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João Teixeira da Motta, o último guardião da espada de D. Miguel: "Sempre senti que um dia ela deveria reintegrar as Joias da Coroa"

João Teixeira da Motta foi o último guardião da espada de D. Miguel, que fará parte do futuro Museu do Tesouro Real. Neste texto, escrito na primeira pessoa, conta a sua história.

Escrevo este texto com um cunho pessoal, até para encerrar, aos setenta anos, uma fase de vida. Fui o último guardião da espada do rei D. Miguel e, como quero partilhar essa emoção e essa responsabilidade, quero, por dever, apresentá-la.

D. Miguel, nascido em 1802, foi, de 1828 a 1834, o mais controverso dos reis portugueses, um enfant terrible, o defensor intransigente do Trono e do Altar. Um príncipe rebelde, toureiro, exímio cavaleiro e caçador, de olhos coruscantes e andar “elástico”, mas infeliz, por duas vezes ter sido exilado. Era filho de D. João VI, o último pai de todos. A luta iniciada depois da morte de João, em 1826, entre os seus filhos Miguel e Pedro, foi a divisão entre tradicionalistas (ou conservadores) e liberais (ou progressistas), que ainda hoje continua a dividir a sociedade portuguesa.

Contra a vontade de Salazar, que considerava as joias terem prescrevido a favor do Estado, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 1942, declarou que elas deveriam ser devolvidas aos herdeiros de João, uma herança que nunca fora clarificada dados os enredos da guerra civil.

Nesse contexto, meu pai, Inácio, em 1943, sem ser descendente de D. João VI, mas através de uma aliança familiar, tornou-se seu herdeiro. Assim — num leilão particular para a partilha da herança da filha do rei, a Infanta D. Ana de Jesus Maria — licitou para si, entre outras peças, a espada de Miguel, a peça mais valiosa do acervo e a única que Salazar mandou classificar como tesouro nacional. Com efeito, D. Miguel, ao ser encurralado em Évora, em maio de 1834, pela Quadruple Aliança — os governos liberais de Londres, Paris, Madrid e Lisboa — deixara cá as Joias da Coroa, bem como as suas pessoais, uma atitude de hombridade que levou D. Pedro a comentar: “É bem do mano Miguel”. Como tinha uma dívida contraída em relação a Ana, convencionou-se dividir a sua herança a meias pelos dois ramos.

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Inácio Teixeira da Motta, pai de João Teixeira da Motta, com a espada de D. Miguel

Segundo as inscrições nos dois lados da lâmina, ela foi feita na Real Fábrica de Toledo em 1824 e oferecida a D. Miguel em 1829 por sua irmã, D. Maria Teresa, a Princesa da Beira, a única dos filhos do rei que foi esmeradamente educada, uma mulher de ânimo varonil, que, da Corte de Madrid, onde residia, dirigia as tropas portuguesas legitimistas refugiadas em Espanha, a quem, de forma muito democrática, distribuía somas não segundo a sua hierarquia, mas segundo as suas necessidades. No punho da espada, a águia a domar a serpente representaria para ela, creio, a Tradição legitimista a esmagar a Revolução nascente, Miguel a vencer Pedro.

Segundo as inscrições nos dois lados da lâmina, ela foi feita na Real Fábrica de Toledo em 1824 e oferecida a D. Miguel em 1829 por sua irmã, D. Maria Teresa, a Princesa da Beira, a única dos filhos do rei que foi esmeradamente educada. No punho da espada, a águia a domar a serpente representaria para ela, creio, a Tradição legitimista a esmagar a Revolução nascente, Miguel a vencer Pedro.
João Teixeira da Motta

Por isso esta espada é uma cápsula do tempo: mandada fazer em 1823, numa altura em que Teresa apostava na ascensão de Miguel ao trono, teve que esperar até 1829 para ser finalizada como obra de armaria. Assim, a lâmina, que foi forjada logo depois do momento de glória do jovem Infante em 1823, a Vila-Francada, em que obrigou o pai a voltar ao absolutismo e a nomeá-lo Generalíssimo, evento que levou Metternich a qualificá-lo de jovem falcão, só bastante depois foi terminada como espada, por Boretti, o ourives e joalheiro da Coroa espanhola. Este assina como Espadero de la Real Casa, porque, segundo me disse o diretor do Museu do Exército, de Toledo, essa era a honra máxima para um artesão da época. A espera, de 1824 a 1829, corresponde, pois, praticamente ao período em que Miguel esteve exilado em Viena: na lâmina ainda é dedicada ao Infante, no interior do punho, um lugar inesperado, mas simbólico, já tem as armas de Rei.

As armas reais no interior do punho da espada e a serpente com olhos de diamante, no cinturão

Refiro de resto que o Diretor, quando veio a Lisboa há dois anos, dobrou diante de mim a lâmina sobre o seu joelho, de forma a poder exclamar que ela é de excecional flexibilidade. Diz-se que é o temperar do aço nas águas do Tejo que produz a extraordinária mistura de dureza e de flexibilidade que caracteriza as lâminas de Toledo.

Como a espada entrou para a família Teixeira da Motta

O meu pai era filho de um fidalgo minhoto, Senhor da Casa da Cruz, em Celorico de Basto, e era trineto do famoso Gonçalo Cristóvão, de quem, com algum exagero, se dizia no século XVIII que “ia do Porto a Braga sem sair das suas terras”. Ao receber a herança de seu tio materno, Miguel Teixeira de Barros, casado com uma neta da Infanta, filha do Conde de Azambuja, o seu estatuto social não se alterou, continuou a dar-se com os mesmos amigos, já vivia bem, mas passou a viver num belo palacete, com muito pessoal, com bastante mais dinheiro, o que lhe terá permitido ter nove filhos. Foi com honra e alegria que — pertencendo pela mãe a uma família que se arruinara por D. Miguel — ele pode, merecidamente, trazer para casa as principais relíquias do rei.

Nessa casa do século XIX, mandada construir pelo Conde de São Marçal na Rua de São Marçal, número 79, com seis salas seguidas e que em breve reabrirá como hotel de charme, a espada estava na sala de teto árabe. Entre a sala inicial, com azulejos e grandes cadeirões de couro armoriado, onde pontificava o retrato de D. Miguel e o salão de baile, com o seu lustre feérico e uns espelhos monumentais, hoje no Lux.

Desde adolescente, no Colégio Militar, que senti o fascínio da espada, as inscrições misteriosas na lâmina, a aura subtil que ela emana. Mas eram os olhos da serpente no cinturão — dois belos brilhantes que facetam a luz — que sobretudo me interrogavam, como terão, de resto, interrogado o rei.

Via que a espada estava ali, imóvel, deitada, fechada no seu escrínio, mas sentia que ela tinha uma vida invisível, a vida secreta dos objetos, uma vida algo intemporal, feita de luz e de sombras, onde havia uma intimação de futuro, numa linha de tempo que sentia por ali correr. A espada era como um portal para um mundo de encantamento histórico que eu, como jovem, apenas intuía de forma difusa.
João Teixeira da Motta

Com efeito, sempre animei objetos. Brincar e imaginar é dar vida ao estático, ou melhor reconhecê-la e orientá-la. Via que a espada estava ali, imóvel, deitada, fechada no seu escrínio, mas sentia que ela tinha uma vida invisível, a vida secreta dos objetos, uma vida algo intemporal, feita de luz e de sombras, onde havia uma intimação de futuro, numa linha de tempo que sentia por ali correr. A espada era como um portal para um mundo de encantamento histórico que eu, como jovem, apenas intuía de forma difusa.

Ela é uma espada, que — apesar de ter muito ouro, rutilante de várias cores, do branco ao vermelho — não diz “olhem para mim”. O seu lema, ainda hoje, é Servir. Parece guardar um segredo. Irradia uma energia profunda e estável, uma mensagem de valor, de coragem algo temerária, de dever, de entrega aos valores espirituais do coletivo. Aponta um caminho. Parecia dizer-me o seu nome e missão: “Sou a luminosa, sou a verdadeira”. “Sou uma espada de luz e de verdade, ainda posso representar um papel”, “vim para separar, vim para unir”. Não é por acaso que uma raça Curda da Anatólia, os Alevis, num certo festival, enterram uma espada no chão para contactar o espírito divino.

Ao longo dos anos, sonhei com a espada várias vezes, imagens energéticas que me pareciam mostrar que ela tinha vida própria e uma ligação comigo. Numa vez, dançava no ar com ela empunhada na vertical. Noutra, com ela empunhada na horizontal, a espada desferia faíscas de luz e assumia uma forma ondulante de serpente. Mas sempre senti que um dia ela deveria reintegrar as Joias da Coroa, de que era a última grande peça em mãos particulares. Estou assim muito contente que o prazer que tinha na sua presença seja em breve partilhado por todos.

No punho, a águia doma a serpente (Fotografia: Bate Chapas)

Com efeito, é extraordinário que uma lâmina forjada em Toledo em 1824 possa reemergir em Lisboa em 2020, em excecionais condições de preservação, ainda no seu estojo original. Como que trazida pelo Tejo, que banha as duas cidades, como que protegida da usura do tempo. Um legado que o passado oferece ao futuro. Atravessou o tempo como que de forma subterrânea e emerge agora para um novo destino. Relíquia de um mundo que acabou, atravessou com dignidade quase duzentos anos da História da Europa, da Ibéria, dos Bourbons e dos Braganças e interpelou três gerações da minha família. Como ela, persistente, me chamava, quando meu pai morreu, de entre os nove filhos, assumi-a naturalmente.

Durante décadas estudei a sua origem e a sua época e escrevi um livro, A Espada, publicado recentemente. Além de ser um romance, baseado em factos históricos da vida de Teresa (que morre em 1876) e Miguel (que morre em 1866), como escritor, tornei a espada no personagem principal do livro: ela fala e descreve a sua vida e a do rei, até que este a deixou em Portugal em 1834. Ficciono também que foi o Arcanjo Miguel que a forjou na noite dos tempos e que a sua função seria agora a unificação da humanidade. Sendo por isso que os Controladores do Espaço-Tempo — que mantêm a humanidade na escravatura do trabalho forçado — lutam para a subtrair ao jovem herói português que a recebeu nos Açores.

Uma história que daria um filme. Uma saga portuguesa, em cinema ou televisão. Que envolveria a História de Espanha, do Brasil e da Europa e onde muitas outras histórias poderiam ser contadas. São histórias dentro de histórias, que até provam a existência de fratais no tempo, pois a espada é “desenterrada” por meu pai dos cofres do Banco de Portugal — onde jazera por 111 anos de opressão — no ano em que começa a derrota da Alemanha nazi, um episódio da Queda dos Impérios, a minha especialidade histórica.

Ao longo dos anos, sonhei com a espada várias vezes, imagens energéticas que me pareciam mostrar que ela tinha vida própria e uma ligação comigo. Numa vez, dançava no ar com ela empunhada na vertical. Noutra, com ela empunhada na horizontal, a espada desferia faíscas de luz e assumia uma forma ondulante de serpente. Mas sempre senti que um dia ela deveria reintegrar as Joias da Coroa.
João Teixeira da Motta

O livro tem prefácio do Presidente da República (outro filho de Celorico de Basto, que conheceu a espada na sua juventude) onde me refere como “atento conhecedor da História, desperto para os idealismos clássicos e os esoterismos contemporâneos, imaginativo criador de novos mundos, que trata de temas reais num quadro de extra-realidade ou supra-realidade”.

Tendo sido diplomata e servido Portugal como medianeiro nas grandes organizações internacionais, agora escritor e artista, considero-me um sintetizador cultural: entre o interior e o exterior, o Ocidente e o Oriente, as artes e a escrita, a ciência quântica, a realidade virtual e a espiritualidade. Ao deixar o episódio da espada, busco agora a fusão no absoluto.

A espada chega à Ajuda, onde ficará o futuro Museu do Tesouro Real

Com efeito, um guardião, através de linhagens inexplicáveis, recebe uma espada por imposição, depois, respeita, escuta, preserva, melhora e transmite. Como nenhum herói a reclamou, como o livro que escrevi para dar a conhecer a existência da espada não gerou um movimento cívico contra a corrupção e pelo cumprir da missão de Portugal e, como as obras na Ajuda estavam a começar, decidi, há um ano, separar-me da espada.

Como nota incidental, refiro que tinha firmemente decidido ceder a espada ao Estado pelo valor de 250 mil euros. Dadas as dificuldades para conseguirem a verba, numa atitude que o diretor do Palácio da Ajuda, o Dr. José Alberto Ribeiro, uma alma nobre, classificou de “gesto de príncipe” — o que não me considero, pois busco o apagamento da personalidade — inclui no lote mais três peças régias: a condecoração da Ordem da Conceição de Vila Viçosa, também de D. Miguel, vários talheres de D. João VI e um grande retrato da Infanta D. Maria Francisca, sua filha, que ainda foi rainha de Espanha para os legitimistas.

O livro, A Espada, está à venda na livraria Ferin, ao Chiado, e na editora Espiral, à Estefânia. Nesta sexta feira, 13 de dezembro, João Teixeira da Motta animará, na Espiral, a partir das 19h30 (reservas pelo 964 616 349), um jantar tertúlia à volta dos dois livros que publicou, cujo primeiro foiO Território e o Mapa, de 1991. Nela abordará os temas que lhe são caros e comuns aos dois livros:a não dualidade, o governante sagrado, pontífice entre Deus e os homens, a sinarquia, governo pelos sábios, o espaço-tempo, e o futuro da humanidade.

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