894kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Kanye com a mãe, Donda West, fundamental no crescimento, no percurso e nas decisões do rapper
i

Kanye com a mãe, Donda West, fundamental no crescimento, no percurso e nas decisões do rapper

Kanye com a mãe, Donda West, fundamental no crescimento, no percurso e nas decisões do rapper

Kanye West. Um retrato do rapper enquanto jovem

Estreia-se esta quarta-feira o terceiro e último capítulo do documentário "Jeen-Yuhs: uma trilogia Kanye". De onde veio o prodígio transformado em rapper de sucesso e, mais tarde, estrela megalómana?

No coração do estádio, diante de uma plateia de 110 milhões de pessoas, eleva-se uma consola reluzente e o maestro Dr. Dre abre a partitura: Snoop Dog de fato de treino azul e amarelo, cores de Compton; 50 Cent de cabeça para baixo, a celebrar como se ainda fosse o seu aniversário; uma cintilante Mary J. Blige; o hino de resistência negro de Kendrick Lamar; um ciquentão Eminem a cantar de nervos, suores frios, e o esparguete da mãe, “Lose Yourself”, uma das canções mais celebradas dos últimos vinte anos. Neste 13 de fevereiro, aconteceu a noite do hip hop canónico, uma celebração do género musical sucessivamente marginalizado, no maior palco do mundo: o intervalo do Super Bowl.

E algures nas bancadas do SoFi Stadium, em Los Angeles, de mero telemóvel em punho, um insurgente a qualquer tipo de convenção, canónica ou marginal, com a cara tapada por uma máscara preta, começa a publicar nas redes sociais. A reação é instantânea, o volume de conversação no Twitter supera a apoteose de Dr. Dre no Super Bowl com 110 milhões espectadores, e naquele instante, um único nome é a maior tendência na rede social: Kanye West.

[“Jeen-Yuhs: Uma Trilogia Kanye”:]

Este não é um detalhe inócuo e evidencia dois pontos que têm assegurado a eternidade mediática do rapper nascido em Chicago: primeiro, o apetite voraz pelo desastre alheio, neste caso, Kanye West a insultar o recente namorado da sua ainda mulher, Kim Kardashian, o comediante Pete Davidson; segundo, e foquemo-nos neste ponto, que em 2022, o concerto nostálgico do Super Bowl, mais inofensivo que provocador, foi reduzido a um punhado de meia-lecas diante do espetáculo grandioso Kanye West. E este espetáculo, convém lembrar, é mais que circense, esqueçam os palhaços e os malabaristas, Kanye West é a figura suprema da música popular no século XXI.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O ponto de partida de “Jeen-Yuhs: Uma Trilogia Kanye”, o documentário tríptico que termina esta quarta-feira, na Netflix, é o que veio antes das obras-primas do rapper no século XXI, antes de interromper o discurso de Taylor Swift nos MTV Video Music Awards, de anunciar que George W. Bush não quer saber dos negros, de mudar o nome para Ye, de apoiar Donald Trump com um chapéu vermelho, e sobretudo, antes de se assumir publicamente como bipolar. “Jeen-Yuhs” é o retrato do rapper quando jovem, a jornada do herói que é arrogante no limiar do delírio, e simultaneamente, está num estado permanente de insegurança. A química de uma canção Kanye West é esta combinação instável, a sedução desarmónica de um homem em conflito interior.

O rapper aparece de surpresa nos escritórios da Roc-A-Fella Records, a editora de Jay Z com uma canção pronta, “All Falls Down”, um beat de soul meloso irresistível. Kanye estava seguro que a editora, quiçá o mundo, iria certamente parar de girar e benzer-se de imediato em reverência a esta obra-prima. Foi completamente ignorado.

“Every great story begins with a vision”, narra Coodie Simmons um comediante e cofundador do Channel Zero, um programa de televisão regional dedicado ao hip-hop de Chicago, que entrevista pela primeira vez um miúdo produtor de beats, 40 a 50 dólares por batida, de nome Kanye West. “Fui o primeiro a filmá-lo, em 1998, quando era ainda um promissor produtor. Mal eu sabia que esta curta entrevista seria o início de uma amizade que duraria mais de 20 anos.” No segundo encontro com o promissor produtor, em 2000, desta vez atrás da câmara como realizador, Coodie tem uma revelação enquanto capta este beatmaker a soldo. “A maioria só o via como um jovem produtor que os podia juntar com canções baratas. Mas ele disse-me que só as criava para poder fazer rap sobre elas. Filmámos muitos artistas, mas havia qualquer coisa diferente no Kayne. Ouvir as rimas dele… Ver a confiança… Não tinha dúvida nenhuma que ele seria uma estrela”. Nesse momento, Coodie — mais tarde com ajuda de Chike Ozah — decide largar a sua vida em Chicago e fazer um documentário totalmente dedicado a Kanye West, sem garantias que este puto convencido, de aparelho e tranças, em qualquer conjetura iria sobreviver entre rufias e milionários, na terra dourada do hip-hop: Nova Iorque.

“Eu disse: ‘espera, tenho mais um beat’. Foi estranho. Se lhe mostrasse uma canção má, teria sido demasiado embaraçoso, porque era a última canção que ele ia ouvir”, relata sobre o célebre primeiro encontro em estúdio com Jay Z. “E pu-la a tocar. Ele começou a abanar a cabeça. Olhou para mim e disse: ‘H to the izz-O, V to the izz-A/ Fo’ shizzle my nizzle used to dribble down in VA’”. E a partir daquele improviso, nada foi o mesmo para Kanye West. “Izzo (H.O.V.A.)” é o primeiro single de um álbum imaculado, The Blueprint de Jay Z, com quatro canções produzidas por Kanye West, que estava em Nova Iorque precisamente a aguardar por esta oportunidade. O então produtor seguia as pisadas de Common, o único rapper de Chicago que conseguira com Like Water for Chocolate — gravado em Nova Iorque depois de uma série admirável de álbuns em Chicago — vender centenas de milhares de discos. Mas os rappers nova-iorquinos a quem Kanye continuava a vender beats, desde Scarface a Memphis Bleek, olhavam com descaso, e uma certa galhofa, para Kanye a ser acompanhado por todo lado pela câmara de Coodie Simmons. Afinal, quem é que este gajo acha que é?

Um miúdo suburbano de Chicago, filho de uma professora universitária de inglês que o ajudou a montar o estúdio de gravação em casa, um menino da mamã, em contraste com a cultura de rua de Brooklyn

No penúltimo álbum de Kanye West, ou melhor, de Ye, intitulado Donda em homenagem à mãe, está uma citação memorável de Donda West:

“As one writer said, we came from somewhere
Not just from the wombs of our mothers and the seeds of our fathers
But from a long line of generations who came before us”

Donda West é a protagonista inesperada de “Jeen-Yuhs”, enfim uma justificação para a ambição desmedida do músico antes sequer de gravar qualquer álbum em nome próprio — “Eu quero vingar, amigo. Os cabrões só sabem dizer: o que tenho eu? Este tipo tem isto e aquilo. Não percebem que nem sequer estou lá perto. Isto pode ser o vosso sonho americano, mas isto não é o meu sonho. Eu tenho ambições, eu tenho grandes sonhos.” E Donda West lança mais achas à fogueira megalómana do filho — “és o maior!” — ao mesmo tempo que, apesar da arrogância devida a um génio, reitera que é necessário manter os pés bem assentes na terra — “o gigante olha para o espelho e não vê nada”.

Uma das cenas extraordinárias de “Jeen-Yuhs” é a humilhante lição de modéstia nos escritórios da Roc-A-Fella Records, a editora de Jay Z, Damon Dash e Kareem Burke, pela qual Kanye tentava desesperadamente ser contratado. O rapper aparece de surpresa na editora com uma canção pronta, “All Falls Down”, um beat de soul meloso irresistível, a confessar embaraço com as exigências do sucesso, de ostentar os últimos modelos da Nike e da Versace, uma máscara para esconder a condição de eterna subserviência do negro perante o branco:

“We’ll buy a lot of clothes, but we don’t really need ’em
Things we buy to cover up what’s inside
‘Cause they made us hate ourself and love they wealth”

Kanye estava seguro que a editora, quiçá o mundo, iria certamente parar de girar e benzer-se de imediato em reverência a esta obra-prima. Foi completamente ignorado.

Quando Pharrell Williams ouve “Through the Wire” rende-se boquiaberto à canção. Seria o primeiro single de Kanye West. “Muito raramente encontramos pessoas autónomas”, explica Pharrell. “Este tipo consegue fazer tudo sozinho. Isso é puro talento. O facto de ter escolhido dar destaque a algo catastrófico por que passou há seis semanas isso é a verdade, ele está a viver aquilo”.

Kanye West era um corpo estranho ao establishment do hip-hop nova-iorquino, ainda mais para os durões da Roc-A-Fella Records. Um miúdo suburbano de Chicago, filho de uma professora universitária de inglês que o ajudou a montar o estúdio de gravação em casa, ou seja, um menino da mamã, em contraste com a cultura de rua de Brooklyn de Jay Z e Memphis Bleek, ou da Filadélfia destemida de Beanie Sigel. Enfim, a Roc-A-Fella Records contrata Kanye, mas continua a ser meramente um produtor de serviço, até Jay Z — sempre Jay Z — o convidar a chutar umas rimas em “The Bounce”, de The Blueprint 2: The Gift & The Curse. “Diziam-me para não cantar. Se não tenho a melhor voz, e a imagem de durão, se não tenho cadastro, há quem diga que são razões por que não devo ser rapper. Rap para mim é uma extensão da expressão de fazer música”. Em 2002, no mesmo ano em que se estreia como rapper ao lado de Jay Z, o destino prega-lhe uma partida crucial: adormece ao volante, bate de frente, e fratura o maxilar em três pontos.

“É como Deus dizer: vou dar-te o mundo. Mas, a qualquer momento, posso tirar-to”. Apenas duas semanas após o acidente, com o maxilar suportado por arames, completamente desfigurado, instala equipamento de gravação no hotel onde está hospedado e converte a tormenta em arte: “Through the Wire”. Quando Pharrell Williams ouve “Through the Wire” — a melodia jovial gospel em contraponto à descrição do desastre de automóvel, incluindo a cirurgia reconstrutiva ao maxilar — rende-se boquiaberto à canção. Seria o primeiro single de Kanye West. “Muito raramente encontramos pessoas autónomas”, explica Pharrell. “Este tipo consegue fazer tudo sozinho. Isso é puro talento. O facto de ter escolhido dar destaque a algo catastrófico por que passou há seis semanas isso é a verdade, ele está a viver aquilo”. E sem o aval da editora, entre idas ao dentista, Kanye prossegue as gravações do álbum de estreia, seja no hotel, em casa de Jamie Foxx (“Slow Jamz”), ou numa vaga de estúdio cedida por Ludacris (“Breathe in Breathe Out”); e as filmagens de Coodie são reaproveitadas para construir o videoclip de “Through the Wire”.

Os dois primeiros capítulos de “Jeen-Yuhs” engrandecem a relevância de Donda West na personalidade do filho: até que ponto a morte da mãe, em 2007, contribuiu para um desamparo e sanidade intermitente

Em 2014, a Roc-A-Fella Records abre finalmente os cordões à bolsa, The College Dropout é lançado, o videoclip da dupla Coodie e Chike é um sucesso na MTV, e aquela canção que foi insultuosamente ignorada na editora, “All Falls Down”, escala até ao Top 10 da Billboard norte-americana. Até hoje, The College Dropout é o maior sucesso da carreira de Kanye West e o primeiro de uma sucessão de álbuns revolucionários sem par entre os seus contemporâneos: The College Dropout; Late Registration; Graduation; 808s & Heartbreak; My Beautiful Dark Twisted Fantasy; Yeezus; e The Life of Pablo. “Se há um ano lhe dissessem que estaria aqui sentado nomeado para dez Grammys, teria acreditado?”, pergunta-lhe um jornalista, no final do segundo episódio de “Jeen-Yuhs”. “Não, o que aconteceu foi que disse a toda gente e ninguém acreditou”.

Nesta quarta-feira estreia o terceiro e último episódio do documentário, aparentemente dedicado aos anos mais recentes de — agora sim — Ye, enquanto estaria a gravar Donda — ainda não existem confirmações sobre o conteúdo do episódio. Os dois primeiros capítulos de “Jeen-Yuhs” engrandecem a relevância de Donda West na personalidade do filho, mantém-se a dúvida de até que ponto a morte da mãe, em 2007, contribuiu para um desamparo e estado de sanidade intermitente — como o próprio, ou Kim Kardashian, têm admitido nos últimos anos. Hoje, é evidente que Ye não é o mesmo Kanye West retratado nos dois primeiros episódios de “Jeen-Yuhs”. O homem — e a música — está em constante evolução, as faixas de Donda e de Donda 2 — este último, lançado há poucos dias — são densas, as rimas são imediatas, ao invés da construção meticulosa da canção, e a distorção e sujidade dos beats revela uma gravação a quente. É o retrato de um instante, e não uma proposta de eternidade; o que, a bem ou mal, coloca Kayne mais próximo da geração trap do que qualquer um dos seus contemporâneos. É música para o ano de 2022.

Este espetáculo tem data de validade? Sequer podemos dizer sinceramente que temos saudades do velho Kanye, se continuamos embrulhados com fascínio em cada novo disco, em cada concerto, ou pior, em cada publicação de Instagram a acusar Pete Davidson de ser um idiota e ex-namorado da Hillary Clinton?

A principal questão aqui é até que ponto vamos acompanhar vidrados o espetáculo grandioso Kanye West. No ano passado, por exemplo, ao lado de Drake, num concerto solidário em memória de Larry Hoover, o rapper provou que se não fosse avesso a qualquer noção tradicional de carreira, poderia ser o cabeça de cartaz mais cobiçado de qualquer festival, a celebrar os quase vinte anos de sucessos. Mas não, ainda na semana passada lançou o seu último álbum, Donda 2, somente disponível na sua própria plataforma de streaming, Stem Player; e fez um único concerto de apresentação entre o desastroso e o glorioso, com um estádio a dançar ao som das suas desgraças familiares.

Os primeiros episódios de “Jeen-Yuhs” não respondem à questão, se este espetáculo tem data de validade, sequer podemos dizer sinceramente que temos saudades do velho Kanye, se continuamos embrulhados com fascínio em cada novo disco, em cada concerto, ou pior, em cada publicação de Instagram a acusar Pete Davidson de ser um idiota e ex-namorado da Hillary Clinton. Somente uma pessoa, alguns dizem que apenas Deus, é capaz de nos esclarecer. Na sua última obra-prima, The Life of Pablo, Ye apresentou este imbróglio em forma de rima, “I Love Kanye”, e ame-o ou odeie-o, no final só nos resta admirar o talento de Kanye.

“I miss the old Kanye, straight from the ‘Go Kanye
Chop up the soul Kanye, set on his goals Kanye
I hate the new Kanye, the bad mood Kanye
The always rude Kanye, spaz in the news Kanye
I miss the sweet Kanye, chop up the beats Kanye
I gotta to say at that time I’d like to meet Kanye
See I invented Kanye, it wasn’t any Kanyes
And now I look and look around and there’s so many Kanyes
I used to love Kanye, I used to love Kanye
I even had the pink polo, I thought I was Kanye
What if Kanye made a song about Kanye
Called “I Miss The Old Kanye, ” man that would be so Kanye
That’s all it was Kanye, we still love Kanye
And I love you like Kanye loves Kanye”

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.