Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

A evolução da economia americana tem um papel muito importante na forma como se irá processar a recuperação e o crescimento na década atual na União Europeia. As políticas económicas do Presidente Biden marcam uma rutura substancial com as de Trump tanto na parte interna como externa. Na parte interna assentam num aumento substancial da despesa pública, primeiro na fase de mitigação da pandemia e recuperação da economia, e depois em educação, saúde e infraestruturas. O seu financiamento baseia-se na continuação da expansão da dívida pública e no aumento dos impostos para a classe de mais elevado rendimento e subida dos impostos sobre os lucros. Do ponto de vista regulatório, destacam-se também grandes viragens, como a política contra as alterações climáticas e outras políticas ambientais, para além de uma maior intensidade regulatória em vários setores. Na frente externa, na continuação da política protecionista sobretudo em relação à China, no restabelecimento das relações transatlânticas e na renovação do multilateralismo.

Neste ensaio vamos concentrar-nos nas políticas económicas internas, tal como foram anunciadas na Plataforma Democrática e no que já foi publicado sobre as próximas medidas. Qual será o impacto sobre o crescimento económico dos EUA? E que tipo de crescimento? Qual o impacto na redistribuição do rendimento? Será a dívida pública da maior economia do mundo sustentável? E que influência terá nas taxas de juro e inflação a nível internacional? Estas são algumas das questões que estão na preocupação de muitos economistas europeus.

Antes de irmos aos dados, devemos advertir o leitor de que se perfila uma luta entra a ala mais à esquerda no Partido Democrático e a ala mais moderada, a qual vai marcar profundamente a forma como se vai desenrolar na prática a aplicação das medidas propostas. Talvez mais do que a oposição republicana no Congresso, dado que o Partido Democrático conseguiu a maioria em ambas as câmaras, embora com uma margem bastante estreita.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O desafio da recuperação da pandemia

Biden vai encontrar uma economia destroçada pela pandemia e uma América dividida social e economicamente. As últimas projeções do FED e do BEA estimam uma taxa de crescimento do PIB de -2,8% para 2020, não tão negativa como a que se previa no outono (-9%), depois de uma forte recuperação no 3º trimestre de 2020 (Gráfico 1). Para 2021, a OCDE previa em dezembro último uma taxa de crescimento de 3,2%, com forte recuperação na segunda metade do ano e no 1º trimestre de 2022, terminando 2022 a crescer 3,5%. Esta evolução pressupõe uma vacinação em massa rápida até ao outono de 2021, e o estímulo da política monetária e orçamental que vamos estudar mais detalhadamente.

O Congresso aprovou e o Presidente Trump assinou quatro pacotes de Programas de Mitigação e Resposta à Pandemia (Families First Coronavirus Response Act; Coronavirus Aid, Relief, and Economic Security (CARES) Act; Paycheck Protection Program and Health Care Enhancement (PPPHCE) Act; Response & Relief Act) ao longo de 2020, que totalizaram um impacto orçamental potencial estimado em 3,4 biliões de dólares (USD), ou seja, 16,5% do PIB (Quadro 1). O Presidente Biden propôs um novo programa que custaria 1,9 biliões de USD, que somado aos já aprovados totalizam um valor extraordinário de 5,3 biliões de USD, equivalente a 25,5% do PIB, o maior envelope adotado entre os países da OCDE.

Os maiores montantes são de apoio às famílias. Assim, depois de as famílias terem recebido um primeiro cheque de 1200 USD por pessoa no pacote CARES, e de um cheque de 600 USD por pessoa no pacote de dezembro, Biden propõe mais 1400 USD, para perfazer os 2,000 USD prometidos inclusivamente por Trump. Quanto ao suplemento ao subsídio ao desemprego, Biden propõe aumentar o cheque de 300 para 400 USD por semana durante 11 semanas. Estes programas são diferentes do que se tem adotado na UE, e que é copiado do sistema alemão, do lay-off temporário (kurzarbeit), em que o Estado paga uma parte maioritária do salário e a empresa o restante.

Tem havido várias críticas por diversos economistas aos programas de auxílio direto americanos. Primeiro, que para muitos trabalhadores o subsídio total de desemprego é superior ao salário, criando assim um desincentivo ao trabalho. O contra-argumento é de que este apoio é temporário, e que no tempo da pandemia não existem oportunidades de emprego substanciais. A outra crítica é que o auxílio sob a forma de transferência direta para as pessoas não estimula a procura, e é excessivo. Larry Summers, que pertenceu à administração de Obama, em comentário à Bloomberg, declarava recentemente que a quebra do PIB andaria por cerca de 70 mil milhões por mês em relação ao esperado, e o estímulo do último pacote de Trump já mais do que compensava aquela quebra com 230 mil milhões por mês, e as “pessoas não gastam não porque não têm ou querem gastar, mas porque não podem gastar, porque não podem ir aos restaurantes ou viajar, pelo que não se deveria estimular o consumo mais do que já se está a fazer.” Outros reputados economistas, como M. Boskin e John Taylor, também defendem o baixo impacto destes programas, baseando-se na chamada teoria do rendimento permanente do consumo, que diz que um acréscimo temporário do rendimento é em geral poupado pelos consumidores. Um inquérito feito aos consumidores americanos depois do pacote CARES revelou que apenas 15% dos recipientes gastou ou planeava gastar o cheque que recebeu, enquanto 33% poupou e 52% pagou débitos.

O American Rescue Plan propõe ainda 170 mil milhões para acelerar o programa de vacinação (vacinas gratuitas), aumentar a capacidade de produção das vacinas, e para uma expansão maciça dos testes, e 130 mil milhões para reabrir todas as escolas na primavera.

Uma alternativa mais apropriada seria restringir as transferências diretas, os cheques, aos grupos mais necessitados e afetados pela pandemia, colocando um limite máximo do rendimento para receber este auxílio. Duas medidas do pacote já vão neste sentido, como o crédito fiscal por criança e um aumento do crédito fiscal para o rendimento auferido (Earned Income Tax Credit). De acordo com cálculos do Centro para a Pobreza e Políticas Sociais da Universidade de Columbia, as políticas fiscais do pacote permitem reduzir a metade a taxa de pobreza das crianças. O programa de reabertura das escolas é também considerado como essencial para reduzir os danos na educação dos jovens.

Uma política orçamental expansionista e redistributiva

A política orçamental do novo Presidente, baseada na Plataforma do Partido Democrático, baseia-se em duas ideias: (i) aumentar as despesas sociais e em infra-estruturas; e (ii) dado o elevado défice orçamental criado pela pandemia, confiar na recuperação da economia para colmatar parte deste défice; e (iii) aumentar a receita fiscal através do aumento dos impostos sobre o rendimento e riqueza das classes de rendimento mais elevado, e subir a taxa de impostos sobre os lucros das empresas.

A reforma fiscal dos impostos sobre sociedades de Trump foi talvez uma das suas principais contribuições, não só pela redução da taxa efetiva para níveis competitivos a nível internacional, mas também pelo alargamento da sua base de incidência e modernização. Contudo, na sua campanha eleitoral, Biden defendeu a ideia de que o Ato de Redução de Impostos e Emprego de 2017 (Tax Cuts and Jobs Act) foi enviesado a favor das grandes empresas e dos indivíduos de elevados rendimentos. Para corrigir este desequilíbrio, propôs aumentar os impostos sobre os rendimentos mais elevados, limitar ou eliminar vários benefícios a seu favor, e usar o rendimento fiscal para prioridades na despesa e baixar a carga fiscal da classe média.

Especificamente, as principais medidas fiscais propostas são:

  • Aumentar as taxas do imposto sobre os rendimentos mais elevados de 37 para 39,6%
  • Taxar os ganhos de capital de dividendos às taxas normais para os rendimentos anuais superiores a 1 milhão de USD
  • Estender o imposto para a segurança social de 12,5% aos salários superiores a 400 mil USD anuais
  • Aumentar a taxa do imposto sobre os lucros das sociedades de 21 para 28%
  • Imposto mínimo de 15% sobre o rendimento contabilístico de grandes sociedades (mais de 100 milhões de USD anuais)
  • Taxar os lucros das subsidiárias de empresas americanas a 21%
  • Impor uma sobretaxa de 10% (offshoring penalty) sobre os lucros na produção de empresas americanas que enviem esta produção para os EUA

O Plano Fiscal Biden espera gerar 4 biliões de USD em rendimentos adicionais durante uma década, embora, como veremos, esta estimativa seja otimista. De acordo com o Tax Policy Center, as famílias das classes de mais elevados rendimentos, correspondente a 20% do rendimento total suportarão 93% do acréscimo de carga fiscal, com o topo 1% a suportar três-quartos da carga.

No que respeita aos principais programas de política económica com incidência sobre a despesa pública, o Programa de Biden inclui os programas seguintes:

— Programa da educação de cerca de 1,9 biliões de USD nos próximos 10 anos, compreendendo:

  • Cobertura universal do ensino pré-escolar (até 5 anos de idade)
  • Expandir o financiamento para as escolas Title I (onde pelo menos 40% dos estudantes são de famílias de baixos rendimentos)
  • Dois anos da Universidade sem que os alunos incorram em dívida
  • Ensino superior grátis para todos os estudantes de famílias de baixos rendimentos
  • Perdoar as dívidas de educação a pessoas que tenham menos de 125 mil USD por ano

— Estender os seguros de saúde a 97% dos americanos dentro de 10 anos

— Programa de investimentos em infraestruturas de 1,3 biliões numa década, em sistemas de água e saneamento, infraestruturas rodoviárias, ferrovia em alta velocidade, sistemas de trânsito urbano e banda larga rural

— Programa de energias limpas, incluindo 400 mil milhões em I&D em energias limpas durante uma década, 5 mil milhões no desenvolvimento de baterias, etc.

Este programa pretende, pois, reforçar o sistema educacional americano, que tem perdido terreno nas últimas décadas, ao mesmo tempo que promoverá uma maior equidade social. Na verdade, os problemas de desigualdade racial, que têm marcado profundamente os últimos anos, só poderão ter solução a longo prazo através de um grande esforço para alargar o acesso à educação das crianças de grupos vulneráveis e de melhorar a oportunidade destes jovens em adquirirem as qualificações necessárias para o mercado de trabalho.

O alargamento dos seguros de saúde à totalidade da população é também uma aspiração que continua ainda por satisfazer, num Estado dos mais ricos do mundo. O programa de modernização das infraestruturas já consta da agenda de vários presidentes, vejamos se agora finalmente se concretiza. Finalmente, o programa de combate às alterações climáticas alinhará os EUA com os outros países desenvolvidos na solução de um problema planetário.

Distribuição do rendimento, pobreza e oportunidades

Não é de surpreender que a Plataforma Democrática tenha posto ênfase no problema da desigualdade do rendimento e na redistribuição. Na última década têm sido publicados dezenas de artigos científicos dando evidência estatística da crescente desigualdade na sociedade americana, sobretudo desde os anos 1980. O Gráfico 2 mostra a evolução do coeficiente de Gini, que mede o grau de desigualdade de rendimento num país: quanto maior é o índice mais desigual é o país. O máximo de desigualdade seria 1.

O discurso da desigualdade do rendimento e riqueza tem sido propagado intensamente na última década por académicos como Piketty, Saez, Zucman e Stiglitz. Estimativas recentes mostram que a classe de americanos que corresponde aos 0,1% mais ricos aumentou a sua riqueza de 7 para 14% entre 1978 e 2016. Este grupo detém tanta riqueza como os 90% de menor riqueza. A principal forma de riqueza são as participações no capital de empresas e ações, enquanto que os 90% de menor riqueza são pensões e casa de habitação.

Embora seja relativamente consensual que a desigualdade aumentou, já é controverso se a classe média e de menor rendimento não tenham aumentado o seu rendimento real desde os anos 1980, como o grupo de académicos acima citado defende. O problema é que não se pode fazer a simples comparação de um mesmo quintil ao longo do tempo, porque as caraterísticas da amostra diferem substancialmente. Por exemplo, o quarto quintil atualmente tem uma proporção muito maior de reformados. Uma forma de contornar o problema é comparar trabalhadores com a mesma idade (Gráfico 3), que mostra aumentos em todos os quintis.

Do lado positivo, as desigualdades baseadas no género ou na raça diminuíram, apesar de permanecerem elevadas. A taxa de pobreza dos hispânicos é de 23,6% enquanto a dos brancos não hispânicos é de 10,1%. Esta é, pois, uma das maiores preocupações da Administração Biden, e que continua a dominar o discurso político.

Dentro das políticas mais frequentemente propostas pelos grupos de esquerda, figura a maior carga fiscal que deveria ser imposta aos grupos de maior rendimento, como o Lab sobre Desigualdade Mundial da École Economique de Paris preconiza, sobretudo aumentando os impostos sobre a riqueza deste grupo.

A desigualdade de rendimento e riqueza, antes da intervenção pública, é uma distribuição endógena que resulta de muitas variáveis estruturais e institucionais, pelo que é difícil de controlar. Por isso, mais importante em termos de política económica, é (a) o grau de pobreza para atender aos mais vulneráveis e a (b) igualdade nas oportunidades. Debrucemo-nos, pois, sobre estas duas medidas.

Segundo dados oficiais, a taxa de pobreza nos EUA reduziu-se de 19% em 1964, quando o Presidente Johnson declarou “guerra à pobreza”, para 14,8% em 2014, incluindo a redução para metade devido às políticas sociais. As políticas sociais com mais impacto são os créditos fiscais, a ajuda alimentar, subsídios à habitação e para educação. A medida de pobreza da Universidade de Columbia dá uma redução ainda mais acentuada, de 25,6 em 1968 para 16% em 2014. Não é de surpreender que tenham sido as políticas sociais dos Presidentes democratas (Clinton e Obama) que nas últimas décadas contribuíram para maior redução da pobreza.

As estatísticas oficiais dos EUA não são comparáveis com as europeias. O conceito utilizado é o de pobreza absoluta, baseado no standard de vida mínimo, medido em USD, enquanto que a UE utiliza o conceito de pobreza relativa que corresponde à percentagem da população que está abaixo de um patamar relativo de rendimento. A OCDE utiliza 50% do rendimento médio. Este último conceito depende da distribuição do rendimento, enquanto o primeiro não. Notten e Neuborg calcularam a medida absoluta para um conjunto de países.

O Quadro 2 mostra que a medida relativa de pobreza antes dos impostos e transferências nos EUA não é muito diferente dos países europeus, e mesmo inferior à Alemanha, Espanha e Portugal. Porém, depois dos impostos e transferências, a taxa nos EUA é cerca do dobro da Holanda e Alemanha. Em Portugal permanece muito acima da dos EUA e cerca do triplo da Holanda e Alemanha. Porém, a medida absoluta depois dos impostos e transferências mostra um valor de quase um terço do anterior para os EUA, que embora claramente superior ao da Dinamarca, não é muito diferente de outros países mais desenvolvidos da UE, e menos de um terço da taxa para Portugal. Em conclusão, a taxa de pobreza nos EUA, embora superior à dos países nórdicos, não se afasta muito de países como a Holanda e Alemanha, depois dos impostos e políticas sociais.

Os estudos sobre mobilidade social mostram que nos EUA tem havido redução na mobilidade social, mas esta ainda permanece elevada. Chetty et al. encontraram o resultado de que as crianças das classes mais pobres de rendimento têm uma probabilidade de 70% de exceder o rendimento dos seus pais, enquanto que as crianças do topo 10% apenas têm 33% de exceder o rendimento dos pais, o que revela a regra da “reversão para a média”.

Política industrial ativista e medidas protecionistas

Na sua campanha eleitoral, Biden foi a favor de uma política industrial nacional e ativa. Segundo a sua agenda: voltar a construir e construir melhor (build back better) baseada numa estratégia de industrialização e inovação. Os dois braços desta estratégia são: (i) 400 mil milhões em compras (buy American) em veículos elétricos, infraestruturas, equipamentos, medicamentos e vacinas e produtos eletrónicos e de inteligência artificial; e (ii) 300 mil milhões em financiamento para I&D (investigação básica, tecnologias críticas para a competitividade, seed money para comercializar I&D). Outra preocupação é reavaliar as cadeias de produção em termos de risco e valor.

A noção de que Washington deve ajudar diretamente a indústria nacional através de ajuda financeira, subsídios fiscais e política de comércio externo é popular, tanto entre Democratas como Republicanos. Os políticos pensam que é uma forma de ajudar os que foram deixados para trás e responder aos desafios económicos postos pela China, especialmente numa época de populismo.

Os Democratas tencionam tornar mais estritas as leis que protegem as empresas nacionais nos leilões das instituições públicas, tais como as regras para concursos em projetos de infraestruturas. Uma das medidas protecionistas é também um novo crédito fiscal, designado por “Made in America”, de 10% para empresas que façam investimentos que façam o reshoring de empregos, revitalizando fábricas fechadas ou em vias de ser fechadas.

Défices orçamentais históricos: será a dívida pública sustentável?

Caso o Congresso aprove estas políticas orçamentais, os EUA vão ter os maiores défices orçamentais entre os países da OCDE, com um peso da dívida pública superior ao que se verificou na II Grande Guerra. Embora haja um forte impacto positivo no PIB no curto prazo, por estímulo na procura agregada, todas as instituições que fazem projeções a médio e longo prazo estimam um impacto negativo sobre o PIB.

As estimativas do défice orçamental para 2020 da OCDE em dezembro eram de 15,4% do PIB. O CSBR projetava para 2021, antes do pacote Biden, um défice de 10,4% — com o pacote Biden (American Rescue Plan) poderá subir a 16-18%. Em dezembro, a OCDE previa que o PIB dos EUA cresceria 3,2% em 2021 e 3,3% em 2022. Com o pacote do Biden poderá ser 4,9-5,3% em 2021 e 4,5-4,8% em 2022, por efeito keynesiano da política orçamental.

Como vários economistas têm avançado, as taxas de juro reais negativas são fruto do QE do FED, pelo que a questão é quanto mais dívida pública os mercados – e o FED – absorverão sem que as taxas de longo prazo das taxas da dívida pública a longo prazo comecem a subir sustentada e substancialmente.

O centro Penn-Wharton fez uma análise a 10 anos da Plataforma Biden. Segundo esta análise as receitas fiscais subiriam 3,4 biliões de USD e a despesa 5,7 biliões. As famílias com um rendimento inferior a 400 mil USD anuais teriam um decréscimo do rendimento pós-impostos de 0,9%, enquanto o grupo com rendimento superior àquele montante (topo 1,5%) teria uma quebra de 17,7%. As áreas com maior acréscimo de despesa seriam a educação, com 1,9 biliões de USD em dez anos, e infraestruturas e I&D, com 1,6 biliões. Devido aos efeitos macroeconómicos, o PIB em 2030 seria 0,4% inferior ao cenário sem Plano, e a dívida pública quase igual. A Tax Foundation estimou um efeito macroeconómico mais negativo, com uma redução do PIB de 1,6%, do stock de capital de 3,75% e de uma perda de 542 mil empregos.

As projeções do Congressional Budget Office para a evolução da dívida pública de setembro do ano passado (Gráfico 4) mostram que a dívida pública sobre o PIB deverá, pelo menos, igualar o rácio durante a II Grande Guerra, mais do que duplicando o valor que tinha atingido antes da crise financeira global.

As principais conclusões são que: (i) As propostas de Biden não reduzem o peso da dívida pública no horizonte de 10 anos, depois da sua explosão desde a grande recessão de 2009; e, (ii) O impacto da política orçamental é negativo sobre o investimento e o PIB devido ao forte aumento de impostos sobre a classe mais elevada de rendimentos.

Como conseguirá Biden passar o pacote no Congresso? Uma das formas é através do chamado “processo de reconciliação” orçamental em que é necessária apenas uma maioria simples, que os Democratas devem ter assegurado. Porém, o Senado necessita efetivamente de uma super-maioria de 60 votos que tem sido consagrada nas últimas décadas devido à possibilidade duma “filibuster” que bloqueia a aprovação de qualquer medida. Como Biden tem repetido que vai procurar um apoio bipartidário, precisa dos votos de 10 Republicanos, caso todos os senadores do seu partido o apoiem, o que não é um dado adquirido, dadas as divisões dentro do Partido Democrata.

De facto, a última campanha eleitoral revelou a forte divisão do Partido Democrático entre a ala esquerda de Bernie Sanders e Elizabeth Warren e a fação mais moderada de Biden. E aquela ala já fez saber de diversas formas de que não aceitará uma política mais centralista da nova Administração. Da ala mais moderada observamos que uma grande parte das nomeações de Biden foram de veteranos da Administração Obama.

Conclusões e implicações das políticas para a União Europeia

Depois de duas crises profundas: a crise financeira global de 2008 e a crise pandémica de 2020, entramos numa era de elevado endividamento público, a níveis nunca observados desde a II Grande Guerra. Como poderá esta dívida ser absorvida, num período de baixa inflação e crescimento?

Como sabemos, as principais formas de reduzir a dívida são um choque inflacionista que provoque taxas de juro negativas, crescimento sustentado do PIB real e manter um excedente primário durante um período prolongado. Uma das condições necessárias mínimas é manter uma tendência decrescente do rácio da dívida sobre o PIB. Ora, se observarmos o Gráfico 5 que apresenta as projeções mais recentes da dívida pública, nem os EUA nem a zona Euro mostram evidência de que pretendem abraçar esta política.

Segundo as estimativas de dezembro da OCDE, a zona do Euro deve experimentar uma queda do PIB (-7,5%) de mais do dobro dos EUA (-3,5%), e com taxas de crescimento semelhantes para 2021 e 2022, o que mostra mais uma vez a maior fragilidade da economia europeia. O défice orçamental da zona Euro estima-se que atinja 8,6% em 2020 e projeta-se a 6,5% do PIB em 2021, em comparação com 15,4 em 2020 e 11,6% (que se estima agora em 16-18%) em 2021 nos EUA. A dívida pública da zona Euro estima-se em 119% em 2020 e deve estabilizar em 123% em 2022, enquanto que nos EUA deve atingir 128 e 141%, respetivamente (Gráfico 5). Assim, o diferencial do peso da dívida entre as duas jurisdições que andava em cerca de 13 pontos percentuais antes da pandemia sobe para 18 pontos percentuais.

Vários reputados economistas, como Olivier Blanchard, antigo economista chefe do FMI, têm defendido que os governos dos países desenvolvidos não se devem preocupar com os elevados níveis de endividamento porque as taxas de juro são muito baixas e as expetativas de inflação continuam baixas, o que significa que as expetativas são de que as taxas de juro continuarão baixas por bastante tempo. Mas são possíveis dois equilíbrios, o que Blanchard refere, mas é também possível que dado a elevada oferta de ativos da dívida pública nos portefólios leve a uma baixa do seu preço, o que significa que os investidores requeiram taxas de juro cada vez mais elevadas para o manter, o que pode levar a uma situação de insustentabilidade.

Como afirma a Presidente do bipartidário Comité para um Orçamento Federal Responsável, qualquer pacote financiado por dívida deve refletir as necessidades económicas e não as políticas. Com as políticas correntes, a dívida pública irá quase duplicar até 2050,” depois da explosão recente.” Além disso, os governantes têm de procurar resolver os problemas dos défices crescentes da segurança social, Medicare e outros programas. A prioridade depois da estabilização da pandemia, para criar expetativas de dívida sustentável é elaborar um programa de consolidação orçamental de forma a gerar uma trajetória descendente do rácio da dívida pública sobre o PIB.

Que consequências para a União Europeia? Primeiro, tanto para os EUA como para a UE são cruciais a boa e acelerada gestão das vacinas e das novas ondas catastróficas do vírus, que vão marcar a sua Administração. Segundo, perspetiva-se uma política orçamental e fiscal expansionista e redistributiva que poderá ter implicações numa subida das taxas de juro a nível mundial e subida das expetativas inflacionistas. Terceiro, a política industrial e protecionista não irá facilitar as relações transatlânticas e exigirá negociações inteligentes pela nossa parte. Quarto, apesar do efeito keynesiano nos próximos dois anos, as políticas económicas não devem reforçar a taxa de crescimento do PIB potencial, pelo que não será de supor um efeito multiplicador por parte da maior economia mundial.

Abel Mateus é professor universitário de Economia. Doutorado pela Universidade de Pennsylvania, EUA. Foi economista sénior do Banco Mundial e administrador do Banco de Portugal. Presidiu à Autoridade da Concorrência.