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JORGE_GONCALVES

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Jorge Silva Melo: "Gostava de ser velho e não saber"

"Gosto de ver pessoas com opiniões diferentes e desejos diferentes. Isso é o que me interessa numa peça". Entrevista com o ator, encenador, dramaturgo e cineasta que morreu aos 73 anos.

[esta entrevista foi originalmente publicada a 27 de abril de 2016 e atualizada a 14 de março de 2022, a propósito da morte de Jorge Silva Melo]

O “Jardim Zoológico de Vidro”, de Tennessee Williams, estaria em cena em breve no Teatro da Politécnica, numa encenação de Jorge Silva Melo. Era a terceira peça de um ciclo que os Artistas Unidos dedicavam então ao dramaturgo americano. Em cena já tinham estado “Gata em Telhado de Zinco Quente” e “Doce Pássaro da Juventude”. Haveria de seguir-se a quarta e última peça, “A Noite da Iguana”.

Protagonizada por Isabel Muñoz Cardoso, João Pedro Mamede, José Mata e Vânia Rodrigues, “Jardim Zoológico de Vidro” foi o primeiro grande êxito de Tennessee Williams, estreado em Nova Iorque em 1944, onde fez quase duas mil representações. Foi, assegurava na altura Jorge Silva Melo, a primeira vez que os palcos da Broadway, habituados aos romances protagonizados por personagens de altíssima sociedade, se viram ocupados por estes pobres de classe-média muito baixa, trabalhadores assalariados, que poderiam ser vencidos da vida mas que, lutadores, não desistem de tentar um futuro, não se deixam derrotar. Uma realidade que Tennessee Williams conhecia bem: esta é uma das mais autobiográficas das suas peças.

Nesta entrevista, Jorge Silva Melo (que morreu a 14 de março, aos 73 anos) falou-nos sobre a peça, sobre o dramaturgo americano mas também sobre o filme que na altura tinha estreado há poucas semanas, “Ainda Não Acabámos – Como se Fosse Uma Carta”, no qual o realizador recordou a Lisboa dos anos 50 onde cresceu, a juventude dos anos 60, os filmes que viu, o teatro que fez e os tempos d’A Capital, o espaço no Bairro Alto, em Lisboa, onde os Artistas Unidos tiveram a sua sede (e que juntava outras companhias e diferentes artistas), mas que tiveram de deixar em 2002.

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Não podia ter um ciclo dedicado a Tennessee Williams sem este “Jardim Zoológico de Vidro”, uma das mais autobiográficas das suas peças.
Isto é uma peça de adeus: à sua juventude, à sua casa, à sua família, à sua irmã, a quem ele autorizou uma lobotomia – cortaram-lhe um pedaço de cérebro, inspirados pelo Egas Moniz, nosso primeiro Prémio Nobel, e ela ficou um vegetal. Mas é, sobretudo, um adeus à mãe. Ele olha para trás para ver de onde veio, e pede desculpa à mãe e à irmã: não pude fazer mais por vocês. É uma peça dolorosa. É um remorso. Começou por ser uma novela, chamada “The Gentleman Caller”, que ele quis adaptar a Hollywood, mas não foi aceite. Só mais tarde e muito mais cara. Antes disso, Williams tinha muito pouco dinheiro, era empregado numa fábrica de calçado, como o rapaz da peça. E quando sai de casa da mãe acaba por viver na má vida, entre Nova Iorque, Los Angeles e St. Louis, em casas de passe.

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Porque teve a peça tanto êxito?
Porque fala da derrota do chamado sonho americano. A grande propaganda da América do pós-guerra é “nós somos a democracia, nós somos os vitoriosos, a saúde, a energia, o desporto, o futuro”. Mas há umas pessoas que foram deixadas para trás. Como a mãe da peça, uma lutadora que se agarra às ilusões que ainda tem para tentar sobreviver e nunca se dar por vencida. A grande surpresa foi a família pequeno-burguesa. Já tinha havido evidentemente pobres no palco, mas muito poucos e quase tudo sobre a grande depressão, a miséria extrema de As Vinhas da Ira, não era a família pequeno-burguesa de que os espetadores de teatro fazem parte.

Foi uma peça fundadora do teatro americano do séc. XX?
É a partir daqui que são possíveis peças como “A Morte de um Caixeiro Viajante”, de Arthur Miller, que também tem uma forma narrativa com flashbacks, narração, sonhos, muito desregrada. Tudo isso se deve à abertura que o Tennessee foi roubar a Hollywood. Ele foi buscar ao cinema uma série de processos narrativos que nunca tinham aparecido no teatro. E libertou o teatro das suas formas: a peça em três atos, com a intriga que é exposta no I ato, desenvolvida no II e resolvida no III.

E a primeira dessa vaga foi este “Jardim Zoológico de Vidro”?
Foi. Na Europa as pessoas que fizeram estas peças foram o Visconti, o Ingmar Bergan, o Peter Brook. Os rapazes do pós-guerra viam nestas peças uma modernidade que a Europa não estava a fornecer. E esta foi a primeira. Há um texto do Tennessee, chamado “A Maldição do Sucesso”, em que ele diz: “Foi horrível ter este êxito com a peça porque nunca mais serei capaz de escrever outra com esta importância e agora habituei-me aos hotéis de cinco estrelas e a beber whisky do melhor. A minha vida está estragada. Deixei de ter assunto”.

"O cinema era a liberdade. Os filmes do Ingmar Bergman estreavam na sala grande do Império, agora Igreja Maná. Essa ambição de um cinema para toda a gente deixou de existir. Agora há cinema para adolescentes e cinema para senhoras divorciadas ou viúvas, com a Meryl Streep."

Mas arranjou assunto para as peças que vieram depois.
Foram enormes êxitos também. Esteve dois anos parado e a embebedar-se. Não sabia o que havia de escrever. Depois começa a sua grande colaboração com o Elia Kazan e escreve “Um Elétrico Chamado Desejo”, a “Gata em Telhado de Zinco Quente”, o “Doce Pássaro da Juventude” e continua até que, em 1963 ou 1964 escreve “A Noite da Iguana”, com que culmina a fase dos grandes êxitos. Depois disso nunca mais terá nenhum assim. Só agora estão a ser redescobertas as peças finais dele.

Diz que esta é uma peça do adeus. Um adeus que está também muito presente no seu filme, “Ainda Não Acabámos – Como se fosse uma carta”. Um adeus a uma Lisboa que já não existe.
Ontem andei pela Baixa e fiquei espantadíssimo. Era um sítio onde me sentia em casa e agora não percebo nada. As lojas parecem-me todas a mesma, os restaurantes também. A minha irmã vai daqui a uns dias fazer 80 anos e não sei onde a levar a almoçar. Devia ser um sítio de que ela goste, de onde tivesse memórias mas já não há nada. Desapareceu tudo. Suponho que seja normal. É isso a velhice. Mas faz-me impressão a transformação ter sido tão rápida. Estamos aqui na Rua da Escola Politécnica há quase quatro anos. Já quase não há nenhuma das lojas que abriram quando já cá estávamos. Abriram, fecharam e já são outras. É estranhíssimo. Não consigo habituar-me.

Fala de uma Lisboa enorme…
A Lisboa eu usava. O uso que eu fazia de Lisboa em novo. Ia do Beato ao Alto de Santo Amaro. Agora já não. Isto mingou. Quando tenho que ir ao Campo Grande já é uma aventura. Os velhos vão delimitando o seu campo. Este campo onde vivo agora – moro ao pé do Rato, vou a Campo de Ourique, ao Príncipe Real, à Estrela – não tem uma livraria, um cinema. Há a Ler, mesmo no limite, no Jardim da Parada, e uns alfarrabistas na Estrela. Para quê passear na rua se não for para ver montras interessantes, apelativas? Entrar nas lojas?

No filme fala muito sobre o cinema, os filmes que viu, as salas – desaparecidas – onde ia.
O cinema era a liberdade. As salas já desapareceram todas, ainda está em ruínas o Paris. Era o cinema de grande ambições populares, que chamava todo o género de espetadores, cultos e incultos. Os filmes do Ingmar Bergman estreavam na sala grande do Império, agora Igreja Maná. Essa ambição de um cinema para toda a gente deixou de existir. Agora há cinema para adolescentes e cinema para senhoras divorciadas ou viúvas, com a Meryl Streep.

[o trailer de “Ainda não Acabámos, Como se Fosse uma Carta”:]

Porque quis voltar a esse tempo?
Quis contar as histórias de uma cidade que se transformou de uma maneira que não me encanta.

Fala também sobre o teatro e A Capital. Ainda não perdoou o despejo e a não concretização do projeto Centro de Artes da Capital?
Não. Não perdoo terem recusado um projeto que era barato, que era possível, e que ia transformar não só o teatro que se fazia como aquele local. O Bairro Alto seria diferente, não seria só copos, se lá estivessem a trabalhar naquele edifício, durante o dia, como estavam, cerca de 80 a 100 pessoas. E mesmo a relação entre as companhias teria sido diferente. Estava eu, o João Fiadeiro, a Solveig Nordlund, esteve a Eira, estiveram umas seis companhias, cada qual com umas dez ou vinte pessoas, o que permitia um desenvolvimento real de entreajuda, de companheirismo, de discussão, nos mais modestos cafés ali ao pé. Teria sido uma coisa radicalmente inovadora na Europa. Mas não existiu e não vai existir nunca mais.

Perdeu-se uma oportunidade?
Há uma história muito engraçada. Na Exposição do Mundo Português, Norberto Araújo, um dos gráficos, tentou convencer os organizadores a fazerem um museu de teatro. O tipo que era representante do Governo achou boa ideia, que se tinha que organizar uma ida a Paris, para ver o museu do teatro. Quando lhe disseram que não havia nenhum, disse que então também não se ia fazer cá. Ou seja, se não há um modelo para ser importado e comprado não se faz. Não se fez o museu do teatro. Tal como não se fez A Capital. Não havia nem em Londres, nem em Paris nem em Roma um armazém no centro da cidade que pudesse permitir aquelas valências todas. Não foi feito e nunca mais será feito. A não ser que seja para ser fado, cantado em francês.

Depois de saírem de lá em 2002 e de uma longa travessia no deserto, onde andaram de sala em sala, passando pelas Mónicas e pelo Braço de Prata, arranjaram finalmente aqui uma casa na Politécnica.
Uma casinha. E em condições materiais muito difíceis – mesmo com obras feitas há quatro anos continua a chover cá dentro, temos cenários estragados, já tivemos que anular ensaios, o guarda-roupa de vez em quando fica inutilizado. A Reitoria diz que vai fazer as obras que devia ter feito desde início mas ainda nada. E as condições de convivência também são difíceis. Há aqui aos sábados uma feira mesmo à porta, o som da entra para dentro dos espetáculos. Temos matiné ao sábado, se calhar temos de anular as próximas por o barulho ser tão grande. Não podemos vender bilhetes para os espetadores virem ouvir os ruídos da feira. É difícil. Não é uma convivência estimulante nem agradável.

"O drama, ou seja, a apresentação de vários pontos de vista numa peça, foi substituído pela proclamação de verdades. E isso aborrece-me. Não gosto de ver verdades. Gosto de ver pessoas com opiniões diferentes e desejos diferentes. Isso é o que me interessa no desenrolar de uma peça. Estar a ver conferências, por muito poéticas que sejam... Que chatice."

No título do filme diz: ainda não acabámos.
Não. Ainda não acabámos o que temos para fazer: inventar um teatro que seja amigo das pessoas. Não um teatro de espetáculo, de espavento, mas um teatro companheiro do espetador. É isso que me interessa e que quase conseguimos n’A Capital. Aqui tentamos fazer isso.

Mal reconhece a cidade onde vive. Reconhece o teatro a que vai?
Vou pouco, só consigo ir, por razões pessoais, aos domingos. Gosto de muitas coisas que vejo. É um espanto ver a qualidade dos atores. Mas nem sempre gosto das propostas artísticas, que me parecem muito modestas e muito iguais. Mas isso talvez seja por ser velho e gostar de uma outra coisa que já não faz sentido agora.

Insiste em dizer que está velho, mas trabalha com atores muito novos e o seu público não é apenas feito de cabeças grisalhas. Antes pelo contrário.
Tenho um público misturado, entre gente bastante nova e gente da minha idade. Não sei. Sei que o teatro que me interessa não está a ser muito feito em Lisboa. Passou-se à conferência e não ao drama. O drama, ou seja, a apresentação de vários pontos de vista numa peça, foi substituído pela proclamação de verdades. E isso aborrece-me. Não gosto de ver verdades. Gosto de ver pessoas com opiniões diferentes e desejos diferentes. Isso é o que me interessa no desenrolar de uma peça. Estar a ver conferências, por muito poéticas que sejam… Que chatice.

Faz uma grande homenagem aos atores com quem tem vindo a trabalhar ao longo de todos estes anos. Também eles a envelhecer…
É bem feita! Não sou só eu.

Nota-se uma relação de grande proximidade. Não há a distância causada por ser o diretor da companhia?
Espero bem que não. Quer dizer, agora aumenta, estou velho, os atores começam a olhar para mim como se eu fosse um mestre. Tento que isso não aconteça.

Não se sente um mestre?
Nada, nada. Gostava mais de estar ao lado deles, a tentar descobrir os caminhos. Mas é natural. Quando digo uma coisa eles acham: ‘ah, ele é velho, sabe’. Eu gostava de ser velho e não saber.

Jardim Zoológico de Vidro, até 4 de junho no Teatro da Politécnica, em Lisboa; 3ª e 4ª às 19h, 5ª e 6ª às 21h, Sáb. às 16h e às 21h; bilhetes a 10 euros

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