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Jamie Oliver. Uma receita de sucesso e fracasso em 10 passos

Liderou o boom dos chefs pop stars mas uma década depois vê-se obrigado a declarar insolvência. Recordamos a ascensão e queda do britânico que pôs meio mundo a cozinhar.

As origens humildes entre tachos

“Cresci num pub e os meus amigos na escola eram ciganos e cockneys”. A frase foi dita por Jamie Oliver numa longa entrevista ao Financial Times e retrata um pouco do que foi a infância do chef celebridade, que nasceu e cresceu na pequena vila (ainda hoje com pouco mais de mil habitantes) de Clavering, no condado de Essex, a sudeste de Inglaterra e a nordeste de Londres.

Filho de Trevor e Sally Oliver, Jamie Oliver cedo contactou com os tachos e com a cozinha: os pais geriam um  restaurante- chamado The Cricketers, na vila de Essex. O chef veio mesmo a queixar-se mais tarde da forma como é visto pelas pessoas que, iludidas pelo seu sucesso (que acabou em derrocada) no mundo da alta cozinha, estão convictas de que nasceu em berço de ouro ou pelo menos numa família de classe média desafogada: “Apesar de algumas pessoas acharem que sou um tipo de classe média com um historial de frequência de escolas privadas, não sou. O meu pai não tinha nada e eu trabalhei no negócio da família, portanto não poderia ser mais o oposto”.

O pub-restaurante que os pais geriam veio a influenciar o seu fascínio por estes espaço gastronómicos, para Jamie Oliver os “mais democráticos” entre todos os restaurantes: “É o que definiu o tom do meu trabalho. Cresci ali, a ser amigo de ciganos, pensionistas, miúdos da cidade, agricultores, idiotas da vila”, contou em 2016 ao jornal britânico The Telegraph.

Jamie Oliver em setembro de 2006, em Sydney, na Austrália (@ Patrick Riviere/Getty Images)

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Em 1983, quando Jamie Oliver tinha 8 anos e começou a trabalhar no pub dos pais, o futuro chef conheceu Leigh Haggerwood, um músico que posteriormente apareceu no seu programa televisivo “The Naked Chef” e que recordou à revista Vice como era Oliver em miúdo: “Era exatamente como é hoje: amigável, vivaço e carismático. O talento do Jamie é ser um grande comunicador, ele puxa as pessoas e contagia-as com entusiasmo”.

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O que nem todos sabem é que além da cozinha, também a música era uma paixão para Jamie Oliver. A revelação foi feita pelo mesmo amigo de infância, Leigh Haggerwood: “Começámos uma banda [mais tarde, quando Oliver tinha já 14 anos] e ele tocava bateria, mas o pai dele era muito sensível, portanto garantiu que o Jamie continuava com os pés assentes na terra. Enquanto muitos de nós tinham o sonho de ser estrelas pop, Jamie foi para uma escola de cozinha. A ambição dele, quando tinha pouco mais de 20 anos, era abrir um restaurante e escrever um livro de cozinha”.

A grande mudança deu-se aos 16 anos, quando Jamie Oliver abandonou a escola secundária que frequentava trocando-a pelo ensino profissional — mais especificamente pela Westminster Technical College, atualmente conhecida como Westminster Kingway College — para seguir a via da cozinha. Mais tarde, acabou por se especializar em economia doméstica. Ao The Telegraph, em 2016, Jamie Oliver recordou esse período de vida: “Sentia que tinha muita coisa a provar. Tive um desempenho tão mau na escola que depois senti que tinha de provar que tinha valor no trabalho”.

A ambição seria largamente ultrapassada e, do seu grupo de amigos, seria Jamie Oliver quem atingiria o maior estrelato pop. Isto até surpreender o mundo com a notícia da insolvência, e consequente espiral de encerramento de restaurantes da sua gigantesca cadeia gastronómica.

A estreia na pastelaria e a relação com o mestre Gennaro Contaldo

Para o chef britânico, o início de carreira fora dos braços — na verdade do pub — dos seus pais foi na área da pastelaria. Jamie Oliver trabalhou como chef de pastelaria no restaurante Neal Street, propriedade de um chef italiano residente em Londres chamado Antonio Carluccio.

Foi neste restaurante, o primeiro fora da sua esfera familiar em que trabalhou, que Jamie Oliver começou a contactar mais diariamente com a cozinha italiana, na qual se viria a especializar. Foi também nele que conheceu e começou a trabalhar com um chef italiano que viria a tornar-se seu mentor: Gennaro Contaldo.

Desde o convívio no restaurante Neal Street que Jamie Oliver e Gennaro Contaldo se tornaram amigos próximos, estendendo a amizade às suas relações profissionais. O grande público foi tendo acesso à relação entre os dois através das aparições de Contaldo na televisão, em programas de Jamie Oliver, tendo surgido com maior destaque no programa “The Naked Chef”.

Jamie Oliver acabou por convidar, mais tarde, Gennaro Contaldo para ajudá-lo na direção dos seus restaurantes Jamie’s Italian — e o seu último programa de televisão (também deu origem a um livro) “Jamie Cooks Italy”, exibido em 2018, consistia em viagens da dupla por Itália, com a cozinha (claro) à mistura.

O “The Naked Chef”  — e passar “de pobre a milionário em seis semanas”

O “The Naked Chef” foi o primeiro grande programa de televisão de Jamie Oliver e aquele que tornou o seu nome mais abrangente no Reino Unido — antes, era um sous-chef (sub-chefe) do restaurante londrino The River Café. O título induz em erro: o programa exibido entre 1999 e 2001 na BBC não incluía qualquer cena de nudez com o chef britânico. A ideia de “naked chef”, ou “chef nu”, apontava antes para a simplicidade das receitas de Jamie Oliver, cujo baixo grau de dificuldade para replicar — por comparação com as de outros chefs populares e mediáticos — só as tornou mais apelativas, entusiasmando até quem não sabia estrelar um ovo mas estava curioso por descobrir.

O programa tinha uma unidade narrativa e temática coerente: cada episódio das três temporadas era ancorado num evento ou momento social de Oliver que aumentava o interesse dos espectadores. O objetivo era mostrar tanto a vida do chef quanto os seus dotes culinários. Trouxe resposta a algumas perguntas: como e o que é que um chef (então ainda relativamente pouco conhecido, mas ainda assim um chef) cozinharia para a sua festa de aniversário? Como e o que é que cozinharia para a namorada? O que faria para uma amiga alemã que acabara de voltar a Londres? De que é que se lembraria para um piquenique com os sobrinhos? E o que prepararia para o vocalista da sua banda preferia (Jay Kay, dos Jamiroquai) se preparasse um jantar em sua casa?

À revista VICE, posteriormente, Jamie Oliver recordou o programa: “O The Naked Chef era radical. Ninguém filmava porra nenhuma como aquela. Era eu em minha casa, a usar a minha roupa, a curtir a minha música, a ir a casa dos meus amigos, a cozinhar porras que cozinhava em casa. Era uma coisa que não se via”. O impacto nele foi gigante: “Passei de pobre a milionário em seis semanas. Perguntava-me: que raio se está a passar? Era estilo One Direction da cozinha. Era uma loucura”. Nas palavras do The Telegraph, o programa “explodiu quase do dia para a noite” e Oliver transformou-se de “um cheeky chappy [um rapaz simpático] de Essex num milionário” capaz de “arrebatar os corações das donas de casa de Folkestone a Fife”.

Jamie Oliver na sua fase "The Naked Chef", em Sidney, na Austrália (@ Patrick Riviere/Getty Images)

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Os livros de receitas de um disléxico bestseller

Entre livros de receitas, livros sobre programas de televisão e apontamentos pessoais, Jamie Oliver tem mais de 20 obras publicadas. O primeiro foi um livro sobre o “The Naked Chef”, o seu primeiro programa de televisão — e tornou-se logo bestseller.

Se Jamie Oliver se tivesse dedicado apenas à literatura gastronómica em vez de expandir o seu império gastronómico até à derrocada da insolvência, por certo teria tido uma vida desafogada: tem livros e campeões de vendas traduzidos por todo o mundo, incluindo em Portugal, onde já foram publicados mais de dez edições do autor. Os direitos da obra foram assegurados nos últimos anos pelo grupo livreiro português Porto Editora. Só nos últimos seis anos foram publicados oito títulos: Poupe Com Jamie, As Receitas Que Nos Fazem Felizes, Refeições em 15 Minutos, As Receitas de Natal do Jamie Oliver, Receitas Saudáveis Para Toda a Família, 5 Ingredientes – Receitas Fáceis e Rápidas, Receitas Saudáveis e Jamie e a Cozinha Italiana.

A dimensão do seu sucesso no mercado livreiro será inesperado, dado que quando tinha pouco mais de 20 anos a ambição de Jamie Oliver passaria, segundo amigos seus da época, por publicar apenas um livro de receitas — um número largamente ultrapassado. Além disso, o chef britânico sofria de dislexia em jovem, como já veio admitir.

Jamie Oliver ao lado da sua estátua de cera no museu Madame Tussauds, em 2005 (@ Gareth Cattermole/Getty Images)

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Numa entrevista dada a uma vlogger e estrela do canal infantil CBBC (um dos canais da estação britânica BBC), Nikki Lily, Jamie Oliver não esqueceu esse historial: “Tive um desempenho mesmo mau na escola, graças à dislexia, e para ser honesto ainda hoje tenho dificuldades para a ultrapassar. Tive de aprender pequenos truques para me safar”. O chef britânico passou, como fez questão de recordar, de um aluno que saiu da escola com elevado grau de insucesso para “o segundo maior autor de livros do Reino Unido”. Isso “pode inspirar miúdos que sentem dificuldades na escola”, entende.

As polémicas: a matança de um cordeiro, a relação com a Shell, e a “guerra” com Marco Pierre White

Ao longo dos anos, como qualquer celebridade — ainda mais as que têm poucos pruridos de linguagem —, Jamie Oliver não foi imune a controvérsias. Uma das ‘guerras’ públicas que teve foi com outro chef pop star, Marco Pierre White, este conhecido como um rebelde da cozinha que decidiu renegar as estrelas Michelin que lhe foram concedidas.

Numa das suas habituais declarações incendiárias, Marco Pierre White acabou por dar voz a vários chefs e entusiastas da alta cozinha para dizer que também ele não via Jamie Oliver como “um verdadeiro chef“, alertando que este “não é realmente aceite no mundo dos chefs profissionais” por nunca ter vencido uma estrela Michelin. “Sim, inspira muita gente a cozinhar, mas não entra na categoria dos grandes chef mundiais”, apontou ainda.

Não foi o pior que Marco Pierre White disse de Jamie Oliver, já que chegou a chamar-lhe “um chef gordo com um kit de bateria”, numa alusão ao seu passado como aspirante a baterista. O fundador da cadeia Jamie’s Italian não o deixou sem resposta, apontando: “Não o odeio, mas é um personagem de poder levemente ao estilo de um padrinho da Máfia. Acho que já mencionei subtilmente mas justamente que ele era um bully psicológico”.

Jamie Oliver viveu outras polémicas. Em 2005, foi alvo da fúria dos grupos de defesa dos animais, depois de proceder a uma matança de um cordeiro num programa de televisão. A sua guerra contra os açúcares e os apelos às comunidades mais pobres para mudarem os seus hábitos alimentares também mereceu críticas de “paternalismo” e “elitismo”.

Durante vários anos de cozinha, os restaurantes de Jamie Oliver também tiveram problemas que encheram as páginas dos jornais: a utilização de molhos no seu restaurante Jamie’s Italian em Glasgow foi comentada depois de se descobrir que os mesmos eram confecionados num parque industrial a mais de 400 quilómetros, algo que justificou as acusações de “hipocrisia”, dada a sua defesa de utilização de produtos locais e preparados no momento. Também as condições de higiene e segurança no interior de algumas cozinhas da sua cadeia de restaurantes já foram colocadas em causa. Jamie Oliver esteve ainda na mira dos ambientalistas devido a uma parceria que celebrou já este ano com a Royal Dutch Shell. A Shell é uma das empresas mais atacadas pelos ativistas climáticos que se opõem à deterioração do planeta.

O lançamento da grande cadeia Jamie’s Italian

Da cadeia Jamie Oliver Restaurant Group, o grupo de restaurantes mais famoso de Jamie Oliver teve o nome de Jamie’s Italian — e começou com a abertura de um espaço em Oxford, em 2008. O sucesso deste modelo de negócio foi tanto que só no Reino Unido Jamie Oliver chegou a ter 42 restaurantes destes abertos, tendo sido também o “Jamie’s Italian” o seu formato mais exportado para outros países. No Reino Unido, antes da insolvência declarada esta terça-feira, estavam abertos 25 restaurantes com este nome, após o encerramento de vários espaços. O Jamie’s Italian está presente, por exemplo, em países como o Canadá, Chipre, Islândia, Rússia, Irlanda, Singapura, Turquia e Hong Kong.

Portugal foi um dos últimos países em que Jamie Oliver viu abrir mais um Jamie’s Italian. A abertura de portas aconteceu após um período curto de soft-opening (uma primeira abertura de ensaio) a 27 de janeiro de 2018, no número 28a da Praça do Príncipe Real, em Lisboa, numa altura em que a crise do império do chef britânico era já mais do que pública e o grupo já tinha encerrado (começara a fazê-lo no início de 2017) restaurantes “Jamie’s Italian” em solo britânico.

A fórmula da casa passava por um restaurante italiano relativamente económico — isto é, acessível à classe média — de especialidades italianas, confecionadas com qualidade e resultantes da experiência do chef britânico com a cozinha italiana, que se iniciara na segunda metade da década de 1990. No menu do restaurante lisboeta, por exemplo, encontram-se especialidade como “Crispy Squid” (7,75€), uma dose de lulas fritas com chili, alho, salsa e servidas com maionese de alho; o “Gennaro’s Tagliatelle Bolognese” (11,95€), um ragú de carne de vitela com pasta fresca (é feita todos os dias e usa farinha 00 e ovos biológicos); a pizza “truffle shuffle” (15,95€), que leva molho branco, queijo fontina, cebolas aromatizadas em vinagre balsâmico, ovos biológicos e trufa preta. Se preferir algo mais simples, pode sempre escolher o “The Jamie’s Italian Burguer” (12,95€), uma sanduíche de pão brioche que leva carne de vaca, pancetta, cebola, queijo da ilha, tomate e molho especial da casa.

Já abriu o restaurante de Jamie Oliver em Lisboa

Há muito que se discute se o facto de um restaurante estar associado ao nome de um chef mediático lhe garante rentabilidade a longo-prazo. A curto-prazo, o espaço torna-se atrativo e a afluência de clientes assim o comprova — assim tem acontecido no primeiro ano do Jamie’s Italian em Portugal e assim aconteceu em mais de três dezenas dos restaurantes Jamie’s Italian que abriram portas no Reino Unido. Por ora, a situação de insolvência da atividade do grupo gastronómico de Jamie Oliver no Reino Unido não teve impacto em restaurantes “franchisados”, isto é, com o nome do chef mas assegurados por equipas locais noutros países.

Um gerente do espaço de franchising Jamie Oliver avançou ao Jornal de Negócios que a insolvência é cenário distante para a sucursal portuguesa. “Estamos sempre cheios”, afirmou, antes de remeter mais explicações para um comunicado oficial emitido pela administração do restaurante. Nesse documento, os responsáveis pelo restaurante na capital portuguesa (a empresa It Foods, que terá investido cerca de um milhão de euros na totalidade do negócio, compra do imóvel e obras) explicam que a operação internacional do grupo de Oliver “não é afetada por esta tomada de decisão, uma vez que tem conhecido um percurso inverso – de elevado desempenho, crescimento e robustez, prosseguindo com normalidade o seu desenvolvimento.”

Os Jamie’s Italian do Reino Unido não têm nada a ver com o de Lisboa. Grupo que detém o franchising afasta encerramento

A televisão como meio de conservação do mediatismo

O “The Naked Chef” e os programas e séries de televisão dedicados a combater a obesidade infantil e os índices desajustados de açúcar nos alimentos não foram as únicas aventuras de Jamie Oliver no pequeno ecrã. O chef britânico construiu e conservou o seu mediatismo também através da televisão, tendo passado por mais de 30 programas e séries de televisão nos últimos anos, a maioria das quais tendo-o a ele como protagonista.

Jamie Oliver a cozinhar ao lado de Jay Leno, no programa "The Tonight Show with Jay Leno" em 2003 (@ Kevin Winter/Getty Images)

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Os formatos foram muitos e diferentes: Jamie Oliver a tentar transformar a cidade de Roterham, em South Yorkshire, na “capital culinária do Reino Unido”, estimulando os moradores locais a aprender a cozinhar produtos frescos e a estabelecer hábitos de alimentação saudáveis — no programa “Jamie’s Ministry of Food” —, o chef britânico num formato de “programa gastronómico de viagens” ao estilo de Anthony Bourdain (em “Jamie Does”), a cozinhar refeições caseiras e simples, não necessariamente habituais num chef gastronómico, ora em 30 minutos (“Jamie’s 30-Minute Meals”) ora em 15 minutos (“Jamie’s 15-Minute Meals”), ora para grandes grupos (“Jamie’s Comfort Food”).

Há também uma história curiosa envolvendo a série documental “Jamie’s Kitchen”. Apesar das audições não terem correspondido às expectativas do canal de televisão Channel 4, que transmitiu a série — em que Jamie Oliver tentava formar 15 jovens carenciados e com deficiências para os integrar na sua cadeia de restaurantes Fifteen (que continuou a trabalhar com jovens com o mesmo perfil desde aí) —, a série valeu-lhe um convite do então primeiro-ministro britânico Tony Blair para um almoço na sua residência oficial em Downing Street. Desde aí, o impacto das ações do chef britânico no âmbito das políticas públicas de alimentação e educação foi tido em conta pelos diferentes governos do Reino Unido, como se atestará no ponto seguinte.

O combate à obesidade infantil e aos açúcares

Em 2005, Jamie Oliver deu início a uma série documental de quatro episódios que o consagrou como uma das vozes mais expressivas contra o excesso de açúcares nos alimentos e a obesidade infantil. A série chamava-se “Jamie’s School Dinners” e fez o chef britânico aperceber-se de uma realidade que não conhecia a fundo: os níveis muito pouco saudáveis da comida servida em algumas cantinas escolares do Reino Unido, como a de uma escola primária em Greenwich, serviu de mote ao programa.

Por essa altura, o chef iniciou um movimento de sensibilização para a importância da alimentação saudável para os mais novos. Nem tudo foram rosas, revelou: “Apesar de já ser muito famoso nessa altura, foi duro. O ‘Jamie’s School Diners’ durou 18 meses e honestamente pensavam que me abririam as portas. Pensei que me diriam ‘passa, Jamie’, mas alguns dos professores que encontrei opuseram-se muito, até os pais e avôs das crianças estavam contra” o que defendia.

O mediatismo de Jamie Oliver era grande, pelo que não terá sido coincidência que no mesmo ano em que o programa foi exibido o governo britânico comprometeu-se a investir 280 milhões de libras — quase 320 milhões de euros, à taxa de câmbio atual — nas cantinas escolares, para melhorar a oferta alimentar das instituições de ensino. A promessa, aliás, foi feita no mesmo dia em que Jamie Oliver entregou ao parlamento britânico uma petição com 271 mil assinaturas, que exigia mudanças nas cantinas. O nome da sua campanha? “Feed Me Better”, que em português significa algo como “Alimenta-me Melhor”.

O chef britânico não ficou por aí. Fez também um programa de televisão nos Estados Unidos da América — exibido entre 2010 e 2011 — em que visitou cidades pobres do país para tentar combater a obesidade, apelando à alteração de hábitos alimentares. O programa chamava-se “Jamie Oliver’s Food Revolution” e foi premiado com um Emmy, apesar da dificuldade do britânico em convencer os moradores locais pouco recetivos a esta sua missão. Houve ainda um documentário intitulado “Sugar Rush”, sobre a contribuição do excesso de açúcar para doenças como a obesidade e diabetes. Também este teve impacto nas políticas públicas do Reino Unido: o chef festejou, um ano depois, a introdução de um imposto (que também existe em Portugal) que taxa de forma mais elevado os refrigerantes com alto teor de açúcar.

Jamie Oliver durante uma entrevista, numa das suas ações de sensibilização para políticas públicas de educação e alimentação de qualidade (@ Leon Neal/AFP/Getty Images

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Em declarações aos media, Jamie Oliver explicou as guerras e causas das quais se tornou embaixador. “Não odeio açúcar. Todos adoramos açúcares. Mas há uma utilização absolutamente desajustada de açúcar”, apontou ao The Telegraph em 2016, acusando uma empresa em específico — a produtora britânica de refrigerantes Ribena — de tentar enganar os consumidores com os valores nutricionais que apresenta, detalhando por exemplo os açúcares presentes em cada 200ml do seu produto e não em toda a garrafa que vende a crianças.

Ao The Guardian, o ‘chef‘ deu outro exemplo: “As pessoas querem comer bolo, querem comer um hambúrguer — e eu também. Mas de certa forma os bolos e os hambúrgueres são as comidas mais honestas que tivemos nos últimos 40 anos, porque nunca nos mentiram”. O problema, alertou então Jamie Oliver, são os alimentos que nos “mentem”, como os cereais, dado que muitos consumidores comem cereais cujo teor de açúcar não imaginam ser sequer próximo do que na realidade é.

As críticas ao seu CEO (e cunhado)

No meio da “tempestade perfeita” que primeiro abalou o seu império e depois o fez implodir, o chef britânico teve ainda de lidar com críticas acintosas contra o CEO da sua cadeia de restauração. Curiosamente, as críticas voltaram a fazer-se ouvir esta terça-feira e exatamente no mesmo tom: Paul Hunt, que também é cunhado de Jamie Oliver, é “arrogante, atormentado pelo fracasso e tem um problema a trabalhar com mulheres fortes”, afirmaram fontes “próximas do célebre chef” ao tablóide inglês Daily Mail.

Jamie Oliver a transportar comida para um jantar de delgados do G20 e convidados em Downing Street, em 2009. Obama esteve presente (@ Christopher Furlong/Getty Images)

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As acusações já tinham sido veiculadas há cerca de um ano pelo jornal britânico The Times, que citava fontes que tratavam Paul Hunt como “um bully incompetente” e um dos grandes responsáveis pela queda do império de Jamie Oliver. O chef britânico respondeu às acusações numa entrevista ao The Guardian: “São uma treta pegada. Tal como disse ao editor que publicou essa história, o melhor teria sido vir ter connosco e falar com todos. Se alguém opta por falar apenas por empregados que saíram a mal, claro que existirão algumas pessoas que terão algo para se queixar”.

A grande queda: “Simplesmente ficámos sem dinheiro”

Tudo começou com uma chamada telefónica há quase dois anos, como contou o Financial Times numa entrevista de fundo a Jamie Oliver. Em setembro de 2017, o chef britânico recebeu um telefonema e do outro lado da linha deram-lhe uma notícia que não queria ouvir: a sua cadeia de restaurante Jamie’s Italian, que no final de 2016 contava com 43 restaurantes, estava em risco de bancarrota. “Simplesmente ficámos sem dinheiro”, resumiu o chef na entrevista, que aconteceu nove meses depois do telefonema.

Até essa entrevista, Jamie Oliver nunca comentara publicamente a gravidade da situação financeira do seu império. Aí, assumiu finalmente que algo correra bastante mal: “Não esperávamos. Não é normal seja em que negócio for. Há discussões, reuniões de administração. As pessoas encarregues de gerir essas coisas deveriam ter gerido essas coisas”.

Perante o risco de falência, começaram as injeções de capital — e o chef britânico acabou por ter de “enterrar” dinheiro no seu império. Das suas poupanças pessoais retirou perto de oito milhões e meio de euros, para tentar salvar a situação. “Tinha duas horas para colocar dinheiro e salvar as coisas ou tudo aquilo ia pelo cano abaixo nesse dia ou no dia seguinte. Foi tão mau e tão dramático quanto isso”, recordou.

A injeção de dinheiro não foi suficiente. Nos meses seguintes, voltou a investir uma nova quantia milionária, de quase seis milhões de euros. O valor tem de ser contextualizado: Jamie Oliver teria uma fortuna estimada de cerca de 170 milhões de euros. Ainda assim, não é habitual o dono de um império como o seu ter de investir perto de 14 milhões de euros da sua fortuna em alguns meses para não assistir à derrocada do império que construiu.

Jamie Oliver ao lado de Sting, durante uma receção na residência oficial do Príncipe de Gales em Londres a 24 de setembro de 2003. Nessa noite, Oliver cozinhou um jantar de comida orgânica

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Entre empréstimos e novas injeções de capital de empresas do grupo e bancos, terão sido investidos mais 42 milhões de euros (mais coisa menos coisa). Houve reestruturações, encerramento de restaurantes, cortes de cerca de 600 postos de trabalho antes mesmo do final de 2018. A situação foi piorando durante esse ano e até ao início de 2019, culminando esta terça-feira na declaração de insolvência de um grupo que no final de 2017 já registava dívidas de quase 82 milhões de euros. Dos 82 milhões de euros, cerca de 2.5 milhões correspondiam a dívidas de ordenados ao staff.

Ao The Guardian, quando a situação estava já grave mas não atingira ainda o ponto de falência total, o chef fez uma espécie de mea culpa: “Sou humano. Sou suscetível ao fracasso e também tenho muitas falhas. Sou muito guiado pela emoção, o que não significa necessariamente que esteja a seguir o meu coração. Sou muito impressionável perante pessoas mais experientes e mais inteligentes e isso fez-me muitas vezes falhar”.

Fechar restaurantes “partiu-lhe o coração”, disse o próprio ao The Guardian. Jamie Oliver recusou ainda que os problemas tenham tido origem na “expansão excessiva” da sua cadeia de restaurantes, até um ponto de saturação sem retorno em que era já impossível controlar a qualidade e rentabilidade de um restaurante só porque tinha o seu nome associado. O chef admitiu que alguns dos espaços que abriu “eram demasiado grandes e tinham um custo de arrendamento demasiado alto para darem lucro”, mas escudou-se na crise de mercado para restaurantes como este como principal fator para a crise. Apontou ainda que foi o primeiro a sofrer gravemente com ela porque se recusou “a comprometer” o negócio e a “cortar custos reduzindo a qualidade dos ingredientes” e das refeições. “Sou um chef, portanto o menu tem de ser cozinhado na hora e no local”, referiu à data.

O grande responsável, para Jamie Oliver, foi uma soma de fatores, que descreveu como “a tempestade perfeita” ao Financial Times. Nessa tempestade, incluía ainda aspetos como “o custo de alimentação”, o “Brexit” e o “aumento do salário mínimo” no país.

Esta terça-feira, Jamie Oliver assumiu a declaração de insolvência e encerramento dos seus restaurantes no Reino Unido. Na rede social Twitter, publicou uma mensagem na qual dizia estar “profundamente triste” e em que agradecia “a todas as pessoas que colocaram as suas almas e os seus corações neste negócio ao longo dos anos”.

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