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“Sozinha há 41 anos, tenho vindo a atravessar este silêncio ensurdecedor por parte do Governo angolano.” Ulika dos Santos, cujo primeiro nome significa precisamente “sozinha” em umbundo, interrompeu a conferência de imprensa de João Lourenço deste sábado, em Lisboa, para trazer ao de cima a memória das vítimas do 27 de Maio de 1977. “Posso ler o poema pela memória do meu pai? Tive de fugir do meu país devido ao risco de morte do meu pai”, insistiu Ulika, referindo-se a Adelino dos Santos, ex-líder da Juventude do MPLA.
Angola. “Órfã do 27 de maio” quis ler um poema, mas João Lourenço não deixou
O Presidente angolano não permitiu a leitura do poema naquele momento. Contudo, durante a conferência, referiu-se mais tarde ao tema-chave: “Houve excessos por parte do Governo naquela altura e estamos abertos ao diálogo para vermos de que forma, não obstante terem passado décadas deste triste acontecimento, podemos reparar as feridas profundas que ficaram nos corações de muitas famílias”.
João Lourenço não deixou claro que medidas está disposto a tomar para honrar as famílias das vítimas dos que foram massacrados por terem estado próximos das ideias políticas de Nito Alves (razão pela qual os membros do grupo foram apelidados de “nitistas”). Mas as suas declarações deixaram marca, ou não tivessem sido a primeira vez que um chefe de Estado angolano admitiu publicamente os “excessos” cometidos pelo regime do MPLA no que diz respeito àquele dia fatídico de 1977.
“É de facto novo que alguém com este plano de responsabilidade política se pronuncie sobre isto”, declara ao Observador o jornalista Xavier de Figueiredo, editor do Africa Monitor e especialista em Angola. “O 27 de Maio sempre foi uma ferida aberta.” Estará João Lourenço disposto a cicatrizá-la?
Uma história com mais de 30 mil mortos, tortura e campos de trabalhos forçados
Atirado ao esquecimento, o 27 de maio de há 41 anos ficou marcado por ter sido a data inicial de um processo de repressão do MPLA, à altura liderado por Agostinho Neto, contra manifestações lideradas por membros do próprio partido como Nito Alves (ex-ministro do Interior), José Van Dunem (comissário político do Estado-Maior das FAPLA) e a sua mulher Sita Valles, João Jacob Caetano (chefe do Estado-Maior das FAPLA) ou Rui de Matos Coelho (diretor do gabinete de estudos do MAI). Para o partido, tratou-se simplesmente de uma resposta a uma tentativa de golpe de Estado, através de um movimento que apelidou de “fraccionismo”. Para alguns dos sobreviventes e dos familiares das vítimas, o período que antecedeu a repressão consistiu apenas em algumas manifestações para alertar Neto das questões importantes do país, do rumo que Angola estava a tomar, e que terminaram da pior forma.
“O caldo entornou na madrugada do dia 27 de maio de 1977. No preciso instante em que, apavorado, entreabri a porta da minha casa, o mesmo aconteceu na da frente. O vizinho, amigo e meu camarada, copiava-me o gesto. Tropeçámos na cara um do outro, descobrimo-nos como que a olhar-nos ao espelho num momento de aflição. O pânico apoderara-se de nós”, recorda José Reis, um dos sobreviventes do massacre daquele dia, no seu livro de memórias Angola — O 27 de Maio, Memórias de um Sobrevivente (ed. Nova Vega), citado pelo jornal Expresso. Também ele foi preso e levado depois para um campo de trabalhos forçados. Como eles, dezenas milhares de outros foram sujeitos a prisão e tortura. Muitas das mulheres foram violadas. A grande maioria acabou morta.
Zita Seabra recorda-se bem do 27 de Maio, ou não tivesse sido por causa dele que a sua melhor amiga e companheira da União dos Estudantes Comunistas (UEC), em Portugal, acabaria morta. “Conheço mais esse dia terrível em função do que foi a vida da Sita Valles do que ponto de vista histórico”, reconhece, em conversa telefónica com o Observador. “A seguir ao 28 de setembro [data da manifestação da “maioria silenciosa”, de apoio a António Spínola], ela quis ir para Angola, dizendo que ‘a revolução em Portugal está feita, quero ir fazê-la no meu país’. Era uma revolucionária, absolutamente. Até no sentido ingénuo e naïf do termo”, recorda a antiga companheira de luta no PCP e editora da obra Sita Valles — Revolucionária, Comunista até à Morte (ed. Aletheia), de Leonor Figueiredo. “Ainda hoje me sinto muito triste quando vejo aquela foto da Sita…”, confessa, referindo-se à imagem da capa, onde a jovem de origens goesas, conhecida pela sua beleza e inteligência, está sentada em cima do seu carro Mini.
Chegada a Angola, Sita Valles acabaria por conhecer e envolver-se com José Van Dunem, membro do MPLA. Juntos têm um filho, a quem dão o nome de João, mas a quem Sita apelida informalmente de Che, em homenagem a Che Guevara. Apenas três meses depois do nascimento do filho, dá-se o 27 de Maio. Sita e Zé Van Dunem são automaticamente definidos em público pelo Presidente Agostinho Neto como alvos a abater. Após uma fuga inicial, acabam por ser apanhados no mato. O Jornal de Angola pede de imediato que sejam executados: “Contra a violência reacionária, só a violência reacionária será eficaz. E o fuzilamento não seria uma forma de punição demasiado severa”, escreve-se em editorial.
O casal acabaria por ser de facto fuzilado, como milhares de outros angolanos alegadamente envolvidos no 27 de Maio, não sem antes serem sujeitos a tortura. Não é sabido ao certo quantos terão sido mortos na sequência da repressão: os cálculos vão desde os 15 mil avançados por um ex-agente da polícia política DISA à historiadora Dalila Cabrita Mateus, até aos 80 mil estimados pela Fundação 27 de Maio. O número mais consensual é o de 30 mil, apontado pela Amnistia Internacional.
Dalila Cabrita Mateus, historiadora e autora da obra Purga em Angola (ed. Texto Editores), apontou em 2012 o caráter transversal da repressão do 27 de Maio, em entrevista à Deutsche Welle: “Nem só os participantes foram presos. Foi também detida muita gente que pouco tinha a ver com os acontecimentos. Uns porque possuíam bens que eram cobiçados. Outros porque eram amigos ou familiares dos chamados ‘fraccionistas’. Ainda outros porque tinham criticado ou manifestado o seu descontentamento com a forma como as coisas corriam. Outros porque tinham tido azar e estavam na rua. Finalmente outros porque eram intelectuais ou estudantes, grupos sociais particularmente visados”. A grande maioria dos presos foi torturada. Alguns foram enviados para campos de concentração, outros fuzilados. “Os que podem ser considerados os mais felizes são aqueles que acabam por ser libertados, ao fim de dois anos de tantas torturas e de terem passado tão mal”, refletia a historiadora.
Muitos dos sobreviventes e dos familiares das vítimas fugiram, entretanto, para Portugal. Foi o caso de Ulika, mas também dos pais de José Van Dunem, que trouxeram consigo o pequeno Che. Juntaram-se a outra das filhas, que já cá estava: Francisca Van Dunem, atual ministra da Justiça portuguesa, que acabaria por criar o sobrinho como se fosse seu filho. No ano passado, a própria admitiu ao jornal Expresso que gostaria de conhecer as circunstâncias da morte do irmão e da cunhada: “Acho que vou morrer com essa esperança”, disse. A sua ferida também continua por sarar.
Golpe de Estado ou confronto de fações internas do MPLA?
A dúvida sobre a origem da repressão, essa, mantém-se: afinal, o 27 de maio foi de facto uma tentativa de golpe de Estado falhado? “Ainda há dúvidas hoje”, reconhece Xavier de Figueiredo. “Quem provocou o 27 de maio? Houve mesmo uma tentativa de golpe de Estado ou foi uma encenação para afastar pessoas indesejáveis? Nunca se esclareceu e é um debate vivo ainda hoje entre os sobreviventes, os órfãos, etc. E o regime nunca se quis pronunciar.”
Oficialmente, o MPLA de Agostinho Neto não teve dúvidas em rotular de imediato as movimentações dos nitistas como uma tentativa de tomada do poder. Logo a 21 de maio, seis dias antes, uma resolução do Comité Central apontava já a existência do que classificou de “fraccionismo”: “Este fraccionismo, apresentando-se com uma capa aparentemente revolucionária, visa realmente dividir o MPLA e desviar consequentemente o Povo dos verdadeiros objetivos da etapa atual da luta: a Reconstrução Nacional e a Defesa da integridade territorial do País, contra o imperialismo”, pode ler-se no documento, citado pela jornalista britânica Lara Pawson, autora do livro Em Nome do Povo — O Massacre que Angola Silenciou (ed. Tinta-da-China).
Mas há quem tenha dúvidas sobre se este foi de facto um “golpe” ou se esse rótulo não terá sido antes uma estratégia dos dirigentes do partido para levar a cabo uma purga. “Há muitas versões sobre isso. E é preciso olhar para esses tempos, Angola era um regime que se considerava uma ‘ditadura democrática revolucionária’ e o sistema em vigor era o marxismo-leninismo. Os regimes de Leste recorriam muito a estes artifícios de encenar golpes de Estado para fazer ajustes de contas internos”, recorda Xavier de Figueiredo. Zita Seabra concorda: “Tenho a sensação que não foi exatamente um golpe de Estado, mas um confronto de fações dentro do MPLA em que ambas se queriam apresentar como mais próximas da URSS, da Rússia”, diz. “Dizer que do outro lado estava um golpe de Estado e não que havia um confronto de ideias é sempre a interpretação mais simples.”
Esse “confronto de fações” opôs Nito Alves, Van Dunem e outros, que defendiam uma linha mais “pura” do deveria ser o marxismo-leninismo, a Agostinho Neto, Lúcio Lara e à maioria dos dirigentes do MPLA. “Houve necessidade de alguns questionarem o rigor e a precisão da nossa corrente ideológica. O que é que iríamos seguir de facto? A esquerda comunista, o centro esquerda ou o liberalismo? E isso Neto não chegou a clarificar”, ilustrou o jornalista angolano William Tonet em 2013.
As diferentes correntes que compunham o partido estavam em ebulição e Agostinho Neto decidiu que a discussão não era, contudo, saudável: “Neto trata esta frente como um partido leninista, construído sobre o princípio do chamado centralismo-democrático, mas com muito centralismo e pouca democracia”, resumiu Dalila Cabrita Mateus. “Ele é Presidente, é o secretário-geral e é o tesoureiro. E quem não pensa como ele é dissidente ou ‘fraccionista’.”
Décadas depois, um pacto de silêncio continua a cobrir o ocorrido — e continua por clarificar-se se houve ou não tentativa de tomada do poder. “Desde o fim da guerra, em 2002, que é um assunto proibido, não se podia falar dele”, resume De Figueiredo. “É um tema muito sensível.” José Eduardo dos Santos não chegou a abordá-lo ao longo dos quase 40 anos em que esteve no poder.
Mas, ainda durante o seu reinado, surgiram algumas fissuras na narrativa oficial: o antigo primeiro-ministro angolano Lopo do Nascimento, por exemplo, chegou a admitir em entrevista ao jornal Expresso ter ainda uma “dúvida” sobre se deveria ser aberto um inquérito semelhante à Comissão da Verdade da África do Sul. “O 27 de Maio foi uma tentativa de alguns camaradas para mudar o regime, com o apoio do KGB ou de elementos do KGB em Angola”, declarou, reforçando a ideia de golpe de Estado. Contudo, não hesitou em acrescentar que “os nossos serviços de segurança aproveitaram para liquidar muitos angolanos do interior.”
Política de “descompressão” de João Lourenço pode levar a pacificação sobre o 27 de Maio
Apesar destas folgas pontuais, o manto de secretismo manteve-se bem esticado por cima do 27 de Maio. “Arrumava-se com a ideia de ‘era um golpe de Estado e pronto’ e dizia-se que não era ‘oportuno’ falar nisso. Foi sempre escondido, foi sempre posto uma pedra em cima do assunto”, declara Zita Seabra. “Acho que as pessoas têm direito a saber o que aconteceu, como eles foram mortos. Não se consegue viver pacificado enquanto não se sabe.”
Os familiares sofrem por não terem podido dar um enterro digno aos seus pais, irmãos, tios. E, atualmente, há viúvas sem certidões de óbito e filhos sem o nome do pai no Bilhete de Identidade (BI), como recordou o sobrevivente José Reis à DW. “Nunca houve uma aproximação, nunca houve um encontro entre a direção do MPLA com os sobreviventes do 27 de Maio para passar em revista o que aconteceu e para ultrapassarmos os traumas que ainda existem”, lamenta-se o general Silva Mateus, presidente da Fundação 27 de Maio.
Com a chegada ao poder de João Lourenço — cuja mulher, Ana Lourenço, também esteve detida após o 27 de Maio (embora tenha sido reabilitada politicamente entretanto) —, alguns sectores da sociedade civil começaram a tentar trazer o tema ao de cima, esperançados pela mudança de rosto no MPLA. No aniversário dos 40 anos do massacre, um abaixo-assinado de órfãos do 27 de Maio pediu a constituição de uma lista oficial das vítimas, a restituição das ossadas às famílias, emissão de certidões de óbito e reconhecimentos nos BIs, bem como a inauguração de um memorial de homenagem às vítimas. O primeiro a assinar foi Che — João Ernesto Valles Van Dunem, filho de Zé Van Dunem e Sita Valles.
Ainda antes das declarações de João Lourenço este sábado, Luanda deu tímidos sinais de que pode estar disposto a encarar de frente esta mancha no passado do MPLA. A 18 de novembro, o ministro da Justiça, Francisco Queiroz, admitiu que “houve execuções e prisões arbitrárias” na sequência do 27 de Maio. “Tudo isso está um pouco esquecido, mas precisamos lembrar para que não volte a acontecer”, declarou. Este sábado, o Jornal de Angola — o mesmo que, há 40 anos, pediu o fuzilamento de Nito Alves e Van Dunem —, escreveu que as declarações de Queiroz “precisam de ser levadas adiante” e que “o mais importante agora tem a ver com a assunção de responsabilidades para que nos certifiquemos de que nunca mais volte a ocorrer tragédia do género”.
Para Xavier de Figueiredo, tudo isto são sinais de que Lourenço poderá estar disposto a levar a cabo uma mudança no que diz respeito ao 27 de Maio. “João Lourenço tem uma política de descompressão social, até em questões de sangue como estas”, diz, referindo-se não só ao 27 de maio, até aqui “olimpicamente ignorado”, mas também à restituição das ossadas do general “Ben Ben”, ligado à UNITA, à família — ordenada pelo Presidente angolano em setembro.
“A oposição que Lourenço enfrenta agora é interna, vem do próprio MPLA e daqueles que não aprovam as opções políticas dele, nomeadamente o combate à corrupção”, analisa o jornalista. “Ele talvez precise de compensar a perda desses apoios internos com outros apoios na sociedade — e o 27 de Maio é um tema muito complicado, com particular importância, que o ajuda a alargar a sua base de apoio a outros setores da sociedade.”
Zita Seabra, por seu turno, não está tão certa: “Discursos bonitos todos fazem, mas as mudanças veem-se nos factos”, sentencia. “Já se passaram duas gerações, a presidência já não é a da geração a seguir a Agostinho Neto. Não está pacificado, mas não há razão para isso — ou melhor, há uma: o partido que está no poder é o mesmo.”
Contudo, a amiga de Sita Valles não tem dúvidas de que, se Lourenço tiver a coragem de enfrentar os fantasmas do passado do MPLA e se aceder a alguns dos pedidos dos familiares das vítimas, será dado um passo muito importante: “As vítimas nunca têm nome, nunca têm estátuas, nunca têm passado. Reconhecer o passado é sempre um sinal importante.” Não apenas para os familiares dos que morreram no 27 de Maio, mas para toda a sociedade angolana.