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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

João Pereira Coutinho: "O dr. Soares teve sucesso porque percebeu que os portugueses só queriam uma vida normal"

O lugar do cronista, o "conservadorismo português", a preguiça como motor criativo e a política como fonte de inspiração. Entrevista com João Pereira Coutinho, a propósito do seu livro mais recente.

Começou por se afirmar nos jornais pela provocação e pela insolência e continua a ser um dos cronistas mais impertinentes da imprensa portuguesa. Escrevendo sobre política, sociedade e cultura, privilegia a sentença curta, direta, sem meios termos. O que, desde que começou a publicar com regularidade, no jornal O Independente, lhe tem trazido muitos admiradores e detratores. Diz não ligar nem a aplausos nem a insultos e que escreve, antes de mais, para se entreter e até se divertir. O sentido de humor distingue-o da sisudez jornalística nacional. O gosto pela piada aparta-o daqueles que têm como modo de vida levar tudo à letra.

Além de se afirmar há mais de 20 anos como colunista em diferentes jornais, em Portugal e no Brasil, doutorou-se em Ciência Política e Relações Internacionais e é professor universitário na Universidade Católica Portuguesa. Publicou, por estes meses, o livro Diário da República, que reúne textos publicados entre 2015 e 2022 sobre os temas — como a gerigonça e a pandemia — que marcaram esse período atípico da História nacional e mundial. É um bom pretexto para uma conversa sobre o livro e sobre outros assuntos. Como o ócio, quimera que vai nutrindo, com elevada preguiça, todos os dias.

Uma nota. O entrevistador e o entrevistado são amigos há vasto tempo, mas isso pouco quer dizer para o caso. Antes de se preparar para a entrevista, o autor das perguntas releu a dedicatória que João Pereira Coutinho lhe fez no seu primeiro livro de crónicas: Vida Independente 1998-2003, editado pelo jornal O Independente, em 2004: “Para o Nuno Costa Santos, com um pontapé no rabo”. Já neste Diário da República, lançado há meses, também livro de crónicas, escreveu: “Para o Nuno, este livro, que será lido por quem percebe do assunto”. De facto, o autor da entrevista tem apurado o seu conhecimento sobre levar pontapés no rabo — no plano da metáfora, que é de manter a compostura intelectual. Faz-se esta referência só para sublinhar que os amigos nem sempre são amáveis uns com os outros. João Pereira Coutinho, numa entrevista nestes primeiros dias de ano novo, mas não necessariamente de vida nova.

O livro "Diário da República", de João Pereira Coutinho, publicado pela D. Quixote

O que é que diferencia o cronista de Vida Independente deste do Diário da República? Já pensaste no assunto?
Honestamente, não. São 20 anos a mais, 15 quilos a mais e milhares de cabelos a menos. Mas aquilo que mais os distingue é, provavelmente, a energia. Hoje, a estupidez tem uma energia que eu já não tenho.

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Não acompanhas a velocidade da estupidez humana?
Já não consigo. Já não tenho a mesma energia que tinha e, portanto, hoje limito-me a rir mais e a desfrutar mais do espectáculo.

Isso pode ter um lado bom. Nelson Rodrigues achava a juventude uma perda de tempo. “Envelheçam depressa, deixem de ser jovens o mais rápido possível.” A juventude dá-nos a imprudência de acompanhar a estupidez?
Dá. Somos como aqueles cães de corrida atrás da lebre. Com a idade, percebemos que a lebre, afinal, é de cartão. Isso até dava um bom título: “A Lebre de Cartão”.

Tinhas 26 anos quando o primeiro livro foi lançado. Na capa desse livro há uma caricatura em que apareces com um ar juvenil e nesta capa do Diário da República apareces de óculos, numa versão, digamos, mais maturada. Estás a precisar de óculos para topar esta realidade portuguesa e mundial – e a tal estupidez humana?
Não. Achei que era uma oportunidade para fazer render a minha beleza natural e aceitei a foto. De resto, as preocupações que eu tinha aos 26 mantêm-se aos 46. Estou sempre a escrever sobre a mesma coisa, independentemente do tom: a arrogância e a boçalidade do poder.

Se quisesses resumir as tuas preocupações, identificarias esse tópico principal?
Sim, em tudo o que escrevo: crónica, ensaio, estou sempre a falar da mesma coisa. Porque isto é um assunto pessoal. Não é apenas um assunto de interesse teórico. A arrogância do poder, a ideia maligna de que alguém, só porque ocupa uma posição de poder, pode determinar, de forma autoritária, como os outros devem viver. No fundo, é sempre a mesma tecla.

O poder político e os poderes culturais?
É a ideia de proselitismo constante, é o pensamento de seita, a ridícula ideia de que te assiste algum direito para meteres o bedelho e dares ordens na casa dos outros.

Os teus textos são perpassados pela ideia de imperfeição humana. Terá a ver com isso?
Exato. Como existe essa certeza da nossa imperfeição, com a qual eu convivo bem, é para mim um abuso, e um abuso perigoso, haver quem se considere perfeito para consertar a imperfeição dos outros. Na vida política e na vida pessoal, atenção. Uma pessoa que diz “eu amo fulaninho de tal, só gostava que ele fosse assim ou assado” é um pequeno tirano. Ou amas o outro, ou não amas. Na amizade, a mesma coisa. O teu amigo é o teu amigo, não é um catálogo do IKEA. “Ai, gosto dele, mas preferia que as gavetas fossem maiores…”.

"Portugal, sobretudo no comentário televisivo, está cheio de pessoas que provavelmente beneficiariam de uma passagem pelo manicómio porque não percebem que Portugal vive em crise desde a Batalha de S. Mamede [1128]! Não conhecemos outro registo, historicamente falando, e se calhar não devemos conhecer."

Daí a tua já ancestral indignação com a indignação.
A indignação supõe sempre que estás em guerra permanente com aqueles que, às vezes, nem sequer te declararam guerra.

Queres dizer que nunca quiseste fazer inimigos porque não te identificas com uma forma guerreira de estar e ser?
Não. Quando as pessoas dizem “ele é um provocador”, na realidade é o contrário: eu só estou a reagir.

Entraste na imprensa portuguesa com um tom único em que distribuías várias bolachadas em cada sentença. Querias reagir à ideia, promovida um pouco por toda parte, de querer mudar o homem?
A melhor forma que tenho de responder a isso é evocar um comentário que um aluno me fez há muitos anos quando expliquei a ideia de pluralismo: “Isso basicamente significa ‘sejam felizes e não me lixem’”. Eu disse-lhe: “É exatamente isso”. Pluralismo significa isto: tu vives a tua vida e não lixas a minha.

O que na verdade é algo raro em termos de comportamento.
É. Porque há essa tendência constante de não só não seguires a tua vida como lixares a vida do outro. O meu esforço, com maior ou menor sucesso, é sempre tentar repor as fronteiras entre aquilo que é legítimo e aquilo que não é legítimo. Sobretudo quando estamos a falar do poder político, que é aquilo que mais influencia a vida em sociedade.

Mas, desde o início, naturalmente sabias que, no tom e na virulência, podias estar, usemos um eufemismo, a incomodar as pessoas.
Sem dúvida. Mas é preciso lembrar que o código que eu segui foi o de nunca eleger como alvo aquele que não se pode defender. Alguém dizia que era essa a definição de cavalheiro: alguém que não fala grosso a quem não lhe pode responder na mesma moeda. Os meus interlocutores não eram aqueles que estavam ao meu nível. Eram aqueles que tinham muito mais poder do que eu.

E hoje? Como é que está a relação de poderes?
O poder de um cronista é sempre bastante diminuto. Há pessoas que vivem na fantasia de pensar que aquilo que elas escrevem é determinante para o futuro do país e para o comportamento dos governos. Ora, qualquer pessoa que pense realmente isso devia procurar ajuda médica. Penso que era o Bertrand Russell quem dizia que o primeiro sinal de disfunção psicológica é a pessoa achar que o seu trabalho é muitíssimo relevante. Portugal, sobretudo no comentário televisivo, está cheio de pessoas que provavelmente beneficiariam de uma passagem pelo manicómio porque não percebem que Portugal vive em crise desde a Batalha de S. Mamede [1128]! Não conhecemos outro registo, historicamente falando, e se calhar não devemos conhecer. É como aqueles fumadores que decidem deixar o vício de um momento para o outro e o organismo ressente-se do choque, desenvolvendo todo o tipo de patologias. No dia em que deixarmos de viver em crise, desaparecemos.

Portugal continua a não levar a sério o sentido de humor?
Acho que em Portugal não há grande sentido de humor. Portugal faz uma coisa diferente: é um grande produtor de humor involuntário. O humor nasce da disfuncionalidade. E, como Portugal é um país que tende a não funcionar, isso é uma fonte inesgotável de humor.

"Temos pouco humor para dentro, em que nos pomos em causa e começamos por nós esse exercício de desconstrução"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

E em Itália?
Em Itália, também. Os países do sul da Europa produzem humor involuntário. Os países do Norte, coitados, só conseguem fazer humor voluntário. Como a vida deles é mais ou menos funcional, têm que puxar pela cabeça para violentar a realidade. Agora ando a reler, pela quinta ou sexta vez, alguns dos meus P.G. Wodehouse favoritos. Aquilo é um mundo que ele criou para sublimar a chatice da existência. Se fosse português, não havia chatice, bastava-lhe estar à janela. Já viste a perda que era para a literatura?

O que pode fazer o cronista perante esta comédia natural da realidade?
É tentar descrever a realidade. A pior coisa que pode acontecer é quando se tenta suplantar o humor original. Basta comentar o que se está a passar.

Alinhar factos basta?
Às vezes é isso. Dou-te um exemplo: o primeiro-ministro aparece, diz que vai dar meia pensão para os reformados. Tudo aplaude. Depois, lá pelo meio, alguém pergunta: mas vai dar ou antecipar? Burburinho no auditório. Mau mau Maria. Afinal, vai antecipar, o que significa que as pensões serão cortadas no futuro, na hora da atualização. Desata tudo aos gritos e a saltar pela janela. Nem o mais brilhante argumentista de Hollywood conseguia fazer isto! Portanto, basta descrever.

Mas não é aquilo que se tende a fazer.
Por vezes as pessoas ou usam da indignação ou tentam moralizar. “Isto é uma vergonha!” ou “Senhor primeiro-ministro, o senhor está a dar cabo da sua vida, do seu governo, não faça isso!” Como se fossem pais do António.

“Isto é chocante!”
“Pense na imagem que está a dar!”

No Vida Independente tens uma crónica sobre o facto de os políticos, na altura em que o programa dava, terem orgulho em figurarem no “Contra-Informação” e ofensa por não estarem lá. Hoje em dia, temos o fenómeno dos políticos que fingem gostar muito de ir ao “Isto é Gozar com Quem Trabalha”. O sentido de humor não abunda, mas é importante fingir que se tem?
O pior que se pode dizer de uma pessoa é que não tem sentido de humor. Pode-se dizer de alguém que rouba, que bate nos filhos, que estaciona num lugar para deficientes. Tudo isso é pacífico. Agora, se se disser de alguém que não tem sentido de humor, está-se a fazer um ataque ao carácter. É por causa disso que os políticos portugueses gostam de ostentar um sentido de humor que, em grande parte dos casos, simplesmente não têm.

O protagonista público não se diferencia do português que está no café e que gosta de fingir que domina a realidade através do humor. Um humor revisteiro, sobretudo.
Temos muito essa tradição de humor. É um humor revisteiro que é feito para fora, com dichotes e trocadilhos, mas temos pouco humor para dentro, em que nos pomos em causa e começamos por nós esse exercício de desconstrução.

Muitas vezes, por aqui, quando se faz auto-piada, soa a falso.
Não é apenas soar a falso. É, sobretudo, não ter piada.

"Uma vez encontrei um antigo ministro no comboio. Falámos durante uma hora e, no final, diz-me ele: 'Aquela tareia que me deu a 3 de junho de 2002 foi muito injusta. Foi ou não foi?' Obviamente, já não me lembrava. Mas ele lembrava-se. O mais importante, quando escreves, é que, em primeiro lugar, escrevas para ti. Porque tudo o resto é contingente, por definição."

Porque é forçado?
Porque nunca é algo genuíno. Os portugueses, em geral, atribuem-se uma importância superior à que realmente têm. Por isso o auto-humor genuíno é uma agressão desnecessária, que põe em risco o pouco capital social de que dispõem. Quando existe, é forçado e, pior, exibicionista: “Vejam bem, sou tão bom que até me rio de mim próprio…”

Há a ilusão de que as pessoas que estão “cá em baixo” são superiores moralmente às que estão “lá em cima”? Isso vem de onde? Do Gil Vicente?
Não. Do Cristianismo. E da sua mais óbvia corrupção, o marxismo.

Quando escrevias os teus primeiros artigos, as pessoas diziam que eras um enfant terrible e li comentários de outros comentadores do género “quem é este tipo?” Sentias que no tom que usavas estavas a embater numa certa maneira de ser portuguesa?
Nunca teorizei sobre o assunto, estava mais preocupado em praticá-lo. A minha vida teria sido outra se não fosse O Independente. Porque O Independente deu-me o espaço e os instrumentos para poder escrever livremente, para abusar, para delirar. Por isso é que o título do primeiro livro é Vida Independente. E quando estás a escrever livremente não tens muito tempo para teorizares sobre o que és e fazes.

Mas, na altura, não te davas com pessoas. Falavas com duas pessoas por mês. Essa tua independência não virá também daí?
Também pintas a coisa como se eu vivesse numa caverna… Falava com meia dúzia, vá. A crónica está intimamente ligada ao tempo. A única coisa que se pode dizer, olhando para trás, é: “Era aquele tempo e por isso fiz aquilo”. Os outros que encontrem uma justificação.

Mas chegaste a sentir diretamente o efeito de mossa das tuas críticas nos protagonistas dos teus textos?
Não. Pouco. Uma vez encontrei um antigo ministro no comboio. Falámos durante uma hora e, no final, diz-me ele: “Aquela tareia que me deu a 3 de junho de 2002 foi muito injusta. Foi ou não foi?” Obviamente, já não me lembrava. Mas ele lembrava-se. O mais importante, quando escreves, é que, em primeiro lugar, escrevas para ti. Porque tudo o resto é contingente, por definição. A primeira pessoa que tens de entreter, divertir e comover és tu próprio. Se os outros te acompanharem, ótimo. Se não te acompanharem, ótimo na mesma. Aqui, na minha mesa de trabalho, tenho um livro de ensaios do Frank Kermode de que gosto muito: Pleasing Myself. Esse título é, se quiseres, para usar uma expressão chique, a minha arte poética. É uma coisa um pouco onanista, admito.

Um pouco?
Sim, só um pouco, porque depois tens de pensar nos outros, estás a escrever também para eles. Mas, primeiro, tratas de ti.

Rias-te com aquilo que escrevias.
Sim. Mesmo que os outros não se rissem. E inversamente também acontecia. Coisas de que os outros se riam e que eu não encontrava razões nenhumas para rir.

Hoje, ao escrever os textos deste Diário da República, ainda te divertes?
Divirto-me imenso. E, sobretudo, este é o livro de que mais gosto. Normalmente há uma grande distância entre aquilo que imaginas e aquilo que obténs no final. E este livro, apesar de ainda existir essa distância, é o livro que, até agora, mais encurtou essa distância entre aquilo que eu queria e aquilo que obtive.

"Vou à missa, partilhando dos mesmos pecados. Preguiça, desorganização, inclinação para a melancolia alternada com momentos de megalomania pura, etc."

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Porquê?
Porque o livro consegue conciliar várias coisas que não são fáceis de conciliar. Dá um retrato do país que é crítico, mas que ao mesmo tempo traz também alguma pacificação cómica com o país. E essas duas coisas não são fáceis de tricotar.

Uma pacificação que não te leva a um “isto é assim, assim seja”.
Neste livro, não. Mas não excluo que isso possa acontecer “somewhere down the road”.

Isso seria o Nirvana do cronista.
O sonho inconfessável de qualquer cronista é chegar a um ponto em que a sua coluna é feita de uma curta pergunta e de uma curta resposta. Do género: “Este governo presta? Não creio.” E pronto, não é preciso dizer mais nada.

Já pensaste alguma vez escrever prosa poética sobre o Bloco Central?
Escrever um artigo com o título “Ontem Não te Vi no Hemiciclo”.

E se aquilo que se aponta aos portugueses como defeito é, na verdade, uma manifestação de sabedoria extraordinária?  Os portugueses não serão verdadeiramente sábios?
Essa é a pergunta mais importante. É saber até que ponto os vícios dos portugueses não são ao mesmo tempo as suas virtudes. E ainda ninguém conseguiu responder a essa pergunta. Os vícios eu sei quais são. Escrevo sobre eles e, convém lembrar, também sou português. Às vezes, sou um português não-praticante…

Mas depois também vais à missa.
Vou à missa, partilhando dos mesmos pecados. Preguiça, desorganização, inclinação para a melancolia alternada com momentos de megalomania pura, etc.

O adiar.
“Amanhã ou prá semana”, como diz uma pessoa que conheço. Acho que era o Herbert Spencer quem dizia: “Existe uma alma de verdade em tudo o que é errado”. Não sei se isso não será verdade sobre “os portugueses”. No meio disto tudo tem de haver alguma coisa que explique não só a nossa continuidade no tempo, mas também uma certa hostilidade ao extremismo.

Uma virtude não tão distribuída pelos povos.
Claro que não. Temos as outras coisas negativas: por exemplo, não exigimos como devíamos e elegemos políticos que não valem nada. Somos mansos. Mas é preciso olhar para o outro lado. E o outro lado é que há por parte dos portugueses um “deixa lá disso” que, explicado pela pobreza, pelo isolamento ou pela fraqueza da sociedade civil, pode ter as suas virtudes.

E não há maior manifestação disto do que as indignações de rede social. Não há melhor forma de não fazer do que estar num café virtual a dizer que se vai fazer.
Ao contrário do discurso corrente que diz que as redes sociais são terríveis, eu vejo nas redes sociais um simulacro de realidade onde as pessoas podem exercitar os seus lados mais sombrios sem necessariamente os exteriorizarem de forma socialmente disruptiva ou revolucionária. Às vezes as coisas transbordam, certo, mas qualquer estatística te dirá que o nosso mundo é incomparavelmente menos violento do que o mundo dos nossos avós. Há virtudes no cativeiro. É o que penso sobre os concorrentes do Big Brother. As pessoas dizem “olhem só para estes tipos, como é que isto é possível?”, mas devem pensar o contrário: enquanto estiverem no programa, não estão cá fora.

"Acho que os portugueses são temperamentalmente conservadores. Quem viu isso bem foi o dr. Mário Soares, um grande conservador. Depois do 25 de Abril, passou pelas praias cheias e percebeu que os portugueses não iriam querer entregar-se à ditadura do dr. Cunhal. O dr. Soares teve o sucesso que teve na transição democrática porque percebeu que os portugueses só queriam uma coisa: uma vida normal."

Não andam na droga, como antes se dizia.
Isso era o menos. Recua até 1920. Um tipo que não conseguiu entrar na Academia de Belas Artes começa a usar o Twitter para dizer mal dos judeus e tecer considerações delirantes sobre a raça ariana. Torna-se uma grande estrela do Twitter, engorda 20 quilos e nunca invade a Polónia.

Indo atrás na nossa conversa, ele assim estaria a ter satisfação consigo próprio.
Ora nem mais, “pleasing himself.” Ele e os outros doidos. O Adolfo escreve: “Os judeus são uma raça inferior!!” E os outros respondem com “LOL” ou com um coraçãozinho, e pronto, não vinham cá para fora. O ponto fundamental é esse: não virem cá para fora.

Achas possível acontecer em Portugal algo parecido com aquilo que aconteceu no Brasil? Haver uma invasão dos órgãos do poder?
Só numa situação: se despromovessem o Benfica, o Sporting ou o Porto para a 2.ª divisão. Por razões políticas, acho que não: a última vez que se partiu mobília na Assembleia da República foi quando os deputados do PS receberam em êxtase o dr. Paulo Pedroso, depois da libertação, no caso Casa Pia. Os portugueses não gostaram. “Ando eu a trabalhar como um mouro para depois andarem a partir a louça toda?”

Há no português um forte lado preservacionista próprio de quem se habitou a fazer contas de mercearia.
Para usar a linguagem dos camaradas, é uma tendência pequeno-burguesa que os portugueses têm e que contribui para a estabilidade social. Abençoados sejam.

Para uns uma forma de sabedoria. Para outros uma forma de moleza.
Acho que os portugueses são temperamentalmente conservadores. Quem viu isso bem foi o dr. Mário Soares, um grande conservador. Depois do 25 de Abril, passou pelas praias cheias e percebeu que os portugueses não iriam querer entregar-se à ditadura do dr. Cunhal. O dr. Soares teve o sucesso que teve na transição democrática porque percebeu que os portugueses só queriam uma coisa: uma vida normal. No tempo do dr. Salazar falava-se em “viver habitualmente”. Mas “viver habitualmente” só foi possível depois do 25 de Abril. Viver habitualmente é o sonho do português e isso só é possível em democracia. Isto tem uma sabedoria que não deve ser desprezada. No fundo é privilegiar o sossego. Os portugueses querem é sossego. “Não me venham lá com o Nietzsche” podia ser o título de um livro sobre a nossa raça.

O sossego e a preguiça não são a mesma coisa. Mas podem conviver. E, já agora, o próprio dr. Soares gostava de bater uma soneca sempre que podia. Um dos tópicos que vão marcando os teus textos desde o início é a questão do ócio. Tu, aliás, citas alguém, algures, que diz que não há civilização sem ócio. Quando te propus fazer esta entrevista, disseste “Achas que sim? Isto não vai dar muito trabalho?” Mas, como já me havia comprometido com o editor, continuei com o propósito. E tu lá acedeste. O ócio é um valor supremo para ti?
É o valor mais importante para mim. É a base de tudo: do conhecimento, da criação, do amor, da amizade, ou do dolce far niente. Toda a minha vida tem sido uma luta constante para não deixar que o ócio tenha a palavra final, porque também tenho de trabalhar. E as pessoas mais próximas sabem disso. De tal forma que isto pode alimentar “mal-entendidos”. Como se eu não me interessasse pelas pessoas ou não quisesse estar com elas. Não é nada disso. É simplesmente porque o ócio, em muitos momentos, acaba por se impor e eu sou derrotado.

"Tenho dois diários. Um LP e outro single. No single só faço uma descrição das ocorrências do meu dia. No LP desenvolvo certas obsessões"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O José-Augusto França dizia que era muito disciplinado porque era muito preguiçoso.
Ele tinha inteira razão. A disciplina de que preciso para não ceder ao ócio é uma disciplina quase prussiana. Quando estava a escrever o doutoramento lembro-me que usava um cronómetro para me obrigar a trabalhar. Se não conseguisse dar X horas naquele dia, compensava no dia seguinte. Uma violência.

É o teu lado revolucionário, digamos assim.
Dediquei-me a atividades que privilegiam a leitura e a escrita porque isso encaixava numa personalidade ociosa.

Cedo percebeste isso.
Percebi isso e o meu pai percebeu isso. É como aquela série, o “Dexter”, em que o pai percebe que o filho é um psicopata. E, portanto, se ele é um psicopata, vamos ao menos instruí-lo a ser um psicopata do bem. Comigo aconteceu algo parecido. O meu pai percebeu que eu era uma personalidade ociosa e procurou aconselhar-me a escolher uma carreira onde isso fosse, digamos, uma vantagem.

És professor universitário, escreves para o Correio da Manhã, para a Sábado, para a Folha de São Paulo, fazes comentário televisivo…
Além de escrever o meu diário. Escrevo-o desde os meus 16 anos.

Escreves mesmo todos os dias?
Quase. Tenho dois diários. Um LP e outro single. No single só faço uma descrição das ocorrências do meu dia. No LP desenvolvo certas obsessões.

E nunca tens a tentação preguiçosa de ir ao diário tirar textos para as tuas crónicas?
Só nas partes que dizem respeito à política. Este Diário da República nasceu lá e saltou para os jornais antes de acabar em livro.

O diário pessoal será publicado?
Os herdeiros que decidam. Se tiverem conta bancária para os processos, podem publicar à vontade.

Tens um lado performático como cronista? Ou seja: tu e o João Pereira Coutinho são a mesma pessoa?
O Eça dizia que os brasileiros eram portugueses inchados pelo calor. O cronista é uma versão um pouco mais inchada pelo calor da prosa. Um semi-heterónimo, digamos assim.

Além de cronista, és professor universitário. Para os padrões vigentes tens uma profissão séria. És um pouco como o padre que joga ténis.
Bela imagem! Desde que o padre não jogue ténis de sotaina, está tudo bem. E eu troco sempre de equipamento.

Escreves crónicas mas também escreves ensaio. Pode-se dizer que no ensaio estás mais próximo do professor universitário?
Provavelmente. A crónica e o ensaio têm regras distintas. Mas, no fundo, a base de tudo é a mesma: escrever. É como nadar. Podes fazê-lo de bruços, crawl, mariposa, mas o que interessa é meteres o corpo na água e não ires ao fundo.

"Muitos dos problemas do mundo nasceram porque alguém não percebeu uma piada. Imagino um jantar no Kremlin, tudo bem regado a vodka, e alguém a dizer: 'A Ucrânia devia ser nossa outra vez!' A maioria riu. Mas houve um que não riu: o Vladimir. Depois, quando se recolheu aos aposentos, começou a pensar: 'Está bem visto, sim senhor...'"

Isso faz-me lembrar algo que uma vez o Miguel Esteves Cardoso disse sobre a escrita e que reparei existir também nos textos do Assis Pacheco quando estive a mexer nos papéis dele por causa de um trabalho biográfico. Escrever é escrever. O género não importa. Um mero recado merece um investimento literário.
Uma vez fui ao Independente falar com o Miguel Esteves Cardoso e disse qualquer coisa como “Vocês os jornalistas…”. O Miguel atirou-se ao ar e disse: “Jornalistas? Eu sou escritor, pá!” Ele tinha razão. É preciso ter uma cabeça muito estreita, muito pequena, para achar “isto aqui é a crónica”, “isto aqui é o ensaísmo”, “isto aqui é a ficção”…

Ou uma mensagem de WhatsApp. O que achas disto da sinalética obrigatória. Ter de pôr um smiley a piscar o olho depois de uma sentença irónica é o fim da ironia?
É o fim da ironia. Mas eu devo dizer que já cheguei no fim da festa. Se soubesses a quantidade de situações em que as ironias, as paródias, as invenções que fiz alimentaram confusões e recriminações de todo o tipo, não irias acreditar. A minha ideia de inferno é chegar lá acima, ou lá abaixo, e encontrar todos os leitores que não entenderam uma ironia ou uma brincadeira: “Ouça lá, o senhor acha mesmo que os totalitarismos fazem bem à saúde?” “O senhor diz aqui que andou na tropa com o Camões, mas isso é impossível!” Tenho esse pesadelo constante: passar a eternidade com os “idiotas da objetividade”, como lhes chamava o Nelson Rodrigues.

O mundo já não suporta a ambiguidade.
Muitos dos problemas do mundo nasceram porque alguém não percebeu uma piada. Imagino um jantar no Kremlin, tudo bem regado a vodka, e alguém a dizer: “A Ucrânia devia ser nossa outra vez!” A maioria riu. Mas houve um que não riu: o Vladimir. Depois, quando se recolheu aos aposentos, começou a pensar: “Está bem visto, sim senhor…”.

Logo no primeiro livro falas da importância do teu pai, e voltamos a ele, para a tua escrita. Gostarias de ter a opinião do teu pai sobre este Diário da República?
Gostaria que o meu pai estivesse vivo só para estar vivo. Se eu pudesse nunca mais escrever e ele pudesse estar vivo, aceitava essa troca imediatamente.

Lembro-me de contares numa entrevista que foi ele que te recomendou o Machado de Assis.
O meu pai não recomendava nada. O importante para ele era que os filhos lessem.  Mas, na adolescência, recomendou-me dois livros. Um era O Estrangeiro, do Camus, e o outro era Memórias Póstumas de Brás Cubas, do Machado de Assis. Lembro-me de, ao ler os dois, ter ficado fascinado sobretudo com o segundo, com toda a sua sátira, em contraste com a prosa severa e existencialista do Camus. Creio que isso se confirmou quando comecei a escrever.

Por falar em memórias, já pensaste em qual vai ser o teu epitáfio?
Sempre me fascinei com epitáfios. Há um que talvez seja apropriado: “Não se excitem, eu só fui indo à frente.” É importante relembrar aos vivos que isto é um estado temporário que não vai acabar bem.

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