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Júlio de Almeida e Ondjaki: entre pai e filho, não foi esta a Angola combinada

Ondjaki é escritor, já toda a gente sabe. Tem um livro novo, "O Convidador de Pirilampos", e mais um colega de profissão: o pai, Júlio de Almeida, que publicou agora o primeiro romance em Portugal.

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Pode-se dizer de Júlio de Almeida que é mais conhecido por Júju, que é engenheiro mecânico, que participou na guerra pela independência de Angola, que foi deputado do MPLA e, agora, também se pode dizer que publicou pela primeira vez em Portugal um romance – Vaicomdeus, SARL. Mas também já se pode mudar no seu bilhete de identidade literário o nome próprio e escrever simplesmente “pai do Ondjaki”, como o próprio diz.

“Vaicomdeus, SARL”, de Júlio de Almeida (Caminho)

A publicar ao mesmo tempo um novo livro em Portugal, o infanto-juvenil O Convidador de Pirilampos, Ondjaki, que é também Almeida, aos 38 anos já vai muito longe do primeiro livro (que publicou aos 23), e pelo caminho já ganhou prémios como Camilo Castelo Branco, Jabuti ou Saramago. A sua estreia agora é outra: ter o pai como companheiro de escrita, de lançamentos de livros, de festivais literários e até de entrevistas, a recordarem juntos um casamento numa base militar, as dificuldades da escrita, as histórias da família, e até a projetarem a Angola que pode vir aí depois da retirada de José Eduardo dos Santos.

No princípio era a guerrilha… e Brecht

Já conhecia textos do seu pai quando era novo?
Ondjaki: Quando publiquei o primeiro livro tinha 23 anos e nunca tinha lido nada do meu pai. Lembras-te quando é que acabaste de escrever este livro?
Júlio de Almeida: A ação termina em 1999, o último ano do milénio. Acho que não terminei a escrita muito depois disso.
O: Mas ele já escrevia, mesmo antes de eu nascer. Pelo menos aqueles textos que eram escritos para os manuais pedagógicos, e textos para a guerrilha, que ele fazia ainda em Argel.
J: Mas isso eram livros escolares, manuais de história, de ciências, de geografia. Estive envolvido nisso desde a conceção até à execução, incluindo bater o stencil à máquina. Nesse tempo da guerrilha andava com uma máquina de escrever sempre comigo e sempre fui um grande leitor.

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O que gostava de ler?
J:
Em primeira instância, Bertolt Brecht. Tinha as obras completas e andavam comigo para todo o lado. No fim, depois das guerras todas, ainda me sobraram os três volumes de poesia, que tenho até hoje lá em casa.

Foi uma boa companhia?
J:
Muito boa. Quase tudo o que eu pudesse pensar, já tinha sido pensado por ele. Para quê uma pessoa estar a fazer grandes teorias sobre os homens imprescindíveis se já estava lá tudo num poema? Era só dialogar com ele. E até há uma parte deste livro que já vem desse tempo, episódios que escrevi nessa altura. Depois fiz também uma peça de teatro, escrita por mim e encenada pela mãe do Ondjaki.
O: Isso já foi em Dar Es Salaam?
J: Foi. A mãe ainda estava lá na Tanzânia. Eu ia lá frequentemente, porque estava na logística e transportes da guerrilha. Fiz dezenas de milhares de quilómetros entre a costa do Índico e a fronteira entre a Zâmbia e Angola. Era na costa que recebíamos grande parte da logística, quer a militar quer a civil, como a alimentação, roupa. Nunca fui um guerrilheiro de arma na mão. A minha tarefa era cuidar dos meios de transporte, área na qual tive formação técnica, e organizar as colunas. A peça era um texto pequeno, mas foi editada pelos nossos serviços culturais. No MPLA não havia só armas, havia também serviços culturais [risos].

"Às vezes, quando encontro pessoas aqui em Portugal da idade deles [os pais] que me dizem “eu também sou angolano”... não sou dono da “angolanidade”, mas temos de perceber que são duas Angolas diferentes. E isto é uma coisa em que eu penso muito: é o mesmo território, mas é outra Angola."
Ondjaki

Leu isso quando, Ondjaki?
O:
Não li o texto todo. Encontrei isso tudo há pouco tempo. Temos estado a ver fotografias e a organizar coisas. Está tudo em caixotes. Há cartas, documentos, imagens, e estou a ficar aflito com aquela desorganização das coisas da família. Sobretudo da vida deles. Isso para mim é quase um projeto.

A peça era sobre o quê?
J:
Havia um grupo de pioneiros, que eram as crianças, a tentar construir Angola com uns tijolos no chão. Ao mesmo tempo, uns quantos andavam lá só a desconstruir. A peça foi feita em verso rimado, com um fundo musical e letras do Pepetela. No manual de alfabetização, o Pepetela inventou lá uma história com o abecedário. Lembro-me que o ‘x’ era como o imperialismo: escondia-se aos olhos do povo, porque às vezes se lê ‘ch’, como em ‘enxame’, e outras vezes se lê ‘z’, como em ‘exame’.

Pai e filho: os da rua deles

Tem interesse pela vertente literária do que o antecede, as memórias dos seus pais?
O:
Agora até encontrei as cartas que eles trocavam, muito bonitas. Interessa-me, mas não só pelo lado literário. A história deles insere-se na história de outros, sejam guerrilheiros do MPLA, da FNLA, da UNITA militar. A verdade é que eu sou da primeira geração que nasce numa Angola independente. Nasci em 1977, e todos eles, os colegas da guerrilha, começam a ter filhos só nesta altura em que o país estabiliza.
J: São os da tua rua [risos]. Os da tua rua [Ondjaki tem um livro chamado Os da Minha Rua] nasceram todos entre 1976 e 1979.
O: É a primeira geração dos filhos da guerrilha. Era a primeira vez que os meus pais tinham uma casa. Ainda eram miúdos quando assumiram o país. Mesmo o José Eduardo dos Santos tinha 36 anos quando se tornou presidente. E vocês todos, ministros e vice-ministros, tinham entre 34 e 38.
J: Talvez tenha havido uma explosão de expectativa. Tínhamos o país, tínhamos uma grande batata quente nas mãos, mas tínhamos o nosso país. Podíamos tentar fazer o que tínhamos sonhado, seguir o nosso programa, e foi natural que começassem a nascer crianças. Muitos desses casais que só tiveram filhos nessa altura já estavam juntos durante a guerrilha.

Era o seu caso?
J:
Nós casámos na mata, nas estruturas do MPLA.

Numa base militar?
J:
Casámos perante o comissário político daquela base. Foi no dia 1 de Janeiro de 1975. Queríamos voltar para Angola já casados.
O: Depois esse livro desapareceu e eles já nem são oficialmente casados. Era um livro do partido.
J: Mas no bilhete de identidade está o estado civil de casado.
O: Só que vivem em pecado, e é um pecado contínuo. Há mais de 40 anos.
J: Quando estávamos nas estruturas da guerrilha tínhamos de pedir autorização para casar.
O: Escreveram uma carta ao [Agostinho] Neto? Tens essa carta?
J: Tenho. E ele autorizou. É uma carta tão interessante. Ele diz que fica muito satisfeito…
O: [risos]
J:… dá-nos os parabéns, mas diz que tem pena porque podíamos ter esperado um pouco e fazíamos o primeiro casamento na Angola em liberdade.
O: Tudo isso é muito interessante, e não apenas por serem os meus pais. E um dia todas estas conversas, todas estas memórias, hão-de chegar a um livro meu.

Não chegam já de alguma forma?
O:
Talvez, de uma forma muito geral. No Bom Dia, Camaradas isso é bastante evidente. Há pelo menos uma grande diferença em relação a Os Transparentes [Prémio Saramago 2013], onde a voz é muito mais ficcional. No Bom Dia, Camaradas estou a falar da minha família, dos meus amigos e dos meus professores.

É assim que lê o trabalho do Ondjaki?
J:
Embora ele seja muito novo, o trabalho dele já é sobre a memória. São memórias que o marcaram do ponto de vista afetivo. Ele tem uma sensibilidade especial para as coisas antigas. Gosta muito de falar connosco, de falar com os velhos, o que não impede que tenha outros livros que têm muito mais a ver com a linguagem poética do que com este relembrar.

“O Convidador de Pirilampos”, de Ondjaki, com ilustrações de António Jorge Gonçalves (Caminho)

No seu livro também sabe sempre de quem está a falar, não é?
J:
Tem muitas vivências próprias, e também muitos episódios que são ficção mas que foram vividos por alguém.
O: Não são pessoais, mas são histórias que ouviste, são coisas verídicas.
J: É que aquilo até pode não ser real, mas tem de ser verdadeiro. Há coisas que aconteceram e outras que podiam ter acontecido. Não quero é que o leitor fique com uma impressão falsa do que era a realidade naquele momento.

Sente orgulho na história dos seus pais?
O:
É também por causa deles que pertenço a essa primeira geração da Angola independente. Às vezes, quando encontro pessoas aqui em Portugal da idade deles que me dizem “eu também sou angolano”… não sou dono da “angolanidade”, mas temos de perceber que são duas Angolas diferentes. E isto é uma coisa em que eu penso muito: é o mesmo território, mas é outra Angola.

Um país, dois países, um país

Os seus pais viveram em duas angolas diferentes?
O:
É isso que me interessa muito neles. O meu pai não só viveu nesses dois países como lutou para poder viver no segundo, aquele que é o meu. Fez uma opção. Quando alguém diz “tive de me vir embora”, temos de ter noção que isso foi uma opção. Há pessoas que estavam em Angola em 1968, em 1971, a comer camarões e a beber cerveja na ilha de Luanda, enquanto os outros portugueses e os outros angolanos estavam numa guerra. A guerra armada começou em 1961, e em 1968 estás só ali a comer camarões? Não sabiam o que se estava a passar? Chega uma altura em que tens de tomar uma opção. Respeito muito o lado pessoal de quem diz que um dia veio embora com a roupa que tinha no corpo. Mas onde é que andou com a roupa que tinha no corpo desde 1961 até 1974 para não sentir necessidade de tomar uma decisão sobre o que ia fazer da sua vida? Uns tinham filhos pequenos e decidiram voltar para Portugal para os preservar, muito bem. Outros acharam que o MPLA, a UNITA ou o FNLA tinham razão e quiseram ajudar. Outros davam razão a Salazar e tudo bem. Não vamos é fingir que não se tomou uma opção. E não venham com a questão dos brancos. Houve brancos que ficaram. Tudo bem se não queriam ser governados por negros, ou se não queriam ser governados por marxistas-leninistas. Só não digam “tive que”.
J: É verdade que houve um contexto de psicose, promovido também por organizações internacionais, e isso facilitou o pânico. E depois ainda juntaram à psicose centenas de aviões, pontes aéreas. Havia insegurança. Mas essa guerra já não era contra os portugueses. A guerra de 1975 era entre os partidos.
O: Sabemos que era uma época delicada. O país mudou, era uma situação extremada, era complicado, mas há uma decisão. Só condeno as pessoas que inventam desculpas. Podem dizer isso: era delicado e eu não aguentei, ou era delicado e eu tinha crianças, ou era delicado e eu não me identifiquei. Eu conheço dois americanos que decidiram emigrar logo após a eleição do Trump. Só não podem dizer que alguém do partido do Trump os obrigou a sair. Aconteceu uma mudança radical em Angola. Acabaram-se os camarões lá na ilha, acabaram-se os cinco empregados negros. O meu tio Joaquim também seguiu um caminho diferente, era uma voz dissonante em relação ao MPLA, sofreu um processo, e passava mal em Angola. Passava mal mas optou por ficar. Não vamos é branquear nem escurecer a história. Cada um fez as suas escolhas.
J: Eu rejeitei o estatuto anterior e avancei para a construção de um novo estatuto. A minha geração teve uma sorte incrível por ter nascido numa época assim.

Acha que é sorte?
J: É sorte. Se tivéssemos nascido 50 ou 60 anos antes, não há histórias, não há romances, não há contos, não há nada para dizer. Nós vivemos eventos que levaram a uma alteração fantástica das coisas.

Mas não teria mais sorte se nascesse na altura em que nasceu o Ondjaki?
J: Pois claro. Tinha mais 40 anos de vida pela frente, nem que fosse por isso (risos). Mas eles têm mais sorte, sim, vão ver uma nova etapa. Sinto que as coisas podem melhorar. Não é já nas eleições de 2017, não é no dia seguinte, mas vão ter de melhorar.

Também sente que teve mais sorte por nascer depois do seu pai?
O: Não, eu gostaria de ter nascido em 1939.
J: Eras quase meu irmão.
O: Sim. Era teu irmão mais velho. Gostava de ter passado pela luta da independência, até para saber qual teria sido a minha reacção. Não consigo pensar nisso do acaso divergente. Só nasci no dia em que me fizeram, só nasci de um espermatozóide e de um óvulo.

"Tenho alguns contos, algumas histórias, e quando vejo a data é tudo de 2001, 2002. Houve ali um período em que eu achei que tinha algo a dizer. Este livro é dessa altura também, e foi numa conversa entre o Ondjaki e o editor dele, o Zeferino Coelho (Caminho), que surgiu a ideia de o publicar. Mas considero que sempre fui um contador de histórias e de anedotas."
Júlio de Almeida

Júlio, sente que o seu livro pode ser de alguma forma um retrato desiludido em relação à sua geração?
J: Não é desiludido. Até é bastante otimista e acredita no futuro. Tem uma parte que eu chamo a dos “vivos”, e os vivos eram daquele período da luta de libertação. Tínhamos objetivos bem claros, sabíamos o que queríamos. Foi tudo feito com gosto, com amor. Depois vem a parte dos mortos.

Que não será dos mortos por acaso.
J: A parte dos mortos apanha esta transição para o capitalismo, e aí há muita ironia. Deu-me bastante prazer fazer esse jogo, ridicularizando de certo modo um novo projeto social que já não é o projeto de toda a sociedade. Aí, sim, a personagem masculina é inadaptada, desiludida, alguém que vive das memórias. Para ele, alguma coisa falhou. E não há dúvida que sinto alguma identificação com ele. Mas a personagem interessante desta história é a menina.
O: Achas que ela representa o futuro?
J: Ela consegue fazer a transição.
O: Mas ela não tem o mesmo para trás que ele tem. Ela entra no comboio noutra paragem.
J: Mas esteve lá na guerrilha como pioneira, foi educada em Cuba. Tem é alguns deslizes éticos, aceita determinadas coisas para chegar a certos objetivos. Mas enquanto o outro está quase morto, ela ainda tem sonhos. Dá-se aqui um acaso convergente, que eu chamo de coincidência. E as coincidências são tanto aquilo que acontece como aquilo que não acontece.
O: Eu estive a reler agora o livro do Pepetela, A Geração da Utopia, e são livros dialogantes porque falam dessa transição. Começa com a queda do Muro de Berlim, que aconteceu longe, mas que nós acompanhámos. Angola e os cubanos tiveram um papel fundamental na saída das tropas da África do Sul da Namíbia e no fim do regime do apartheid, é preciso dizer isto.
J: Isso foi uma opção ideológica em que acho que os angolanos se portaram bem. Quem deu essa palavra de ordem ainda foi Agostinho Neto. Disse que na Namíbia, no Zimbabué e na África do Sul estava a continuação da nossa luta.
O: Há um lado do projeto dessa geração que pode ser utópico, mas há outro lado que foi realizado. Eles têm esta frase: “não foi bem isto que tínhamos combinado”. Isto porque depois de 1992, depois de 1989, as pessoas revelaram-se, passaram dos interesses coletivos aos pessoais.

“Não foi bem isto que tínhamos combinado”: Angola hoje

Quais são agora os desafios de Angola?
O: Como noutros países, o desafio agora é fortalecer a democracia. E fortalecer a democracia não é só pensar que um regime pluripartidário já é democrático. Eu nem acho que nos EUA haja democracia no sentido que eles pregam. Em Angola muito menos. Há participação partidária, mas há um hábito continuado. Quando Savimbi morre, quem fica vivo diz: “então, eu é que sou o arquiteto da paz”. E isso vai ficando, é fácil fazer isso passar num país que esteve tanto tempo em guerra. Ainda mais se estás no poder, tens mais dinheiro, tens os meios de comunicação, fazes as estradas. E depois há aquele momento nas eleições de 2012 em que o MPLA muda a constituição, o que até pode ser legal mas não parece eticamente correto.

Não há alternativa?
O: Esse é que é o problema de Angola do qual ninguém fala. A UNITA não apresenta alternativas. Na altura das eleições de 2012 constituiu-se uma coligação, que é a CASA-CE, e em seis meses eles organizam-se e tiveram um resultado eleitoral espantoso, mostraram que é possível. É que nem no caso dos 15+2 a oposição soube tirar dividendos políticos. Já nem digo por convicção. É que nem mesmo por interesse.

Júlio de Almeida e Ondjaki nas Correntes d’Escritas (foto: Rui Sousa)

Já não tem vida política ativa, Júlio?
J: Não. Terminei em 2003. Entrei como deputado nas eleições de 1992, quando se constituiu a primeira assembleia. Nessa altura quem fazia a crítica ao governo éramos mesmo nós.
O: Alguns. Poucos. Eram poucos.
J: Isso perdeu-se com a nova constituição. Os deputados tinham de ser os representantes do povo. Hoje em dia os deputados são só representantes dos partidos. Isso já não me interessa.

O Ondjaki nunca foi muito político.
O: Não sou. Nunca me meti em política. A minha literatura é literária apenas. Dizem que no livro Os Transparentes assumo questões políticas, e está bem, mas só porque as personagens exigiam. Não ponho a política à frente da minha literatura. Não tenho nada contra quem o faz, mas não seria natural em mim.

Com tanta gente da sua geração a mostrar-se muito comprometida, o afastamento é intencional?
O: É, sim. Falo mais de política nas entrevistas. Se me fizerem perguntas, eu respondo. Mas nos livros não.

A anunciada saída de José Eduardo dos Santos pode mesmo mudar alguma coisa?
J: Tem de mudar. Ele imprimiu um cunho pessoal e esse cunho pessoal vai acabar por desaparecer. Uma das coisas que nos aconteceu, algo de trágico que condicionou muito o curso da nossa história, foi a morte prematura de Agostinho Neto.
O: Ah, eu também acho. O Agostinho vivo até 1990? Ele atravessando a década de 80? Era outro caminho. Não sei qual caminho, mas era outro.

É uma daquelas coincidências das coisas que não chegam a acontecer?
J: Não se pode ver a história dessa maneira, mas eu acredito que seria diferente.
O: A saída de José Eduardo dos Santos é um fator central no desenvolvimento do processo político angolano. Acho que as coisas podem melhorar. A figura passa a ser o João Lourenço, mas já é uma pessoa diferente. E o outro a seguir será ainda mais diferente. O José Eduardo era maior do que o partido. Fez por isso e conseguiu. O jogo agora vai ser mais normal entre partidos, e não entre individualidades.

J: O José Eduardo teve tempo para se apossar de tudo, de todos os dossiês do país. Agora vai deixar de controlar diretamente.

E os filhos dele não serão uma questão?
O: Houve uma formação de elites, como acontece em muitos países. São quarenta anos. Mas acho que eles têm mais poder financeiro do que poder político. A Isabel dos Santos fará com o seu poder financeiro aquilo que uma pessoa na América ou na Europa também consegue fazer: o lobby que bem entender. Não só ela, mas toda uma nova geração que já vai começar a aparecer, e que tem isso de herança. A prioridade tem de ser a melhor distribuição da riqueza, atenuar a desigualdade social.
J: Os próximos vão ter de lutar por essa distribuição mais justa e mais ética do rendimento nacional, e contra décadas de uma outra filosofia. Os da vossa geração, que andaram até agora na carroçaria porque ao volante estava o pai, passam para o volante.

Juntos contra a preguiça de escrever

O seu filho incentivou-o a publicar o livro?
J: Tenho alguns contos, algumas histórias, e quando vejo a data é tudo de 2001, 2002. Houve ali um período em que eu achei que tinha algo a dizer. Este livro é dessa altura também, e foi numa conversa entre o Ondjaki e o editor dele, o Zeferino Coelho (Caminho), que surgiu a ideia de o publicar. Mas considero que sempre fui um contador de histórias e de anedotas.

Isso influenciou-o?
O: Muito. Toda a minha família é de contadores de histórias, mesmo que não escrevam. O meu pai é uma pessoa de relatos, como era o pai dele, e também do lado da minha mãe. Ainda agora, em dezembro, me pus a conversar com o meu pai e pedi para gravar. Ele tem um modo de contar e eu tenho outro. Mesmo que escrevêssemos os dois a história da vida dele, seria de maneira diferente. Mas é muito interessante, porque os meus pais foram os dois guerrilheiros, conheceram-se na guerrilha, e isso, para um escritor como eu, não pode ser indiferente. Eles não foram condutores de Fórmula 1. Nem foram uns playboys que andavam por Nice em festivais de cinema. A história é outra. Se fosse essa de Nice, eu depois logo ia resolver. Mas isto cria uma memória muito específica, e um orgulho, que se prolonga para todos os tios que também andaram na luta da libertação, cada um à sua maneira.

"Foi bom estarmos na estrada durante três semanas, e é bom não serem livros sequer parecidos. Podia ficar feio, parecer que nos estávamos a encostar, e não é nada disso. São projetos diferentes. E também é bom porque a propósito do livro dele temos falado muito sobre as histórias da família, as histórias de Angola."

Júlio, vai continuar a escrever?
J: Estou a escrever, mas é mais fácil contar histórias e ter ideias do que pôr no papel. Não é qualquer pessoa que chega até aí. O complicado é aquilo sair como a gente quer.

Para si é mais fácil, Ondjaki?
O: Fácil não é. Cada vez menos, cada vez leva mais tempo. Estou sempre à espera que aconteça o romance, mas agora estou mais no universo infantil. Foi muito interessante a conversa que tive em Dezembro com o meu pai. Juntam-se muitas histórias e a história deles é muito interessante. É um período que reúne muitos eventos que acabaram por ser cruciais no país. Uma vez quis fazer um documentário sobre o meu pai, ele é que estava sem vontade.

Mas quer escrever sobre o seu pai?
O: Não é o meu pai naquele sentido biológico. É que ele, e a minha mãe, e outros, a vida deles coincide com a vida do país. Ele estava lá. Eles cruzaram-se. A propósito de uma vida destas, tu contas tantas coisas sobre tanta gente.

O que significa para vocês estarem juntos neste papel de autores?
J: Eu sou um outsider. Sinto-me infiltrado num outro mundo, que é o mundo dele. Ir a um festival literário, como as Correntes d’Escritas, e encontrar não só os livros mas os autores, é um mundo que eu ainda não tinha experimentado. E ele ajuda-me bastante. Embora nesses círculos eu tenha perdido o meu bilhete de identidade, que agora tem de mudar. Onde estava o meu nome, tenho de pôr “pai do Ondjaki”. Mas com muito orgulho.

O: Foi muito bom, e não só por causa da literatura. Eu moro no Rio de Janeiro agora, e foi uma desculpa para estarmos juntos muito tempo. Foi bom estarmos na estrada durante três semanas, e é bom não serem livros sequer parecidos. Podia ficar feio, parecer que nos estávamos a encostar, e não é nada disso. São projetos diferentes. E também é bom porque a propósito do livro dele temos falado muito sobre as histórias da família, as histórias de Angola, e eu acho isso muito bonito. Se eu fosse ao lançamento do livro de alguém ia achar interessante que estivesse com o pai, que um escritor da minha geração estivesse a apresentar um livro na companhia do seu pai. Eventualmente o livro dele vai sair no Brasil no ano que vem, e vamos ter a possibilidade de viver isto de novo. Só tive pena de não ter filmado nada. Quero ficar com algumas gravações. Ainda fazemos um documentário.

Ainda ficam muitas histórias por escrever?
O: O meu pai tem preguiça de escrever.
J: O termo não é bem esse. Às vezes fico meses sem escrever, depois começo a ler, e fico assim com vontade. Tu sabes melhor do que eu, mas acho que a predisposição emocional é fundamental. Eu tenho muito tempo livre, não é por aí.
O: Sim, mas mesmo assim. Pode ser que isto de ver o livro, ver os leitores, contribua para se concentrar mais. Mas eu sei que é difícil. A prova não é só ter tempo. Às vezes também me convidam 15 dias para estar num sítio lindíssimo só a escrever, mas não. Não era o tempo certo. Também é preciso deixar acontecer e depois não perder a oportunidade. Já me aconteceu. Demoro uns tempos para entrar, mas depois há um dia em que começo e a vida real tenta interromper. Mas eu tenho de resistir. Temos de resistir.

Agora percebe melhor o Ondjaki?
O: Ah, boa (riso). Percebes por que às vezes acordo mais tarde e me deito mais tarde?
J: Percebo. E às vezes uma pessoa tem uma ideia, vai a conduzir, fica todo satisfeito, e no dia a seguir já não se lembra.
O: Mas não, tens de anotar logo. Ou gravar. Não te esqueças. Não podemos achar logo que aquilo que pensámos não tem valor para livro. Isso decide-se depois.

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