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A época é de ouro para a joalharia portuguesa. Nos últimos anos, assistiu-se à chegada de novos designers ao mercado. Autodidatas e criativos fora de série que, nos mesmos ateliers onde desenham e produzem as suas peças, arquitetam estratégias para chegar mais longe. Para quase todos, a mira está apontada para fora do país.
“É um fenómeno recente, que ganhou força, sobretudo, nos últimos cinco anos, no rescaldo da crise económica. As crises têm este efeito de renovação e, para o setor da joalharia, foi sem dúvida um ponto de viragem a vários níveis, nomeadamente no crescimento das marcas de autor”, afirma Fátima Santos, secretária-geral da AORP (Associação de Ourivesaria e Relojoaria de Portugal), em entrevista ao Observador.
Afinal, a base já estava lá. A uma tradição joalheira consolidada juntaram-se cursos cada vez mais abrangentes, do design à gestão. Mas a porta-voz da AORP destaca as transformações do próprio mercado. “Passamos de um consumo de massas para um novo paradigma em que o consumidor vê na moda uma forma de expressão e diferenciação, procurando produtos mais exclusivos e de autor, que lhe transmitam uma mensagem, contem uma história”, completa Fátima Santos.
Expressão e diferenciação não falta aos jovens joalheiros portugueses. Dos estilos mais comerciais aos que fazem a ponte com as artes plásticas, dos que misturam materiais aos que se mantêm fiéis aos metais nobres, a nova geração veio com tudo. O Norte leva a melhor, com mais de 50% do setor concentrado naquela região. Desde o ano passado que a joalharia se tornou, oficialmente, o centro das atenções. Várias marcas e designers têm sido levados a apresentar trabalho além-fronteiras, outros fazem por conquistar o mercado interno, com todos os riscos que isso inclui.
Joana, a autodidata
Para Joana Mota Capitão, de 34 anos, a joalharia é uma atividade de subsistência. Não se imagina a fazer mais nada, mesmo depois de ter terminado uma licenciatura em Design de Interiores. Ainda hoje fala desses quatro anos como um verdadeiro suplício. Trabalha sozinha, da conceção das peças à presença em feiras internacionais do setor. Está quase a partir para uma, em Paris, já no início de setembro. Diz que só vai porque “pôs algum de parte”. Mais dois dedos de conversa com a autora e percebemos que o esforço para equilibrar lucros e despesas é constante e que só assim é que o atelier de Joana Mota Capitão se mantém de pé desde 2012.
“Não é nada fácil. Por vezes, as pessoas nem têm noção do que está por trás disto. Não é só maquinaria e ferramentas, é preciso investir na comunicação, em boas fotografias, numa modelo, num designer. Com isto tudo, custa ouvir alguém dizer que as peças são caras”, afirma. Só nos último dois anos é que Joana conseguiu dedicar-se à joalharia a 100%. Até então, dividia-se entre o atelier, ainda hoje instalado na Rua Augusto Gil, em Lisboa, e um part-time numa loja. Pode ainda não ter esta ou aquela máquina, mas Joana é a primeira a defender que essas faltas só aguçam a criatividade.
Mas o trabalho de Joana tem cada vez mais apreciadores, pela relação de confiança que constrói com cada cliente e pelo passa palavra que lhe traz novas visitas ao atelier. As peças, essas, não enganam. A inspiração está na joalharia antiga, a mesma joalharia que lhe despertou o gosto pela arte, ainda em pequena. E a culpa é das avós. Uma era dona de um antiquário e comprava joias danificadas ou incompletas, para depois lhes dar uma nova vida. Com a outra, entrou pela primeira vez na Galeria Tereza Seabra, no Bairro Alto, uma referência até hoje.
Planetas alinhados, sorte e fortuna para a joalharia portuguesa
“Corpos Celestes”, “Crateras” e “Moon”, os títulos das coleções de Lia Gonçalves têm qualquer coisa de premonitório para a joalharia portuguesa. No princípio, a criadora de Viana do Castelo só queria pegar na filigrana tradicional e dar-lhe um toque contemporâneo. Com o tempo, percebeu que o caminho era outro. Abriu atelier em 2010 e deitou cá para fora tudo o que achava que uma joia devia ser: fria e minimal, tal como o solo lunar. “Entrar no setor não é fácil. Temos de competir com o que está na moda e encontrar o nosso nicho”, afirma.
Em setembro do ano passado, Milla Jovovich dava a cara pela joalharia portuguesa. Foi a primeira grande campanha mundial da plataforma Portuguese Jewellery Newborn, criada pela AORP. Desde abril de 2016, a associação já investiu 250.000€, além do apoio dos programas de financiamento do Portugal 2020. Atualmente, são cerca de 20 as marcas e jovens designers apoiados, numa seleção feita através de um processo de candidaturas e que se repete a cada nova campanha. O foco está na divulgação em mercados internacionais. Aí, a presença em feiras como a Bijorhca, em Paris, e a Inhorgenta, em Munique, são fundamentais.
Campanha internacional "Portuguese Jewellery - Shaped with Love" | Promo from AORP Portuguese Jewellery on Vimeo.
“A joalharia de autor começa a ser vista com outros olhos. Na última feira internacional a que fui, a fileira dos portugueses já era assunto de conversa”, afirma Lia Gonçalves, uma das designers apoiada pela AORP. O programa arrancou há pouco mais de um ano, mas os frutos desta nova geração de joalheiros portugueses já vêm de trás. A ourivesaria é o setor da economia que mais cresceu em exportações, nos últimos anos. Foi um aumento de 500%, desde 2008. Um volume que chegou aos 71 milhões de euros no ano passado e que a AORP estima que atinja a marca dos 150 milhões dentro de cinco anos.
Segundo dados de 2015, os últimos apurados, o mercado francês continua a ser o principal destino das exportações portuguesas nesta área, com uma fatia de 34,5%. Espanha vem logo a seguir, com 23,2%. Angola e Estados Unidos surgem em terceiro e quarto lugar, respetivamente. Bélgica, Suíça, Alemanha e Itália dividem o resto do bolo. Enquanto isso, há que definir os mercados com potencial ainda por explorar. Entre eles, Hong Kong, Reino Unido e Emirados Árabes Unidos.
O naturalismo lisboeta
Pode não ser uma corrente reconhecida, mas Lisboa está cheia de bons exemplos de como a joalharia pode partir da natureza para criar peças únicas. Um deles fica ali para os lados da Estrela, no atelier que Inês Telles montou no início de 2014. Antes disso, já a autora andava a apanhar os paus e pedras que lhe apareciam no caminho. Viveu no Brasil, onde a descoberta das paisagens naturais da América Latina lhe elevaram o trabalho a outro nível. Hoje, a oficina, onde também recebe clientes, é um pequeno museu, composto por esses e por outros vestígios. As referências ficam mais claras quando olhamos para as peças. São cascas de frutos, sementes, paus, pedaços de rocha, tudo meio fossilizado pela prata, esteja ela polida, oxidada ou com banho de ouro.
Há um ano e meio, Inês chamou reforços. Já tem um braço direito no atelier, exigência de um ritmo de trabalho cada vez mais influenciado pelas apresentações nos grandes salões internacionais. Agora, é esse o foco. Mesmo antes de contar com o apoio da AORP, Inês já se dava a conhecer ao mundo. Não é em vão que tem peças à venda na loja do Museu de Arte Contemporânea de Chicago. Destaca a diversidade, quando fala na presença de autores portugueses lá fora. “Tem havido muita gente nova a participar no último ano. São quase todos do norte, de Lisboa normalmente sou a única”, afirma.
Certamente, ainda não se cruzou com Tânia Gil, que, aos 37 anos, está longe de ser uma novata. Pelo menos, no que toca à joalharia. Já esteve em duas edições da Bijorhca, sempre pelo próprio pé. Ela e os seus frutos do mar, apanhados à beira-mar, em Porto Covo, onde cresceu. Quando era pequena, colecionava conchas e búzios com as irmãs. Hoje, inspira-se neles para desenhar as suas joias. Tânia começou a criar em nome próprio há 10 anos, altura em que quis experimentar tudo e mais alguma coisa e “perceber a plasticidade dos materiais”. A combinação de prata e madeira ficou até hoje como uma das suas imagens de marca. Tudo o resto são representações de folhas, conchas e sementes. Joias em estado bruto e à mão de semear. Há quatro anos, Tânia montou atelier e loja num só espaço, a poucos metros da Rua do Poço dos Negros, onde passam dezenas de turistas, todos os dias. Este ano, a joalheira volta à carga em Paris, se bem que a internacionalização começa ali, no centro de Lisboa.
Mas partir para outros mercados nem sempre é uma prioridade. Juliana Bezerra celebra cinco anos de joalharia de autor em setembro e e no início de 2015 também decidiu ter um atelier de porta aberta para a rua. Foi esse o ponto de viragem para a autora. As vendas em Lisboa, as encomendas que envia para todo o país e os mercados sazonais não dão tréguas. Em tempos, Juliana tentou crescer lá para fora, mas a volume de trabalho mostrou que absorve todo o esforço da marca. “Preciso de paz e tranquilidade para pesquisar e criar”, afirma a criadora. Na oficina, nunca houve tanto ouro, resultado da crescente procura por alianças e outras peças para noivas. Tirando isso, a prata continua a ser rainha, juntamente com os elementos da botânica. A Semente Aberta (brincos e colar) e os anéis Marias e Magrelas continuam a ser das peças mais procuradas, anos depois do lançamento. Contudo, a marca não está completamente fechada em Portugal. Através da loja online, vai vendendo pequenas quantidades para lojas de todo o mundo. O naturalismo de Juliana tem percorrido longas distâncias. As últimas encomendas seguiram para a China e para a Austrália.
A mesma estratégia tem sido adotada por Carolina Curado. O atelier cresceu, já não é dentro de casa, e a criativa conta agora com uma sócia, Fátima Reis, para gerir um negócio que cresce a olhos vistos. A complexidade das peças acompanha a curva ascendente. “O meu objetivo é chegar aos 100 anos e ser uma daquelas velhinhas agarradas às ferramentas, ainda apaixonada pela joalharia”, confessa. Os brincos de amores-perfeitos, uma das primeiras peças que desenhou, em 2012, continuam a ser dos mais procurados. Depois disso, vieram os anéis com escaravelhos, outro fenómeno de vendas. Carolina soube posicionar-se no mercado português. Associou-se a stylists e influencers e assim viu as suas peças crescerem em popularidade. Estão à venda em dez lojas, espalhadas pelo país, e ainda na Wolf & Badgers, uma plataforma internacional que serve de montra a marcas independentes de todo o mundo. Apostar em força na internacionalização não está fora dos planos. O próximo ano vai ser decisivo e Carolina põe mesmo a hipótese de se candidatar a apoios para jovens empreendedores. Se tudo correr como planeado, aos 29, ainda tem, pelo menos, 71 anos pela frente.
E se a joalharia pudesse contar histórias? E se as joias não fossem peças estáticas e pudessem ser construídas por quem as usa? Aos 31 anos, Alice Neiva decidiu fazer jus ao seu diploma da Ar.Co e voltar à bancada das ferramentas. Depois de fazer os primeiros protótipos em madeira, percebeu que, mais do que joias, estes anéis eram autênticos brinquedos para adultos. A Tundra nasceu em 2016, com silhuetas de animais do bosque. Os anéis, em latão e em aço inox, podiam ser combinados ao gosto de cada um, era tudo uma questão de imaginação. Um ano depois das primeiras peças terem aparecido, Alice lançou a segunda coleção, já neste verão. Foi só uma mudança de cenário, para encontrar silhuetas diferentes. A marca está ainda a apresentar-se a Lisboa e ao país, longe de qualquer plano de negócio elaborado ao milímetro. Alice cria, sem pressões, nem pressas para atingir resultados. Entretanto, há uma terceira coleção pronta a sair. A criadora está só à espera do melhor timing para apresentar as novas peças. Desta vez, não vêm aí anéis.
Um atelier na padaria
Desde o primeiro dia que este é um espaço dedicado à livre experimentação. De formas e de materiais. Hoje, 15 anos depois da abertura da Padaria 24, o corpo criativo está reduzido a uma dupla. Nininha Guimarães dos Santos e Inês Nunes deixaram que o nome da rua (Rua da Padaria, precisamente) inspirasse a identidade do atelier. Um atelier onde cada uma cria seguindo um estilo próprio. Há maquinaria, leve e pesada, mas a dita padaria serve também de montra para as peças aqui desenhadas e produzidas. Todas as visitas são bem-vindas. Há espaço de sobra para receber clientes e à-vontade quanto baste para deixar os mais curiosos espreitarem os meandros da joalharia contemporânea.
É aqui que design e arte se intercetam. Ao mesmo tempo que respondem a encomendas e trabalham nas suas próprias coleções, Nininha e Inês veem as suas peças em exposições de joalharia de autor, quase sempre posicionadas sobre a fronteira entre a obra de arte e o acessório de moda. Dentro do atelier, desafiam as formas mais convencionais e propõem novos materiais, como a borracha e o feltro. Tal como nas matérias-primas, também as formas estão sujeites ao livre trânsito de ideias. Da arte da joalharia, nascem outras peças, como as taças de Nininha. Joias de levar à mesa? Porque não?
Ana João, uma pronúncia do norte
É quando se ruma ao norte que o setor ganha força. É lá que se sente o peso da tradição joalheira, além de proliferarem as escolas e cursos especializados. Em 2014, Ana João decidiu investir na formação, depois do estágio numa empresa centenária lhe ter reavivado o bichinho da joalharia. Já tinha uma licenciatura em design de produto e uma experiência considerável a trabalhar com iluminação decorativa. Ainda assim, atirou-se de cabeça para um curso pós-laboral de seis meses, no CINDOR (Centro de Formação Profissional da Indústria de Ourivesaria e Relojoaria).
Quando acabou, não quis fazer mais nada. Lançou-se em nome próprio e valeu-se das velhas referências para fazer o seu trabalho destacar-se no meio de tudo o resto. E a influência das artes decorativas fez-se sentir, logo na primeira coleção. O colar Teddies foi o primeiro grande sucesso. Composto por 16 figuras em porcelana, presas a uma corrente de prata, numa mistura de materiais pouco vista na joalharia de autor portuguesa. Ana João tinha encontrado o seu estilo, à base de cor, combinações improváveis e um toque de diversão em cada peça.
“Quando desenho uma peça, dou-lhe sempre uma personagem”, conta. Com a coleção Peacock, em que brincos e anéis se assemelhavam ao leque de penas de um pavão, percebeu que as peças extravagantes eram as mais desejadas. Da porcelana partiu para o pelo e, desenhadas umas quantas joias, Ana percebeu que nas suas coleções havia lugar para outro tipo de peças. Afinal, o design de produto continuava lá e veio ao de cima quando desenhou o guarda-joias da Sweet Monster Collection, que, rapidamente, ganhou estatuto de bomboneira.
Há dois anos, Ana João mudou-se para um atelier só seu, em Matosinhos. Continua a ser a única a pôr as mãos na massa, mas fala numa contratação de um ajudante para breve. No ano passado, estreou-se em andanças internacionais. Passou por Paris e viu duas das suas peças selecionadas para o cartaz oficial da edição seguinte da Bijorhca. Atualmente, 90% do que produz é vendido fora de Portugal. Austrália, Canadá, Alemanha e Rússia são os mercados que ficam com a maior fatia. As portas para os Estados Unidos começam agora a abrir.
Os homens na joalharia
Se é verdade que, hoje, estamos perante um setor dominado por mulheres, também as exceções se destacam da joalharia mais convencional. No ano passado, o Porto assistia ao nascimento de uma nova marca. Mal apareceu, começou a dar nas vistas, não pelo facto do criador ser um homem, mas porque, na sua origem, estava um conceito sem brilhos nem género. A Fraga devolveu às joias o aspeto bruto das suas matérias-primas. Sem polimento, estas peças encontraram o seu próprio nicho de mercado, um público mais jovem, adepto do streetwear, mas que também valoriza o caráter único de um acessório de moda.
Prestes a lançar uma nova coleção, Hugo Fraga Silva conseguiu o apoio da Porto Design Factory, uma plataforma aceleradora de boas ideias. O posicionamento da marca continua a ser trabalhado, só depois é que os planos de internacionalização entram em ação. Mas antes das grandes feiras do setor, Hugo quer apontar a mira a outro tipo de divulgação. Fala em colaborações com nomes já reconhecidos lá fora e quer usar o cunho único da Fraga para atraí-los. É que além de serem desenhadas por um joalheiro, estas peças continuam a ser compradas sobretudo por homens.
No campeonato das exceções, Sebastião Lobo é um caso, no mínimo, bicudo. Não se pode dizer que virou as costas à joalharia. Simplesmente, esta deixou de ser suficiente para um criador que sempre teve alma de artista. Aos 15 anos, já produzia as primeiras peças, ainda sob o efeito daquilo a que chama “panca pela arqueologia”. Terminado o curso na António Arroio, em Lisboa, deu por ele a fazer peças grandes, complexas, caras e pouco comerciais, uma combinação pouco feliz quando se quer vingar no mercado nacional.
Movido por ambições muito mais artísticas, abraçou outras artes, a escultura e a cenografia. Hoje, aos 24 anos, está na sua praia, mas com a joalharia sempre a pairar. As joias que ainda faz são encomendas de clientes mais próximos, nas outras áreas, a utilização do latão e as peças em arame não escondem a arte que está por trás. A joalharia está lá, Sebastião só aumentou a escala.