[Entrevista originalmente publicada a 18 de outubro de 2020, atualizada a propósito da morte de Julião Sarmento, a 4 de maio de 2021]
Julião Sarmento abriu o livro Café Bissau e começou a desfolhar instantâneos da sua vida. Foto número um: “Isto [máquina de bebidas] é no Japão, em 1997.” Vira a página: “Esta [torso de uma rapariga] é de 1975, algures na Andaluzia.” Nova imagem: “Esta [paisagem bucólica com outdoor da coca-cola] é nos anos 60, na fronteira de Badajoz. A primeira coisa que se fazia quando se chegava a Espanha era beber uma coca-cola, que era proibida em Portugal, vá-se lá saber porquê.”
A entrevista aconteceu numa zona industrial perto de Sintra, no armazém de 500 m2 onde o artista passou a trabalhar sozinho durante o confinamento, mas a viagem prosseguiu por destinos mais exóticos. África do Sul, Seychelles, Venezuela. Mulheres, ruínas, animais. Anos 70, 90, 2000.
Sarmento morreu a 4 de maio de 2021, aos 72 anos. Meses antes, nesta entrevista, e com 71, mostrava energia de muitos menos, ia saltando de paragem em paragem. Uma piscina, o 25 de Abril, Sasha Grey, ex-atriz de filmes pornográficos, junto a uma janela em Malibu. Imagens captadas com todo o tipo de máquina, incluindo as Instamatic da Kodak, sem qualquer tipo de regra, exceto uma intenção “artística”, que o acompanha desde que se lembra.
Lançado no final de 2020, Café Bissau reúne uma seleção das fotografias que o autor tirou ao longo de mais de 50 anos, entre 1964 e 2017. Podia ser uma autobiografia ou até mesmo uma biografia, mas Sarmento recusa as categorias. A curadoria pertence aos fundadores da editora Pierre von Kleist, André Príncipe e José Pedro Cortes, que ao longo de cinco anos perscrutaram o seu arquivo de mais de 10 mil imagens. “É uma escolha impessoal…” – hesita no segundo adjetivo – “e crua.” Em que cada imagem “é o que é.”
Não os conhecendo pessoalmente, o que o levou a aceitar o desafio dos editores da Pierre von Kleist e disponibilizar-lhes o seu arquivo pessoal?
Não os conhecia pessoalmente, mas respeitava-os a nível editorial. Mas também gosto muito de arriscar. Às vezes de uma maneira louca, mas enfim.
Que papel teve no processo de fazer este livro?
A minha participação no livro foi ter dito, “não pomos datas, nem títulos, nem locais, nem nada”. Porque acho divertida esta noção de um livro que só tem imagens e não tem texto. E também acho interessante não se ser exato em relação à localização temporal ou geográfica das coisas. A escolha das imagens, a forma como estão organizadas, o design, tudo, foram eles. Claro que fui acompanhando. Iam mandando PDFs.
Nunca discordou?
Houve duas imagens que achei que não deviam ser publicadas.
Por razões artísticas? Pessoais?
Artísticas, sobretudo. Achei que não eram suficientemente boas.
E de onde vem o título [Café Bissau]?
Foram eles! [ri-se] A única coisa que fiz foi fotografar o Café Bissau. A minha formação é em arquitetura, e em 1975 fiz parte de uma equipa SAAL [programa de construção de habitações que se propunha a colmatar necessidades de populações desfavorecidas]. O bairro que ajudei a construir é um bairro chamado Pinheirinhos, em Setúbal. Isto [aponta para foto da capa] é um café que existia nos arrabaldes de Setúbal, onde eu ia beber café com o resto da equipa.
Andava sempre com a máquina fotográfica?
Quase sempre. De 35 mm. Havia sempre a hipótese de apanhar qualquer coisa que me interessasse. Não era fiel a nenhum modelo. Tenho aqui imagens tiradas com uma Kodak Instamatic, que era só carregar.
A foto mais antiga do livro é de 1964. Tinha 16 anos. Como começou a fotografar?
Comecei a fotografar antes disso, com uns 14 anos. Sempre gostei de fotografia. Costumava pedir a máquina emprestada ao meu pai. Um dia ele ofereceu-me uma.
Tinha já um ímpeto artístico?
Desde muito novinho que soube que queria ser artista. Havia sempre essa relação. Também fazia instantâneos normais, familiares, como toda a gente faz. Mas almejava outro tipo de coisas.
Não sendo uma autobiografia, nem sequer uma biografia, o que vê neste livro?
Vejo o olhar de outras pessoas sobre as minhas coisas. Eu jamais faria este livro. Há aqui muitas fotografias que nunca tinha dado por elas. A fotografia da cobra, por exemplo. Ou esta da minha tia [a foto mais antiga do livro, tirada em Capri, em 1964]. Não era este olhar que eu teria sobre o meu próprio passado e presente. Mas por isso acho interessante.
Este processo fê-lo também refletir sobre a sua vida? Levou-o a estes instantes?
Lembro-me dos momentos em que foram tiradas grande parte das fotografias. [Vai folheando o livro] Aqui estava nas Seychelles. Aqui é o Douglas Gordon, um artista, a jogar à bola com o meu filho em Pedras d’El Rei. Isto é em Caracas.
No seu trabalho, há aspetos recorrentes: o tempo, o desejo. Pensando num corpo de trabalho de 50 anos, hoje olha para estas coisas – por exemplo, a questão do desejo, amplamente representada no livro — de uma maneira diferente?
Não. Sempre igual. E cada vez melhor. Graças a Deus, tenho uma líbido elevada. O que faz mais confusão é que muitas das pessoas que vê aqui, que são miúdas de 21, 22 anos, hoje em dia são senhoras de 70. Necessariamente, não estão iguais ao que eram. Você também não estará quando tiver 70 anos.
Felizmente.
Há pessoas aqui que eram uma espécie de objetos de desejo e depois deixaram de ser.
Deseja-se da mesma maneira ao longo da vida?
As coisas mudam. Não se deseja ontem como se deseja hoje ou amanhã, mas a intensidade do desejo não é uma coisa que arrefeça. Mantém-se viva.
E pensando nos efeitos do tempo: estas pessoas já não são estas pessoas…
E infelizmente várias delas já morreram. Há na parte dos agradecimentos um in memoriam.
Lida bem com essa transitoriedade?
Não. Especialmente quando são pessoas que são minhas amigas ou próximas. Ninguém gosta.
A fotografia tem essa coisa do confronto com uma realidade cristalizada.
Exato. Tem uma realidade escalonada no tempo, mas que é impossível ser repetida, até porque a pessoa que lá está já não existe. Isso faz um bocado de confusão.
E em relação a si, como é que lida com isso?
Sabe que nós, em relação a nós próprios, temos uma posição totalmente diferente. Nós vemos que estamos a ficar mais velhos, mas não nos vemos mais velhos. Mantemos uma espécie de uma idade estanque. Eu sei que estou velho, que passou muito tempo, mas na minha cabeça tenho 20 anos. Se eu me tapar, se ficar num quarto escuro, tenho 20 anos. É uma coisa que faz uma confusão terrível.
Quando é que faz confusão? Quando se confronta com os sinais da idade?
Por exemplo. Há outra coisa que é muito sinistra que é, nós nunca nos vemos tão velhos como somos. Você a olhar para mim vê-me de uma maneira; eu a olhar para mim vejo-me de outra maneira. Tem a ver com a familiaridade que temos connosco próprios.
Vive bem com isso?
Vivo! Vivo mal, mas vivo, é o que é.
Olha muito para trás. Ou é de olhar mais para a frente?
Nem sei onde é a parte de trás – só olho para a frente. Tudo para diante, sempre.
E neste momento o que vê?
Neste momento as coisas estão muito complicadas. Basta olhar para o mundo.
O mundo retratado neste livro é um mundo muito diferente daquele em que vivemos, desde a textura das fotografias ao contexto mundial.
A nível pessoal, só espero ter saúde e não apanhar a porcaria da covid. Mas a nível profissional, a questão está muito difícil. Trabalho com uma série de galerias a nível internacional — Portugal, Espanha, Itália, Estados Unidos (Los Angeles e Nova Iorque), Inglaterra, França, Brasil – e, de repente, todo este tipo de contactos e de trocas, de valências, de exposições, parou.
Parou totalmente?
Tudo. Todos os países estão parados. A última exposição que tive marcada era para acontecer em Londres, a 21 de maio de 2020. Passou agora, tentativamente, para o dia 14 de abril de 2021. Vamos lá ver se há. Porque ninguém sabe.
Fala-se de um retomar…
Nada. Enquanto não se descobrir uma vacina eficaz ou um medicamento que combata a doença, as pessoas vão todas ter medo.
Está preocupado?
Não deixo que a preocupação me tolde, mas claro que estou preocupado. Os circuitos da arte são circuitos expositivos. Hoje em dia faz-se exposições online. O que é uma exposição online? Eu não quero uma exposição online. Eu quero ver as obras de perto, tateá-las. O que é uma escultura online? Não faz sentido. As próprias feiras, que movimentavam muito dinheiro: quem é que vai comprar uma peça de arte por 10 milhões, online? Sou super otimista, sempre, mas está difícil. Em Portugal e no estrangeiro. Grande parte dos meus amigos artistas está em Nova Iorque e dizem a mesma coisa.
Ao longo da sua carreira sempre fez um grande esforço de internacionalização. Porquê?
Nunca quis ficar fechado na minha rua. É muito limitativo. Para isso estamos agora fechados por causa da covid. Antes da covid, viajava em média duas, três vezes por mês. Agora, estou “doente”, porque desde março que não saio. Aliás, saí agora pela primeira vez.
Sempre em trabalho?
Sempre. O lazer aborrece-me.
Já agora, o que o atrai nos EUA?
Se não vivesse em Portugal, era lá que viveria. Seis meses em Nova Iorque, seis meses em Los Angeles. Atrai-me tudo.
“Tudo” é muito vago.
Repare: Nova Iorque ou Los Angeles. Cidades. Não ia para o interior, nem sequer para São Francisco. Atrai-me a arquitetura, a cultura; sobretudo uma coisa extraordinária, inigualável: a capacidade de invenção. Nova Iorque é uma cidade que é uma bomba estimulante. Pode estar com a maior depressão do mundo, mas chega a Nova Iorque e passados 10 minutos já tem 10 milhões de ideias na cabeça. E não só tem essas ideias como tem 10 milhões de pessoas genuinamente interessadas no que está a fazer.
E Portugal, no meio disto tudo?
Portugal é esta coisa simpática, à beira-mar plantado, com um clima maravilhoso, ótimo peixe e ótimo marisco, mas muito pouco estimulante. Portugal é dos países menos estimulantes que conheço.
Em termos artísticos?
Em todos os termos. Somos contemplativos, preguiçosos, pouco briosos. Uma coisa muito portuguesa é “deixar andar”. Estou a generalizar, como é evidente. Os portugueses são muito… falta-me a palavra… acomodados. Aspiram a pouco. Faz lembrar aqueles painéis que havia nas casas no tempo do Salazar: “É pequenina e modesta a casa que visitais, mas reparai está em festa pela honra que lhe dais.” Isto define o português. É pequenino e modesto, mas é tudo muito bom porque você digna-se a vir aqui.
Estou a lembrar-me do turismo.
A nível do turismo, o erro brutal foi Portugal ter acompanhado a vizinha Espanha, com as asneiras que se fizeram no Sul de Espanha, na zona de Benidorm e Torremolinos. Aquela desgraça toda que depois foi copiadinha pelo Algarve. Logo a seguir ao 25 de Abril. Era uma espécie de grande festa. Há muito mais dinheiro com menos pessoas com outro tipo de educação e capacidade económica do que muita gente a comer hotdogs. E Portugal tinha todas as características para ter um turismo de luxo, refinado. Isto era uma espécie de Riviera em bom. Mas, não.
E isso na arte sente-se?
Claro que se sente. Hoje menos, porque há menos contaminações. Mas era assim: “Portugal em português”; “Vieira da Silva, a grande artista que está em Paris”.
A validação que vem de fora.
Dou-lhe o meu exemplo. As pessoas só começaram a ter um bocadinho de respeito por mim em Portugal quando comecei a ter uma certa importância no estrangeiro. “Ah, fez uma exposição em Nova Iorque.” Quer dizer, eu sou melhor por ter feito uma exposição em Nova Iorque? Bullshit!
Em que ponto está a recuperação do Pavilhão Azul [para acolher a cedência à cidade de Lisboa da colecção privada de Julião Sarmento]?
Não sei.
A última notícia, de Julho de 2019, dizia que o projeto estava a ser terminado.
Neste momento, tanto quanto sei, foi feito um concurso para escolher o construtor. O projeto é lindíssimo, do João Luís Carrilho da Graça. Mais do que isso terá de perguntar à Câmara Municipal de Lisboa.
E a coleção, continua guardada?
Guardada e a crescer. Emprestei a coleção à cidade de Lisboa, porque acho que as coleções devem ser partilhadas. Se isso acontecer, fico muito contente. Se isso não acontecer, a minha vida não vai mudar. Comecei a colecionar há 50 anos. Continuo a comprar e a trocar obras.
Em quantas vai?
Cerca de 1300 e tal. Nenhuma assinada por mim.
Destaca alguma?
Isto é como os filhos, não se pode ter prediletos.
Em que está a trabalhar agora?
Estou a começar uma exposição que vou fazer em Paris. Talvez. Para o ano. Talvez. E outra em Turim. E também a trabalhar numa exposição muito grande, minha, que vai haver no museu Berardo. Já teve três datas. Agora está prevista para maio de 2022. Não sabemos. Não há certeza de nada.
Que temas o movem neste momento?
Antes da pandemia, vi no [Museu do] Prado uma exposição genial, que na altura recomendava a toda a gente. Uma exposição de desenhos do Goya. E então comecei a trabalhar tendo como base, como leit-motif, os desenhos do Goya.
O que é que lhe interessou tanto?
A genialidade do Goya. Não é por acaso que o Goya é o Goya, o Ticiano é o Ticiano e o Picasso é o Picasso. O Goya era uma cronista, a nível visual, genial, da sua época. Ele retratava a época em que vivia, as pessoas da sua época.
De que forma é que isso passa para a sua obra?
Não consigo pôr em palavras, e ainda bem – porque, se não, não pintava. Parto sempre de um pré-conceito. Mas o final nunca é aquilo que imaginei. As coisas vão acontecendo à medida que vão sendo feitas.
Se agora pudesse dizer, “eu agora queria mesmo era fazer isto, era o quê”?
É aquilo que estou a fazer. Só faço aquilo que quero.