A piada fez-se sozinha.
Esta terça-feira, 15 de setembro, Joe Biden foi à Flórida com um objetivo: ganhar apoio entre os latinos, que compõem 26,4% da população naquele estado fulcral e que foram decisivos numa das duas vitórias de Barack Obama. Por isso, numa tentativa de agradar-lhes, o candidato democrata subiu ao palco e, antes de falar, puxou do telemóvel e disse: “Só tenho uma coisa a dizer, aguentem um bocado…”. De repente, começou a ouvir-se uma voz a cantar em espanhol.
Vi que tu mirada ya estaba llamándome
Muéstrame el camino que yo voy
Era o Despacito, de Luis Fonsi, que só por acaso estava sentado a uns quantos metros. O astro do reggaeton riu-se, Joe Biden balançou os ombros de um lado para o outro em jeito de dança e depois disse: “Digo-vos uma coisa, se eu tivesse o talento destas pessoas ganhava por aclamação”.
A piada fez-se sozinha, mas também em várias camadas. Primeiro: “Despacito” significa “devagarinho”, o que não difere muito da alcunha que Donald Trump deu ao seu adversário, isto é, “Slow Joe” (Joe Lento). Segundo: tal como naqueles versos da música, o eleitorado latino há muito tempo que tem chamado Joe Biden para o seu lado, mas sem efeito. Terceiro e último: o facto de ter ido tão despacito em busca do voto latino pode custar bem caro a Biden que, nesta altura da corrida, nem com aulas de canto conseguiria ser eleito por aclamação.
Quem não está para piadas é José Dante Parra, homem que conhece bem os meandros do Partido Democrata e também do voto latino. Depois de ter sido conselheiro sénior de Harry Reid, senador do Nevada que liderou os democratas no Senado entre 2007 e 2017, fundou a consultora Prospero Latino para ajudar diferentes políticos a conquistarem o voto daquela que é, pela primeira vez numas eleições presidenciais, a maior minoria entre os que estão elegíveis para votar. E o veredito de José Dante Parra é que Joe Biden pode estar em apuros.
“É bom que ele comece a preocupar-se com o voto latino”, diz ao Observador numa entrevista por telefone. “Eu, pelo menos, estou muito preocupado.”
A fonte de tantas preocupações entre democratas é bem visível nas sondagens. Ponto prévio: os resultados que cada uma ponta para o voto latino variam muito, o que, no caso específico deste eleitorado, pode acontecer caso as entrevistas sejam feitas exclusivamente em inglês ou também em espanhol. Mas, acima disso, um ponto geral: nenhuma delas augura em toda a linha bom resultado entre latinos para Joe Biden.
A que pinta o cenário mais complicado de todos para o democrata foi publicada a 8 de setembro pelo Marist College para a NBC e dizia respeito especificamente à Flórida. Ali, o democrata aparecia em empatado a 48% com Donald Trump, mas o que mais sobressaía de todos os dados era o que dizia respeito ao voto latino: Donald Trump era o favorito, com 50%, à frente de Joe Biden, com 46%.
Outras sondagens são-lhe mais favoráveis, como a da Monmouth University, publicada a 15 de setembro e também relativa à Flórida, que deixa Biden com 49%, acima dos 46% de Donald Trump. Se essa vantagem existe, é muito graças aos latinos, dos quais 58% preferem Joe Biden e apenas 32% escolhem Donald Trump — ou seja, uma diferença de 26%.
Mas, apesar de a sondagem da Monmouth University parecer globalmente positiva para Joe Biden, há um detalhe que está a dar dores de cabeça aos democratas: em 2016, Hillary Clinton teve uma vantagem superior (27%, ou seja, mais 1 ponto percentual) entre latinos na Flórida e mesmo assim perdeu aquele Estado e as eleições gerais.
O “gigante adormecido” não ouviu o despertador em 2016 e Biden tardou a chamá-lo em 2020
Há quem lhe chame sleeping giant.
Sinónimo de “gigante adormecido”, tem sido utilizado várias vezes para descrever o voto dos latinos nos EUA. Com uma taxa de participação historicamente mais baixa do que as restantes minorias, os latinos não têm sido inteiramente fulcrais na decisão de eleições presidenciais. Porém, o facto de serem a maior minoria dos EUA e a segunda a crescer a maior ritmo (atrás apenas dos asiáticos) tem levado a uma grande expectativa pelo dia em que esse tal gigante decida acordar. A maior expectativa nesse sentido foi envidada pelos democratas — levando a que o luso-americano Ruy Teixeira, cientista político próximo do Partido Democrata, falasse de uma “maioria democrata emergente”.
Em 2016, mais do que em quaisquer outras eleições presidenciais, esta foi a expectativa entre democratas — e também o receio entre alguns republicanos. No dia das eleições, o jornal online liberal Daily Kos publicou um cartoon que espelhava bem esse sentimento. Nele vê-se Donald Trump ao lado de um sinal branco a dizer “Casa Branca Por Aqui”. Porém, o caminho é-lhe obstruído por um enorme muro, onde se lê em letras garrafais: “VOTO LATINO”. Do outro lado, alguém diz ao republicano: “Construímos o muro que você queria”.
#LATINOVOTE – "We built you that wall you wanted" by @LaloAlcaraz @HillaryClinton pic.twitter.com/z9cBuxImij
— Ric (@RicTorresII) November 7, 2016
De repente, com a derrota de Hillary Clinton, a expressão sleeping giant foi apagada do Partido Democrata e muitos terão pensado se, afinal, não tinha tudo passado de wishful thinking — ou seja, quando prevemos aquilo queremos que aconteça e não necessariamente aquilo que vai mesmo acontecer.
Stephen Nuño-Perez fica entre uma expressão e a outra. “A cada quatro anos, ficamos desapontados com o gigante adormecido. Temos uma espécie de miragem, que não passa de loucura, de que a participação eleitoral vai disparar. Mas, apesar disso, a participação eleitoral dos latinos tem subido de eleição para eleição e isso vai continuar a acontecer em 2020”, diz ao Observador este analista sénior do Latino Decisions, empresa de sondagens e estratégia política que está a trabalhar com o Partido Democrata nestas eleições.
De acordo com o Pew Research Center, estas são as primeiras eleições em que os latinos são a maior minoria entre aqueles que estão elegíveis para votar: 13,3%, em subida dos 11,9% de 2016 — ou, em absoluto, uma subida que vai de 27,3 milhões de eleitores latinos, há quatro anos, para 32 milhões nestas eleições. Por isso, para Stephen Nuño-Perez parece claro que o voto latino “vai continuar a quebrar recordes e aumentar o tamanho da sua porção de votos em cada estado”.
Ainda assim, o analista sénior do Latino Decisions avisa que, a haver um “gigante adormecido”, ele não vai dar sinais de vida “do dia para a noite”. “Isto é um processo gradual que se vive em estados como o Arizona, o Nevada, a Geórgia e até no Texas, e que dura há várias décadas”, diz.
Esta mudança, porém, encontra vários fatores de resistência, refere Nuño-Perez, elencando fatores que diz serem “sistémicos” e, por isso, difíceis de mudar. “É preciso olhar para a relação que os EUA têm com os latinos e perguntar: essa relação tem mudado?”, explica. “Falo da relação em que os latinos são uma fonte de mão-de-obra barata, falo da relação em que a polícia trata os latinos como se fossem a oposição. Isso mudou?” Embora coloque a questão como uma pergunta retórica, o analista da Latino Decisions refere também que a resposta é negativa — e sublinha que isso não se deve apenas aos “últimos quatro anos, com Donald Trump”, mas a décadas que estão para trás.
Por isso, refere, os latinos são “um grupo muito difícil de mobilizar, um grupo muito difícil de alcançar”. “Além da barreira linguística, há também uma barreira no que toca à maneira como se perceciona o voto e o seu valor”, explica. “Quando as pessoas não acreditam que o seu voto vai fazer um diferença, simplesmente não votam.”
Por isso, Stephen Nuño-Perez defende que o gigante adormecido está lentamente a acordar e que apenas precisa de tempo e condições. No entanto, há quem no Partido Democrata responda que, para acordá-lo, convinha chamar o seu nome — e que isso não tem acontecido.
Essa é opinião de José Dante Parra que, embora reconheça que há interesse por parte dos partidos — especialmente do Partido Democrata — no voto latino, sublinha que os esforços para conquistá-lo têm sido poucos. “A grande maioria dos latinos nunca foi contactada por um partido político, o que demonstra que há um investimento muito reduzido nesta comunidade e que os partidos só lhe prestam atenção de quatro em quatro anos”, diz. “E, nessas alturas, a sensação que fica junto destas pessoas é que isto não passa de uma mera transação.”
Aqui, José Dante Parra aponta claramente o dedo à campanha de Joe Biden por só esta semana que passou ter começado a fazer esse trabalho em estados fulcrais como a Flórida — que, além de ter uma quantidade importante de latinos, é também o swing-state com mais votos no Colégio Eleitoral.
Porém, a perceção deste consultor político foi de que o Partido Democrata se tem centrado acima de tudo em tentar a reconquista dos três estados que perdeu de 2012 para 2016 e que, no fundo, lhe custaram as eleições: Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, para onde chegou a estar agendada a convenção democrata até que ela foi reformatada por causa da pandemia. Quando lhe perguntamos se acha que o Partido Democrata está a valorizar mais a reconquista de votos que outrora teve e que em 2016 perdeu consideravelmente (o eleitorado branco sem ensino superior) do que o voto latino, José Dante Parra ri-se e diz: “Está a tirar-me todas palavras que tinha na boca”.
Trump ou Biden: quem tem o voto (decisivo) da classe trabalhadora americana?
Agora, aponta, tudo isso pode ter repercussões em estados como a Flórida, onde o eleitorado latino é importante e cada vez maior. E isso pode acontecer mesmo que a equipa de Joe Biden tenha aparentemente despertado para o problema que tem em mãos — com uma ajudinha de Mike Bloomberg, que deu 100 milhões de dólares (84,3 milhões de euros) à campanha do democrata só para a Flórida.
Enquanto isso, a campanha de Joe Biden contratou diretores de campanha em 11 estados, com a responsabilidade de atraírem especificamente o voto latino dentro das suas várias nuances. Ao mesmo tempo, estão a ser lançados anúncios em rádios e televisões em espanhol em várias partes do país, onde os narradores variam consoante o público-alvo — puxando pelo sotaque cubano em Miami (Flórida), pelo porto-riquenho em Orlando e Tampa (ambas igualmente na Flórida) e pelo mexicano no Arizona.
“Neste momento acho que a campanha de Biden já está consciente do problema que tem pela frente, mas durante muito tempo foram displicentes em relação à Flórida”, diz. “Eles deviam ter vindo para cá em força logo na primavera. Mas, como não o fizeram, Trump conseguiu tirar partido do vácuo.”
Biden, o comunista que preocupa Marita e Yesenia
Enquanto a campanha de Joe Biden se concentrava em reverter os efeitos da erosão do voto democrata em estados como a Pensilvânia e o Michigan, a campanha de Donald Trump tratava de pintá-lo a vermelho na Flórida — não vermelho à republicano, mas antes vermelho de comunista.
Ao longo dos últimos meses, a campanha de Trump tem transmitido anúncios em espanhol, sobretudo na Flórida, onde procura associar Biden a figuras como Nicolás Maduro e à ala esquerdista do Partido Democrata (encabeçada por Bernie Sanders, que apoiou Joe Biden desde que foi derrotado por ele nas eleições primárias). Nem o boicote que alguma esquerda norte-americana fez à Goya, uma marca de comida cubana sediada nos EUA, depois de o seu CEO ter declarado apoio a Trump, passa sem menção naqueles anúncios.
Noutros desses anúncios ouve-se uma conversa entre duas cubanas: Marita e Yesenia.
“Ai, senhores, todos os esquerdistas são iguais, que intolerantes são, imagina se chegam ao poder”, diz Marita. Yesenia responde que nem pode imaginar: “Agora querem levantar os impostos e cortar os fundos à polícia”. Marita tem resposta pronta: “Yesenia, viste-os a marchar com bandeiras do Che Guevara em [Key] Biscane?”. Esta responde-lhe com a sua conclusão: “Eu cá não voto em nenhum democrata, muito menos nesse Joe Biden”. Marita está de acordo: “Eu ainda menos. Vim para cá para ser livre”.
Não é por acaso que esta conversa surge entre duas mulheres com forte sotaque cubano e também não é coincidência que abundem as referências a “esquerdistas” e associações a uma ideia de falta de liberdade caso estes cheguem ao poder. Com estes anúncios, Donald Trump e a sua campanha estão, sobretudo, em busca dos latinos que sempre estiveram mais do lado republicano da política: os cubanos. E não só.
De acordo com José Dante Parra, tentar vender a ideia de que Joe Biden é um “cavalo de Tróia para o socialismo” (como diz repetidamente Donald Trump) a um latino de ascendência mexicana ou hondurenha “é tão eficaz como mandar açúcar para o mar a ver se ele fica doce”.
Porém, esse resultado muda quando o público-alvo são latinos de outras coordenadas e experiências. “Há uma fatia considerável da população que vem da Colômbia e lidou com as FARC e com a ELN, há pessoas da Nicarágua que viveram sob o regime de Ortega, pessoas que vêm da Venezuela e de Cuba”, explica José Dante Parra. “Com estes eleitores, a mensagem de que Joe Biden é comunista cola perfeitamente.”
É este o “vácuo” de que fala José Dante Parra e que Donald Trump preencheu — e que só agora Joe Biden procura retomar.
“Não é preciso inventar a roda, basta aparecer na Flórida”, diz aquele consultor político, algo exasperado. “É preciso aparecer e demonstrar às pessoas que elas não interessam só de quatro em quatro anos.”
Agora, ao contrário do que canta Luis Fonsi em “Despacito”, Joe Biden já não vai a tempo de falar ao eleitorado latino “pasito a pasito, suave suavecito”. Se quiser que 2020 seja o ano em que o gigante adormecido verdadeiramente despertou, terá de fazê-lo quanto antes. Caso contrário, no final de contas, passará a cantar outra música do porto-riquenho: “Échame la culpa”. Que é como quem diz: atira-me as culpas para cima.