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Entrevista a João Mota, ator, encenador, professor e teatrólogo português. Foi diretor do Teatro Nacional D. Maria II, fundador e director da companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa e presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Hoje com 79 anos volta a subir ao palco, no Teatro Comuna, para encenar na peça "A Casa da Bernarda Alba", que estreará no próximo dia 22 de Setembro de 2022. 19 de Setembro de 2022 Companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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Com o ator e encenador construímos um diálogo que se estende num pingue-pongue gigantesco que a tudo toca, num corrupio de emoções, de avanços e recuos, de vida e de teatro que não é senão a vida

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Com o ator e encenador construímos um diálogo que se estende num pingue-pongue gigantesco que a tudo toca, num corrupio de emoções, de avanços e recuos, de vida e de teatro que não é senão a vida

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

João Mota: "No teatro não há classe. Não sei se quem está ao meu lado é um operário ou se é o filho de um ministro"

Quase aos 80 de vida e o regresso ao teatro como ator. Com sabedoria e lucidez implacáveis, fala de desilusões e de conquistas, do medo que ainda sente do palco e de como não lhe consegue fugir.

João Mota não é um homem qualquer. O talento de ator, a consciência interventiva, a noção da realidade, o amor à poesia, a capacidade de análise, o conhecimento do mundo, a reflexão sobre o outro, a espiritualidade humana, a dádiva de si à comunidade, a destreza pedagoga, a mestria na encenação, a vida que guardou e partilhou fazem dele uma figura de exceção na sociedade portuguesa. Foi daqueles que preferiu trabalhar em casa, a ganhar o sucesso lá fora. Daqueles que deu tudo o que sabia e sabia muito e deu-o a muita gente. Ali, na esquina da Praça de Espanha, em Lisboa, fez de tudo e lutou. Quase a completar 80 anos, no próximo dia 22 de outubro, falámos longamente com ele. Ouvimo-lo respirar e quase não pestanejámos. Vimo-lo olhar e seguimos-lhe a direção.

Tínhamos marcado encontro para as 11 da manhã em sua casa e assim foi. À nossa espera, abriu a porta para um jardim de recordações, pontuado pelos dois gatos, irmãos de nascença, e pelas muitas viagens por esse mundo fora. A conversa não demorou a acontecer, o sol batia forte, para se esconder mais tarde atrás do toldo. Recuamos um ano.

Em 2021 anunciou o fim da sua carreira de ator com “Freud e o Visitante”. Nunca chegou a fazer a peça. Desmaiou nos ensaios e deu entrada no hospital com um cancro. Foi operado. Agora, regressa ao palco no papel de Bernarda, a mãe tirana que Federico García Lorca criou em 1936 para falar da condição feminina em “A Casa de Bernarda Alba”, a terceira peça de uma trilogia que contava já com “Yerma” e “Bodas de Sangue”. Sim, veste a pele de uma mulher, mãe de cinco filhas, a quem o marido morre, ficando ela com o governo da casa e com o poder de mandar. Decreta um luto de oito anos e proíbe as filhas de saírem de casa. Pepe Romano, um rapaz de 25 anos, que nunca vemos, vai, no entanto, instalar o conflito. Todas o querem e nenhuma o terá, mas a tensão vai ser cada vez maior até a tragédia acontecer. Peça sobre o machismo também, põe em destaque as relações humanas e confronta-nos com a crueldade do ódio e os excessos do amor. E diz-nos como se escreve transgressão.

No palco, com João Mota vão estar mais sete atores, João Grosso, Carlos Paulo, Francisco Pereira de Almeida, Miguel Sermão, Rogério Vale, Luís Garcia e Gonçalo Botelho. Homens no papel de mulheres para experimentarem as asperezas que estas vêm sofrendo ao longo dos tempos. “Um texto poético que fala sobre a mulher, o ódio e o amor. Aquelas irmãs odeiam-se todas e amam-se todos, por causa de uma pessoa que está ausente e que é um homem”, conta o grande encenador de A Comuna – Teatro de Pesquisa, que não vê incongruência nenhuma no facto de serem homens a interpretar as mulheres de Lorca. “Qualquer pessoa que lê um livro, seja homem ou mulher, lê todas as falas, as masculinas e as femininas, é a personagem.” Mas não é mais difícil? “Sim. É mais difícil a própria linguagem e divorciarmo-nos um pouco do ser homem. A Paula Rego tem aquelas pinturas espantosas em que há homens vestidos de mulher. Nós aqui vamos vestidos de homens. Mas, o texto e a poesia têm tanta força que são personagens. São personagens ao lado daquelas cinco mulheres, a mais velha com 39 e a mais nova com 20 anos, todas loucas atrás do mesmo homem, o ausente, como lhe chamo. A isto acresce um certo lazer da Andaluzia de Lorca, do calor e do sexo. O calor e a languidez levam-nos para outro mundo. O encenador, Hugo Franco, também pensou assim. Mas eu aí não me meto. Tenho que interpretar.”

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Entrevista a João Mota, ator, encenador, professor e teatrólogo português. Foi diretor do Teatro Nacional D. Maria II, fundador e director da companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa e presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Hoje com 79 anos volta a subir ao palco, no Teatro Comuna, para encenar na peça "A Casa da Bernarda Alba", que estreará no próximo dia 22 de Setembro de 2022. 19 de Setembro de 2022 Companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Nada nos garante nada. Esse é o valor absoluto para mim. É termos a coragem de enfrentar, sabendo o que passámos, o que passamos, o que somos, e projetar o futuro"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

E sim, escusa-se a intrometer-se no trabalho que tantas vezes foi seu, o de encenador. E é como ator que reage. Nesse papel que o fez passar por tantos encenadores. Recorda, recorda palcos dirigidos por todos: Amélia Rey Colaço, Ribeirinho, Palmira Bastos…, só para dizer de onde vem. “Por estrangeiros também passei, muitos, alguns bastante bons.” E, nesse mundo de outro século continua a falar-nos. Indagamos então: O teatro da Amélia Rey Colaço, do Ribeirinho não tem nada a ver com o teatro de hoje, ou há pontes entre eles? “Tenho consciência que a Amélia Rey Colaço quando leva a filha para fazer a primeira peça no Teatro Nacional D. Maria II vai buscar o Ribeirinho para a encenar, porque ele era considerado, e ainda hoje o considero, um mestre. Mesmo naquela época há encenadores diferentes, os que viajavam mais, os que conheciam novas técnicas. O teatro não é estático. Não é um museu, e o próprio museu já não é estático. Quando se vai a um concerto a mesma coisa. Dantes íamos ao Éden, ao Politeama, depois ao Pavilhão dos Desportos, agora a estádios de futebol. O próprio espaço alterou-se. Já viu quantos países, em 50 anos, se refizeram e se desfizeram? Ora com certeza que o homem tem que avançar. Tem que estar disponível e atento, que é uma coisa que as pessoas não estão, não estão muito atentas e nada disponíveis.”

E eis o mote para o dia e para os dias seguintes à conversa, de manhã em sua casa, à tarde no teatro d’A Comuna, depois de assistirmos a um ensaio corrido de “A Casa de Bernarda Alba”. O mote para uma viagem à civilização e à condição humana, pela Europa, pelo mundo, em Portugal. Viagem com apeadeiros na política, na religião, no ensino, na economia, com o teatro sempre como pano de fundo, a traçar o percurso que a conversa mandou e que diz respeito ao que é preciso para que o mundo avance e o homem com ele. E por ele, João Mota, passaram também Brecht, Shakespeare, Pinter, Tennessee Williams, Natália Correia, Bernardo Santareno, Gil Vicente, todos e mais alguns, em 60 e muitos anos de trabalho, de palco e de escola, de escola e de palco.

“Nada nos garante nada. Esse é o valor absoluto para mim. É termos a coragem de enfrentar, sabendo o que passámos, o que passamos, o que somos, e projetar o futuro. Mas projetar o futuro não para daqui a 50 anos como faziam os antigos. Se calhar para daqui a um ano. E se calhar para daqui a um ano já é muito. Estou a falar da Europa, não estou a falar do nosso país. Dantes falávamos muito no nosso país. Ah! Está muito mal e tal… Quem é que está bem? A própria Rússia está bem? A China está bem? O homem também nunca esteve bem até hoje. Isso é que nos faz viver. Através da coragem, projetar para o dia seguinte. Porque se formos à história – Guerra dos Cem Anos – perdemos a cabeça. Espanha eram condados, França a mesma coisa. O primeiro país da Europa a ter fronteiras foi Portugal. Nós tivemos que passar os mouros todos, mas eles já disseram que querem o Algarve e o Alentejo de volta.” O pensamento voa-lhe nas palavras e vai de raciocínio em raciocínio. Olha para tudo, tudo de forma muito dinâmica. “Sempre.”

"Depois do caos há luz, para haver luz tem que haver coisas a avançarem já. Cuidado, porque se não avançamos devagarinho e com calma, e com essa sapiência interior, não exterior, mais ou menos camisolas, mais bonito, mais telemóvel de última moda… Vivemos do supérfluo, vivemos da mediocridade. A mediocridade começa no abismo que há agora entre os novos e os velhos."

“Tem que se estar é acordado. As pessoas estão muito pouco acordadas.” Porquê? “Há um problema de educação quase em todo o mundo. Todos os ministérios da Educação estão com problemas de professores. Não é o professor ganhar mais ou ganhar menos, haver mais ou menos professores, não. É a qualidade do ensino. Os professores também têm filhos, também têm mulheres, também têm maridos, também têm a sua vida. Como organizar este puzzle? Antigamente o homem é que era o professor, hoje a grande maioria são as mulheres. Deslocam-nas de sítio para sítio. E a família? Além disso, uma escola devia manter os mesmos professores durante bastante tempo. Assim é que se cria grupos, assim é que se cria futuros. Não é mudando de dois em dois anos. Como os teatros. Com os teatros aconteceu isso. Não há companhias. Nem no Teatro Nacional. No tempo da Amélia Rey Colaço éramos 40. Aqui na Comuna só já temos dois, três elementos. Os outros são todos contratados. Não há dinheiro.”

Foi professor durante 35 anos na Escola Superior de Teatro e Cinema, fez mestrados em Teatro e Educação, deu aulas na Fundação Gulbenkian e no próprio Teatro A Comuna. “Fui professor quase deles todos. Desde a Alexandra ao Diogo Infante, todos eles.”

“Antigamente ser professor era uma devoção. Eles zangavam-se comigo quando eu dizia isso. É o teu lado religioso. Não. Se é para ganhar mais um ordenado, para ter emprego, não vão para professores. Na I República chamava-se Ministério da Instrução, a educação davam os pais. Depois é que passa a Ministério da Educação, em que a educação também tem que ser dada pelos professores. Então e os pais?” Há uma demissão dos pais?, perguntamos. “Da sociedade”, responde. “Por isso é que é difícil estarmos acordados. Mais vale não estarmos acordados. Tapamos remendos com remendos e vamos avançando, ganhando mais ou menos, fazendo uns biscates aqui, outros ali, somos maus pais, somos maus maridos, somos maus profissionais, somos más pessoas, e não contribuímos para nada de avanço da sociedade.”

Este é o retrato que João Mota faz da sociedade. É uma desilusão? “Não. Tudo é assim. Tem que acontecer o caos outra vez para haver luz. Caminhamos exatamente para o final desse caos.” Se calhar é melhor caminharmos ainda mais depressa para que a luz chegue, reiteramos. “Não, porque caminhar depressa é forma de suicídio. Depois do caos há luz, para haver luz tem que haver coisas a avançarem já. Cuidado, porque se não avançamos devagarinho e com calma, e com essa sapiência interior, não exterior, mais ou menos camisolas, mais bonito, mais telemóvel de última moda… Vivemos do supérfluo, vivemos da mediocridade. A mediocridade começa no abismo que há agora entre os novos e os velhos. No meu tempo, os velhos eram os saberes adquiridos por quem não tínhamos apenas respeito, com quem aprendíamos também. Hoje há o não querer aprender com o mais velho. E todos querem ser originais. Esquecem-se que estão a fazer coisas que foram feitas há 20, 30, 40 anos, algumas no tempo dos gregos. Porque a ignorância é total neste momento.”

E o diálogo estende-se num pingue-pongue gigantesco que a tudo toca, num corrupio de emoções, de avanços e recuos, de vida e de teatro que não é senão a vida. A tarde, na Comuna, confunde-se com a manhã, na casa de João Mota, as personagens que interpretou com as que encenou, as reais com as fictícias e são afinal a mesma.

Entrevista a João Mota, ator, encenador, professor e teatrólogo português. Foi diretor do Teatro Nacional D. Maria II, fundador e director da companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa e presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Hoje com 79 anos volta a subir ao palco, no Teatro Comuna, para encenar na peça "A Casa da Bernarda Alba", que estreará no próximo dia 22 de Setembro de 2022. 19 de Setembro de 2022 Companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista a João Mota, ator, encenador, professor e teatrólogo português. Foi diretor do Teatro Nacional D. Maria II, fundador e director da companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa e presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Hoje com 79 anos volta a subir ao palco, no Teatro Comuna, para encenar na peça "A Casa da Bernarda Alba", que estreará no próximo dia 22 de Setembro de 2022. 19 de Setembro de 2022 Companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista a João Mota, ator, encenador, professor e teatrólogo português. Foi diretor do Teatro Nacional D. Maria II, fundador e director da companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa e presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Hoje com 79 anos volta a subir ao palco, no Teatro Comuna, para encenar na peça "A Casa da Bernarda Alba", que estreará no próximo dia 22 de Setembro de 2022. 19 de Setembro de 2022 Companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista a João Mota, ator, encenador, professor e teatrólogo português. Foi diretor do Teatro Nacional D. Maria II, fundador e director da companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa e presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Hoje com 79 anos volta a subir ao palco, no Teatro Comuna, para encenar na peça "A Casa da Bernarda Alba", que estreará no próximo dia 22 de Setembro de 2022. 19 de Setembro de 2022 Companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

João Mota regressa ao palco no papel de Bernarda, a mãe tirana que Federico García Lorca criou em 1936 para falar da condição feminina em “A Casa de Bernarda Alba”

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Diz que neste momento a ignorância é total. Mas o que é que aconteceu para ser assim?
As máquinas. O telemóvel só é necessário quando é necessário. Eu tenho professores e alunos que acaba um bocadinho o ensaio e já estão a olhar para o telemóvel. Vivem para aquilo e daquilo. Alguma coisa está errada. Noutro dia fui a casa de uns professores da Escola Moderna, e um dos filhos estava de chapéu à mesa a almoçar, eram dois e a dado momento começaram a atirar a bola de um para o outro durante o almoço. Os pais não disseram nada. Namorar, ele está com o telemóvel e ela com o computador na mesma mesa. E o olhar? E o ver? E o estar? E a capacidade de penetrarmos no interior do outro? O lado invisível. Mas não sou contra esta época, é a época em vivo e em que gosto de lutar. Outras épocas virão, melhores, sempre.

Tem esperança?
Sempre. Mal de mim. Senão já o homem tinha acabado há dois mil anos. É que as pessoas esquecem-se do passado. É porque estuda-se pouco, investiga-se pouco sobre de onde vimos, como éramos, como estamos. A televisão é muito uma lavagem ao cérebro. Veja as pessoas a discutirem, ou discutem futebol ou telenovelas.

O teatro dá-nos esta outra visão das coisas que o João Mota apresenta aqui?
Devia dar. Devia tentar dar. Eu tento. É o verbo mais difícil. E uma lição sobre ele foi-me dada pelo Peter Brook [o grande encenador inglês falecido em julho] e pelo Arquimedes Silva Santos [pedagogo]. Eu vinha da Guerra Colonial quando fui trabalhar com o Peter Brook [em 1970, em Paris, no Centro Internacional de Pesquisa Teatral], tinha feito um curso com o Gutkin [ator e encenador argentino], mas ainda ia muito verde, os meus colegas eram todos já formados por escolas, escolas americanas, polacas, inglesas, francesas. Eu ia com o pouco que sabia. Dizia muitas vezes: eu não sou capaz. ‘Il faut essayer João’, é preciso tentar. Na Escola Superior de Teatro e Cinema como professor esteve dez anos o Arquimedes Silva Santos e naquelas reuniões do Conselho Científico eu tinha muitas ideias e dizia-me ele: ‘não basta ter ideias, tem que tentar pô-las em prática. Se não as põe em prática não sabe para que é que serviu a ideia’. Eu sou da época em que era proibido errar na escola e em casa. Mas se não for através do erro, nós não podemos crescer.”

É aquela máxima de Beckett: “Try again. Fail again. Fail better.”
Tenho medo das pessoas que sabem tudo. Outra das coisas que aprendi também com o Peter Brook, logo na primeira reunião. Éramos 12, cada um vinha de um país, e ele disse-nos que queria que não nos imitássemos uns aos outros, que cada um não perdesse a sua origem, aquilo que tinha dentro de si, que era a sua identidade e do seu povo e da sua raiz.

O Peter Brook marcou-o profundamente. Esteve quase dois anos com ele.
Primeiro em França, depois fomos para a Pérsia três meses.

"Meteram-me num barco e mandaram-me para Angola. Estive em sítios tremendos. Vi morrer ao meu lado 12 colegas. Fora aqueles que vi matar de uma maneira errada. A guerra despertou em mim uma coisa. O teatro não faz revoluções. Com o teatro não vamos lá. O teatro pode ajudar a fazer revoluções, mas não faz a mudança de um regime, nem acaba com uma guerra. Eu tinha a mania que o teatro conseguia tudo."

Como é que descobriu o teatro?
A minha irmã, Teresa Mota, era mais velha do que eu dois anos [morreu em janeiro deste ano]. Não havia televisão e a Emissora Nacional lança um concurso para novos jovens atores para o programa infantil. E a minha irmã, com dez anos, eu com oito, escreve dois bilhetes postais, um em nome dela e outro em meu nome sem me dizer nada. Vamos para provas, ela ficou logo, a minha irmã era espantosa, eu fiquei, mas tinha a voz muito grossa, então tive que esperar dois anos para entrar no primeiro programa. Na história dos “Cinco Salvam o Tio” comecei por fazer o irmão mais novo, que era o David, e acabei por fazer o mais velho, que era o Artur. Nessa altura, o Rui Ferrão é convidado para realizar a primeira peça da televisão, “O Mar”, de Miguel Torga, com a Germana Tânger, Catarina Avelar, os outros já morreram todos. E o Rui Ferrão, como eu estava nos programas infantis com ele, convida-me, entrei na peça, já tinha o bichinho, vinha comigo da rádio, ficou-me o bichinho de trabalhar com os outros mais velhos de outra maneira. Dizia muitos poemas. Um dia o Pedro Ramos está no Rádio Graça, e eu digo um poema, já não me lembro qual, e ele ouviu. A Amélia Rey Colaço andava para estrear “O Processo de Jesus”, [de Diego Fabbri]. Faltava um individuo para fazer o cego, já tinha experimentado dois. Entravam 28 atores nessa peça. E o Pedro Ramos disse-lhe: ‘Porque é que não convida o Joãozinho, o irmão da Teresa?’ Ela chama-me e eu fiquei. Depois mais tarde, dentro da própria peça, mudei de personagem, passei a fazer o filho pródigo. Fiz “O Lugre”, de Bernardo Santareno. Tinha 15 anos. Fiquei lá até ir para a Guerra Colonial em 1966. Já levava três anos de cá. E quando me apresentei em Estremoz, pensava que me ia embora, já com três anos. Não. Meteram-me num barco e mandaram-me para Angola. Estive em sítios tremendos. Vi morrer ao meu lado 12 colegas. Fora aqueles que vi matar de uma maneira errada. A guerra despertou em mim uma coisa. O teatro não faz revoluções. Com o teatro não vamos lá. O teatro pode ajudar a fazer revoluções, mas não faz a mudança de um regime, nem acaba com uma guerra. Eu tinha a mania que o teatro conseguia tudo.

E depois?
Depois apanhei o Maio de 68. Em que se põe tudo em causa. Mudou a Europa toda. Ao mudar França, tudo mudou com o Maio de 68. Teve uma importância muito grande, como o movimento surrealista, o Dadaísmo, esses movimentos tiveram uma força muito grande até para que acontecessem as coisas que estão a acontecer hoje. As coisas não acontecem por acaso. É como um novelo de lã.

Não quis ficar em Paris, em 1972.
O Peter Brook perguntou-me se eu queria ficar. Eu disse que não, que queria voltar, que havia muita coisa para fazer e para mudar em Portugal. Em Portugal ainda não se sabia o que era uma improvisação, não se sabia o que era procurar. Eram clichés, imitávamos e não descobríamos o potencial que cada um tem dentro de si próprio. É difícil de explicar, mas é tornar visível o invisível. Embora o Fernando Pessoa também vá muito por esse lado. O deixarmo-nos perder, o saber ouvir. É uma coisa a que as pessoas não estão habituadas. O silêncio. A concentração. Sem estas coisas todas não se pode fazer teatro, nem se pode fazer nada na vida. O problema da respiração, tive grandes mestres da respiração do Teatro Nô e do Teatro Kabuki. Essas técnicas não existiam em Portugal. Em Inglaterra já se falava nisso, em França também. Em Portugal não. Bastava ter a 4ª classe para ir para o Conservatório. O Veiga Simão é que faz a reforma do Ensino Artístico e passa a entrar na Escola Superior de Teatro e Cinema só quem tem o 7º ano da altura, hoje o 12º ano. Fui o primeiro professor convidado para essa reforma. Isso foi como o voltar agora ao teatro, neste preciso momento: um grande prazer e uma ansiedade ao mesmo tempo muito grande e um temor também muito grande. Isso passou-se então e está-me a acontecer agora. Há um querer fazer, mas há um temor, há um medo. Faz-me lembrar o primeiro dia de aulas.

Há quem diga que esse temor nunca passa.
Quanto mais velho se é, pior. Mas eu representar, já não represento pelo menos há 20 anos. Encenar é uma coisa, representar é outra. É que o ator tem que ser muito justo na palavra, muito preciso, muito rigoroso. E a sua ligação ao espaço e ao outro e ao outro que é o público vai-se perdendo enquanto encenador. A palavra diz muito. As pessoas é que estudam muito pouco a palavra. Depois o acaso também existe. Mas só existe o acaso para quem procurou o acaso. Como só tem sorte quem procura a sorte. As coisas não nascem do céu. Ah, ele teve muita sorte. Com certeza que trabalhou muito para ter sorte. Qualquer que seja a pessoa. O acaso acontece porque estamos acordados. O sexto sentido existe. Mas esquecemos tudo isso. Vamo-nos fechando, fechando.

Entrevista a João Mota, ator, encenador, professor e teatrólogo português. Foi diretor do Teatro Nacional D. Maria II, fundador e director da companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa e presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Hoje com 79 anos volta a subir ao palco, no Teatro Comuna, para encenar na peça "A Casa da Bernarda Alba", que estreará no próximo dia 22 de Setembro de 2022. 19 de Setembro de 2022 Companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Para fazer viagens interiores, que são viagens, temos que nos habituar a viajar fora do cantinho que conhecemos.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

As produções nacionais, televisivas, tanto de telenovelas como de filmes, ajudaram o teatro português?
A telenovela só ajuda quem convida para atores de telenovela. Há companhias que só vivem disso. Quem tem êxito numa telenovela, muda logo para um grupo. As pessoas vão ver aquele que veem na televisão. Os atores deixaram de ter nome. Passam a ter o nome da personagem. As pessoas sabem o namorado e a namorada que tiveram, os cãezinhos que tiveram… Nós éramos muito mais cultos do que esta geração. Até por estarmos fechados.

Havia mais vontade, mais curiosidade?
Mandávamos vir livros de França ou de Inglaterra. Em Portugal era tudo proibido, não havia sequer traduções. Depois o viajar. Para fazer viagens interiores, que são viagens, temos que nos habituar a viajar fora do cantinho que conhecemos. As pessoas moram num bairro e vão sempre ao mesmo restaurante, porque são conhecidas e bem tratadas naquele restaurante. Tenham a coragem de ir a outro restaurante.

Sair da zona de conforto.
Claro.

As pessoas estão muito acomodadas.
Vamo-nos acomodando. Mas há uma geração que não se vai acomodando, felizmente. Até agora, no funeral da Rainha Isabel II, houve quem gritasse “Viva a República”. As coisas não são tão fáceis como parecem. Os estudantes têm que pagar as propinas. Os doentes têm que pagar para ir ao hospital. Não há nada de graça para ninguém. Ouvi um partido anunciar isso. E teve muitos votos, quem votou nele também foram os jovens.

Já lhe chamaram anarquista.
Não. O ser anarquista é balda e eu sou contra a balda. Sou a favor da assembleia, mas nunca tive partido até hoje, espero morrer sem ter partido, não sou maçon, nem opus dei. Gostava de morrer livre e gosto da vida dentro dessa liberdade. Sendo a liberdade uma grande responsabilidade individual. Se não tivermos essa responsabilidade individual é a anarquia, cuidado. Não é a balda. Não é cada um faz o que quer. Ser livre é uma responsabilidade muito grande. Totalmente livre. As pessoas dizem que são democratas. É democrata com a sua mulher, com o seu marido, com o seu filho, com o seu empregado, na sua rua, com a pessoa que lhe arruma o carro? Não há um que o seja com todos. É mentira. E a mentira vem qualquer dia como valor absoluto. Temos que lutar contra isso. Uma das formas é fazendo teatro, fazendo grupos, dando aulas aos mais novos também, vivendo de outra maneira na sociedade. Dei aulas na Gulbenkian quase 18 anos, dava aulas a professores, ao mesmo tempo que dava aulas na Escola Superior de Teatro e Cinema e que dava aulas na Comuna. Nunca faltei a lado nenhum. O sentido da responsabilidade. Quando fui diretor do teatro Nacional D. Maria II já estava reformado do Conservatório.

"Não há política cultural. Fui mandado embora do Teatro Nacional por causa disso. Disse que não havia política cultural. Para falarmos de política cultural temos que falar de cinema, falar de teatro, de música, temos que falar de pintura, temos que falar da dança. Onde é que está isso? Não há unidade"

Como é que foi essa experiência na direção artística do Teatro Nacional que começou em 2011 e durou três anos?
Foi bastante boa. São 80 pessoas que trabalham lá e essas 80 pessoas têm saudades do meu tempo, tanto os atores, como o pessoal menor, como o homem da portaria. A primeira coisa que há a fazer é formar grupo, formar família. Se não vai por aí… O Agostinho da Silva dizia-me sempre que era preciso ter cuidado com o ser pedagogo e o ser demagogo. Você pode ser considerado pelos alunos o melhor professor, muito bonzinho e tal, mas passado cinco anos não se lembram de nada do que lhes ensinou. Se for pedagogo não vão gostar nada de si, mas passado cinco anos vão dizer que o bom professor que tiveram foi você. É porque é mais fácil criar amiguismos. Nós agora vivemos politicamente de amiguismos, lóbis, então o lóbi gay manda em tudo. Como deve calcular, eu não sou contra os gays. Mas há um lóbi gay que manda em tudo. Para quê? Para ter um lugar no ministério, um lugar no teatro. Então não é pela qualidade? Antigamente era as mulheres, era preciso preencher a quota das mulheres. Nós andamos é a brincar com as mulheres há muitos anos. A [Maria de Lurdes] Pintassilgo, de quem fiz a campanha, foi das mulheres mais extraordinárias que conheci. Obrigava-nos a pensar. As pessoas não gostam que as obriguem a pensar. E ela vinha de outro regime. É maravilhoso. O Sá Carneiro, a coragem que aquele homem teve de pegar na Snu [Abecassis] e ir com ela para os sítios onde foi no estrangeiro, “ou aceitam que vá com ela ou então não vou”. Por isso é que o falar de esquerda e de direita por vezes é muito difícil. O Lucas Pires foi um homem extraordinário, apanhei-o como secretário de Estado da Cultura, o Veiga Simão foi ministro do Marcelo Caetano e veio a criar a reforma do ensino artístico, foi ele que me convidou e à Madalena Perdigão para vir para Portugal. As pessoas devem servir pela qualidade e não pela cor. As pessoas falam demais.

As pessoas têm medo do silêncio?
Nem sabem o que é isso. Eu, aos meus alunos, um dos exercícios que mando fazer é conseguirem fazer três minutos de silêncio por dia para virem a ser pessoas extraordinárias. É preciso deixar que a outra voz venha. Esse lado existe. Depois fazemos viagens extraordinárias. Eu viajo imenso, mas habituei-me quando era miúdo.

Era um miúdo solitário?
Em casa havia 20 empregadas da minha mãe, que era modista, havia as aprendizes todas. Havia a minha tia, a minha tia tomava conta das aprendizes da costura, a minha avó fazia a comida e tomava conta de mim e da minha irmã, a minha mãe provava os fatos, os vestidos das freguesas e cortava-os. Eu ficava muitas vezes sozinho. Lembro-me que havia lá uma arca num hallzito qualquer, ficava ali três horas sentado, sozinho. O que eu viajava, nunca mais me esqueci disso. E quando estou muito em baixo é para lá que fujo.

Então o silêncio acompanhou-o sempre.
Sempre. Até na guerra. Bastante mesmo, na guerra mesmo muito. E a leitura. Então a poesia leva-nos a grandes viagens interiores. A poesia é muito precisa, aquela palavra tem que ser muito justa e depois em poucas palavras o que eles dizem. É maravilhoso. Com a Sophia farto-me de viajar. Com o Herberto Helder, com o Ramos Rosa, com eles todos, não é preciso estar a enumerar. No meu tempo, na escola, líamos poesia, líamos teatro, líamos as histórias, éramos obrigados a ler alto. Bendita obrigação! Ser obrigado muitas vezes faz falta.

Pode ser mal interpretado.
Ora. Eu sei que quando íamos ao cinema ver os Fellinis e os Antonionis, a gente conhecia os realizadores todos, saíamos e vínhamos a conversar até casa sobre o filme que tínhamos visto e ficávamos até às duas ou três da manhã a inventar coisas a partir do filme que tínhamos visto, era maravilhoso. Hoje discute-se o quê? Fala-se de quê? Não era por obrigação que fazíamos isso. Às vezes se obrigassem os meninos a não usar o telemóvel… Eu gostava de voltar a esse tempo, ao tempo da pessoa perceber que não precisa do telemóvel. Eu não preciso. Só quando preciso de telefonar ou de receber uma chamada.

Entrevista a João Mota, ator, encenador, professor e teatrólogo português. Foi diretor do Teatro Nacional D. Maria II, fundador e director da companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa e presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Hoje com 79 anos volta a subir ao palco, no Teatro Comuna, para encenar na peça "A Casa da Bernarda Alba", que estreará no próximo dia 22 de Setembro de 2022. 19 de Setembro de 2022 Companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Há uns jovens espantosos. Curiosos no bom sentido da palavra, de querer saber, até de se agarrarem aos mais velhos para saber saberes adquiridos por eles, querem viajar, ir ao estrangeiro"x

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Os jovens hoje têm menos curiosidade?
Não. A curiosidade é a outro nível. Há uns jovens espantosos. Curiosos no bom sentido da palavra, de querer saber, até de se agarrarem aos mais velhos para saber saberes adquiridos por eles, querem viajar, ir ao estrangeiro. Agora, alguns vão de viagem para conhecer meninas e as meninas os rapazes. Só para isso. Eu quando vou a França tenho que ir ver o Louvre, tenho que ir ao Palais Royal, quando vou a Espanha tenho que ir ao Prado, a Alemanha a mesma coisa. Se não vou conhecer a História, o que é que andei a fazer, podia ter ido à Amadora. A descoberta é maravilhosa. Por isso, a curiosidade é a da grande descoberta, não é a de saber quantos golos leva o Ronaldo a mais do que o Messi. Isso ajuda a quê? Cuidado com a curiosidade.

Porque é que quando fundou A Comuna lhe acrescentou Teatro de Pesquisa?
Vinha do Centro Internacional de Pesquisa Teatral. Quis pôr pesquisa para saberem que vamos para outro sítio, que não vamos ficar no mesmo sítio. Pesquisa significa molhar os pés, só A Comuna era mais um teatro. Não. E hoje ainda continuamos a pesquisar. Às vezes, outras vezes menos, porque os subsídios são tão curtos que não temos tempo de aprofundar até onde gostaríamos.

A política cultural em Portugal continua incipiente?
Não. Não há política cultural. Fui mandado embora do Teatro Nacional por causa disso. Disse que não havia política cultural. O Salazar teve o António Ferro que fez uma política cultural. Podemos ou não gostar. Para falarmos de política cultural temos que falar de cinema, falar de teatro, de música, temos que falar de pintura, temos que falar da dança. Onde é que está isso? Não há unidade. Tem que haver um diretor para cada sector. Depois tem que haver um ministério com um ministro que tem que saber ouvir esses coordenadores das diversas áreas. O que eu sei de cinema não me ajuda nada a fazer leis sobre cinema, nem a dar subsídios ao cinema, o que sei de dança, e sei e sei alguma coisa, não dá para me atrever sequer a pensar no que é. Tudo tem que ser para todos. No teatro não há classe. Não sei se quem está ao meu lado é um operário, ou se é o filho de um ministro. É assim o teatro para a infância e juventude. E na Comuna, onde o preço é único e não há lugares marcados. Não é por acaso. Senão sei logo quem vai lá para cima para a geral é quem tem menos dinheiro, quem vai para o terceiro balcão também tem, só as primeiras filas são mais caras do que um terço da plateia. Já está dividido por classes. Classes de dinheiro, não classes intelectuais. Posso ser um poeta e ser muito culto e não tenho dinheiro e sou obrigado a ir lá para cima.

Acha que se houvesse mais dinheiro se resolvia o problema da cultura em Portugal?
Não. É um problema de estruturas. Tem que haver alguém que apareça com o sentido da política cultural, com esse sentido de unidade. Há a cultura popular e a cultura erudita. Não podemos esquecer que a cultura popular tem uma força muito grande.

"Não acredito nem no céu nem no inferno, o céu e o inferno são aqui. Se acreditasse em Deus seria no cosmos, que está a castigar-nos agora e com razão. O que é que fizemos do planeta? Temos sido muito maus para nós. Temos que ganhar juízo."

Quando foi o 25 de Abril abriram-se todas as portas.
É verdade, abriram-se todas as portas. E tudo esteve aberto. Simplesmente, os professores deixaram de dar aulas e metade das pessoas separaram-se porque um era PC e outro era cristão e do CDS. O país fechou. Culturalmente foi maravilhoso. Fiz todas as campanhas do MFA. Mas os outros também deviam ter acompanhado. Conheci Portugal inteiro em cima de camionetas, ao ar livre, em adros, em casas do povo, em ginásios, a fazer teatro com debates no fim da peça. Toda gente sabe do que gostou e do que não gostou. Mas alguém tem que começar a falar. É só isso. Com a política cultural também é a mesma coisa, alguém tem que a começar. O 25 de Abril foi ótimo para isso, mas a primeira coisa que tinha que acompanhar esse movimento era o ensino. Aí é que se cria o futuro. O homem de amanhã é o que está hoje com oito, dez anos. O tempo passa muito depressa. E, na altura, esquecemo-nos muito desse ponto.

E agora não vamos tarde demais?
Não, nunca se vai tarde demais. É preciso é voltarmos ao ensino como deve ser. Professores formados a sério. É pôr a cabeça a pensar. Quando começamos a pensar, tudo volta a aparecer.

Não será mais fácil para si, João Mota, que teve tantas leituras, que pensou e refletiu sobre tantas peças…
Porque é que os outros não fizeram isso?

Os economistas terão outra vocação.
Porque é que não passaram o tempo a investigar economia, como é que se faz nos outros países, na América, em França, na Índia. Temos que aprender com os outros. Não faz mal aprender com os outros e nos erros dos outros. Apanhei um Presidente da República péssimo e dizem que era um bom economista, o Cavaco Silva, que chega a dizer para compramos ações naquele banco que valia a pena e o banco vai à falência passado uma semana.

Os jovens saem cada vez mais do país, não têm incentivo para ficar.
Também não fizeram nada para ficar. Que lutas estudantis tem apanhado? No meu tempo havia muitas.

Só apanhei uma, a das propinas.
Está a ver!

Mas as pessoas não se manifestam em Portugal.
Mas há ditadura? Não, toda a gente se pode manifestar. O problema é que eles próprios não são revolucionários por dentro. Revolucionário é o querer mais, o querer avançar. Depois tiram o curso e vão lá para fora, porque lá fora ganham mais dinheiro, mas quem pagou o curso foi o Estado português. Então têm de ficar em Portugal a render pelo menos três anos. Está certo, fazem isso na Noruega e na Suécia. E vão-se embora?

Entrevista a João Mota, ator, encenador, professor e teatrólogo português. Foi diretor do Teatro Nacional D. Maria II, fundador e director da companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa e presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Hoje com 79 anos volta a subir ao palco, no Teatro Comuna, para encenar na peça "A Casa da Bernarda Alba", que estreará no próximo dia 22 de Setembro de 2022. 19 de Setembro de 2022 Companhia A Comuna - Teatro de Pesquisa, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"É preciso acreditar no futuro. Eu sou dos que também acreditam no futuro. Isto vai sempre continuar"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Não têm emprego cá.
Há falta de médicos. Há falta de enfermeiros, vão todos para Inglaterra. Também não há professores, ninguém quer ser professor, pagam muito mal e são deslocados, não são postos nos sítios onde deviam estar. Antigamente queríamos sair de casa aos 20 anos, agora aos 30 ainda estão em casa dos pais. Há problemas de dinheiro, eu sei. Mas também põem os pais naqueles sítios e ficam com a casa. Dá muito trabalho tomar conta de um velho e sai mais barato pô-lo lá não sei aonde e ficar com a casa.

É uma imagem terrível.
Sou muito cruel. Nisso sou bastante cruel. Mas vejo como é que as pessoas vivem, como é que fazem. Quando eu não puder nada, eu próprio digo que quero ir, não quero ficar em casa.

Tem fé?
Tenho, fui católico, durante muitos anos. Depois, a pouco e pouco tornei-me… digo que sou cristão.

A fé ajuda a levar tudo isto para a frente?
Sim, a fé ajuda. A fé ajuda a mover montanhas como diz a Bíblia e é verdade. O que é ter fé? É ter a coragem para atuar.

Há um sentimento de não estar sozinho, também ou não?
Há, porque a gente acredita noutras coisas. Eu, por exemplo, não acredito nem no céu nem no inferno, o céu e o inferno são aqui. Se acreditasse em Deus seria no cosmos, que está a castigar-nos agora e com razão. O que é que fizemos do planeta? Temos sido muito maus para nós. Temos que ganhar juízo.

Há uma certa sensação de apocalipse.
Não. É preciso acreditar no futuro. Eu sou dos que também acreditam no futuro. Isto vai sempre continuar. Haverá um período de transição. O homem está em guerra desde que se conhece a história. O ódio e o amor existem em nós. Nós temos os defeitos e as qualidades todas. No teatro vive-se isso. Em todas as peças vou descobrindo coisas sobre mim, umas horríveis, outras maravilhosas. É um percurso.

De que é que mais gostou no teatro?
De ser e de estar.

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