais velha. Mas estamos todos sentados a conversar. É a mesma linguagem.

"Os manuais escolares ou a Wikipédia são uma forma de transmitir informação que também é importante, mas estes lugares onde chegamos com este tipo de texto mais livre e exploratório são menos frios. Não podem ser escritos pela inteligência artificial porque precisam da experiência humana e da sua relação com os factos. A inteligência artificial desafia-nos a ser mais humanos, porque temos de fazer um trabalho de uma forma que não seja replicável e criado para uma máquina."

Tem falado muito das faixas etárias serem um pouco distópicas. E talvez este texto se enquadre nessa narrativa?
É importante haver diversidade de livros. Lembro-me que os meus filhos, crianças, quando íamos a uma livraria escolhiam livros que eu não gostava muito. É normal que uma criança vá a uma livraria e se identifique facilmente com alguns livros, até associados aos desenhos animados, por exemplo. É saudável termos uma prateleira de livros em casa diversa. Há coisa mais e menos exigentes e há espaço para tudo isso. Mas este meu caminho da escrita também não foi algo que escolhi. Há algo de muito natural em mim que é não deixar ninguém de fora. Tento. No Planeta Tangerina tentamos isso também. Não tenho nada contra criadores e instituições, marcas como a Disney que talvez tenham psicólogos, pedagogos e especialistas na evolução das crianças que fazem produtos, criam personagens e narrativas que vão ao encontro do que elas gostam e que sabem que elas vão aderir. É um caminho possível, mas não é essa a forma de eu trabalhar. Às vezes é importante ter em conta o que estão a dar na escola ou que diretrizes de comunicação existem. Também já tive de trabalhar assim, mas esta vertente da Literatura da criação para espetáculos, acho que se deve concentrar mais nisso, nos livros, porque nos levam a lugares diferentes. Os manuais escolares ou a Wikipédia são uma forma de transmitir informação que também é importante, mas estes lugares onde chegamos com este tipo de texto mais livre e exploratório são menos frios. Não podem ser escritos pela inteligência artificial porque precisam da experiência humana e da sua relação com os factos. A inteligência artificial desafia-nos a ser mais humanos, porque temos de fazer um trabalho de uma forma que não seja replicável e criado para uma máquina.

E esta coexistência é real, ou seja, todas as preocupações sociais e culturais e podem coexistir da mesma forma, mesmo estando mais ou menos ligadas ao lado comercial da literatura?
Estas marcas estão atentas ao mundo, sabem o que está a preocupar as pessoas e quais são as discussões a ter no momento e respondem. Acredito que sim, pelo menos. Se essa resposta é uma coisa verdadeira ou não, podemos questionar e perceber se não é apenas uma estratégia comercial. Isso também é importante. Por vezes, cai-se no radicalismo do politicamente correto, o que também acho excessivo, mas tudo o que seja questionarmos, pôr as coisas em causa e pensar sobre elas, para mim é válido. Depois o que se decide a partir daí já depende do caminho que se escolhe.

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