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A história é a de Olfa Hamrouni, mãe de corpo inteiro, forte, violenta, independente, que viu duas das suas filhas, Rahma e Ghofrane, juntarem-se ao Daesh em 2016
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A história é a de Olfa Hamrouni, mãe de corpo inteiro, forte, violenta, independente, que viu duas das suas filhas, Rahma e Ghofrane, juntarem-se ao Daesh em 2016

A história é a de Olfa Hamrouni, mãe de corpo inteiro, forte, violenta, independente, que viu duas das suas filhas, Rahma e Ghofrane, juntarem-se ao Daesh em 2016

Kaouther Ben Hania, realizadora do documentário "Quatro Filhas": "A representação árabe está errada, não estamos a contar bem a história"

A cineasta, outra vez nomeada aos Óscares, fala sobre o processo de levar uma família de mulheres tunisinas a reviver as feridas deixada pelo Daesh. O filme já está nas salas portuguesas.

No ecrã vemos um jogo macabro. Quatro jovens mulheres, todas da mesma família, na mesma sala. Uma delas finge que morre e o objetivo é enrolá-la num lençol, de forma perfeita. Há risos próprios da tenra idade, num cenário que tem pouca ou nenhuma graça. Nesta família árabe da Tunísia, nem tudo o que parece é, mas tudo o que vemos faz parte do passado de quem viu o Estado Islâmico levar metade das irmãs. Quatro Filhas, meta-documentário realizado por Kaouther Ben Hania, já nomeada em 2020 aos Óscares pelo filme The Man Who Sold His Skin, estreia-se esta quinta-feira nas salas de cinema em Portugal, depois de um longo e frutuoso 2023, com passagens marcantes por diferentes festivais como o de Cannes.

A história é a de Olfa Hamrouni, mãe de corpo inteiro, forte, violenta, independente, que viu duas das suas filhas, Rahma e Ghofrane, juntarem-se ao Daesh em 2016. Ficaram Tayssir e Eya e, com elas, uma dor intensa, difícil de explicar, difícil de ser ultrapassada, que se imiscuiu no seio daquela família, toda ela em feminino. Toda ela em luta e na procura do que é ser mulher naquele contexto.

Estamos perante um documentário, sim, mas desconstruído do início ao fim, que tira o tapete a todas as convenções: com recurso a atores, o filme vai reconstituir, ponto por ponto, a vida destas três mulheres. Só que, neste caso, as filhas de Olfa — e a própria — sabem muito mais sobre a história do que quem a vai supostamente representar. Vão voltar a vivê-la. Esse ponto por ponto vai levar toda a gente naqueles décors ao limite emocional. Relembrar pode ajudar, mas o processo recupera sempre a dor. Regressar aos momentos em que Olfa tinha de ter sexo com o marido quando não queria; quando cada uma das filhas procurava emancipar-se, face à família ou a favor de uma radicalização; quando a religião era ditadura ou instrumento de discussão. A reconstrução é crua, recorre à palavra seguida da ação, chama o ator ou atriz convidados, que interpretam personagens reais desta tragédia, sem guião, numa espécie de terapia em direto, na qual até o espectador é levado a decidir de que lado está.

[o trailer oficial do filme “Quatro Filhas”, que se estreia esta quinta-feira, 22 de fevereiro, nos cinemas nacionais:]

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Quando Kaouther Ben Hania estava a ser seduzida pela indústria norte-americana após o sucesso de The Man Who Sold His Skin em Hollywood, tinha este filme em mãos. Via em Olfa uma grande contadora de histórias. E via também que a imprensa da Tunísia e as redes sociais estavam contra aquilo que se tinha passado nesta família. Contactou-a, conheceu-a, desenvolveram uma relação. Seguiu-se o encontro com as filhas, sem tempo — e idade — para resolver a ferida aberta deixada pelo Daesh ao retirar-lhes as duas irmãs. Ben Hania resolveu, então, parar com o projeto. Deixá-lo maturar. Fazer “apenas” um documentário não bastava. Sabendo, porém, que estaria a trabalhar em Quatro Filhas durante muito, muito tempo. “Claro que, quando se faz um documentário, estamos a filmar o passado, mas não lhe acedemos logo à partida. Daí que se use a reconstituição, um cliché. Não costumo gostar da ferramenta mas, na verdade, o Alfred Hitchock disse certa vez que o melhor é começar com um cliché do que acabar com um. Ou seja, decidi sequestrar  a reconstituição”, explica Ben Hania em entrevista ao Observador.

Neste processo muito íntimo que a realizadora procurou explorar, durante o qual manteve um contacto próximo com cada uma das suas personagens reais, houve alturas em que tanto Tayssir como Eya ligavam a Ben Hania para partilhar um pouco mais sobre as suas vidas. A realizadora foi confidente, amiga, como figura que, de certa forma, substituiu a ausência das duas irmãs que acabaram detidas (e escaparam à morte). “Fui a única pessoa que não as julgou, que não lhes disse que as irmãs delas eram monstros. Por isso é que ficámos tão próximas. Quando tinham um problema, ligavam-me. Quando discutiam, ligavam-me”, diz.

Ben Hania não crê que o cinema mude alguma coisa, “dá-lhe antes novas perspetivas” numa altura tão polarizada, cheia de regras, entre ocidente, oriente, África ou Ásia. Em várias sessões o resultado foi semelhante: pelo menos uma mulher acaba a chorar, como se sentisse na pele todo aquele sofrimento e resiliência, mesmo falando línguas diferentes e tendo culturas e credos opostos. Entretanto, a cineasta já está a tratar do seu próximo projeto, outra vez na Tunísia, longe de Hollywood, que parece ter um grande fascínio por ela — e que pode culminar com um Óscar. “Depois do meu primeiro filme, perguntaram-me pelo seguinte e senti a desilusão nas suas caras: um projeto muito pequeno, disseram que não era para eles. Só que agora estou perante o mesmo desafio. Não digo que nunca farei um filme falado em inglês. Já tenho, aliás, um projeto de ficção científica nesse sentido. Só que o meu próximo filme também vai ser na Tunísia. Portanto, estou na mesma história.”

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"Ainda que tenhamos atores, estamos perante um documentário. Não há guião. Não os escolhi porque sabiam fingir choro, por exemplo. Vieram para o projeto por causa da personalidade", diz a realizadora

Gamma-Rapho via Getty Images

Como é que se trabalha uma história em que é preciso reconstituir todas as feridas?
Foi uma jornada muito, muito longa. Começou em 2016. Ouvi a Olfa a falar sobre as filhas nos média na Tunísia e percebi que tinha ali uma história. Disse a mim mesma que estava ali qualquer coisa que queria contar. Queria investigá-la. Contactei-a e a minha primeira ideia era fazer um documentário. Algo mais convencional, um documentário fly-on-the-wall. Comecei a gravar entre 2016 e 2017 e apercebi-me de que o que estava a fazer não era realmente bom. Não estava a transmitir as múltiplas camadas do filme. Senti-me perdida. Achei que o projeto era demasiado complicado. Um campo de minas. É que estava perante as verdadeiras histórias destas pessoas. Também senti que podia não ser alguém indicado para tratar deste projeto. Portanto, pus o filme de lado. Fiz o meu filme anterior, uma ficção. Depois, voltei ao Quatro Filhas, ao meu primeiro desejo. Se queria perceber a origem da tragédia, tinha de viajar pelo passado desta família.

Percebeu então que tinha de usar a estrutura do documentário mas que isso não era suficiente.
Claro que quando se faz um documentário estamos a filmar o passado, mas não lhe acedemos logo à partida. Daí que se use a reconstituição, um cliché. Não costumo gostar dele mas, na verdade, o Alfred Hitchock disse certa vez que o melhor é começar com um cliché do que acabar com um. Ou seja, decidi sequestrar a reconstituição. Precisava de atrizes, que elas dirigissem esta família de mulheres para trazer de volta todas aquelas memórias. Mas também tínhamos de sair dessa memória para a interrogar em cada cena, para analisar e interrogar. Assim que tive esta ideia, tornou-se óbvio que esta forma introspetiva, que permite brincar, permite atingir a catarse, podia traduzir melhor as emoções da história. Consegui chegar mais perto daquilo que tinha em mente para o filme.

Há realizadores que não gostam muito de interferir quando estão a rodar o filme. Só que em Quatro Filhas a realizadora imiscui-se um pouco no que se está a passar. Na cena em que Olfa decide dar um estalo à filha, ouve-se a sua voz a intervir. Foi muito complicado traçar a linha entre fazer um filme e reviver toda aquela tragédia?
Depende sempre do tipo de cinema e de histórias mas, neste caso, a minha relação com elas é a fundação do filme. No início dizemos que estamos perante pessoas reais, com atores. Quando nos apresentamos assim, não nos podemos esconder. A arquitetura do filme é minha. Elas falam comigo. Todo o tempo. Não podia estar ali como um Deus e não existir. Não. Estava ali como pessoa. Mantive a minha presença porque lhes estou a contar a história da Olfa e das suas filhas. Se escondesse tudo isto, ficaria ridículo. Este é, no fim de tudo, um meta documentário.

"O filme provoca uma dissonância cognitiva. Veio com todos os clichés. As mulheres árabes, o terrorismo, todos esses clichés muito grandes. Depois percebe-se que nem tudo é assim tão fácil de entender, que estas pessoas relembram-nos as nossas vidas."

Salta muito à vista o facto de Olfa e das filhas serem muito cinematográficas. Já sabia que resultariam tão bem à frente de uma câmara?
Sim, sabia desde o início. Quando ouvi a mãe a falar percebi que era uma grande contadora de histórias. Sabia como contá-las. Não tem estrutura, é um facto, mas esse é o meu trabalho. Quando conheci as filhas, percebi que eram muito capazes, muito fotogénicas. Nós, realizadores, trabalhamos com caras, com a natureza humana. Podemos reconhecer grande potencial nas pessoas, mesmo que a câmara lhes permita exprimir esse potencial ou não. Podemos ter atores muito bonitos, mas a câmara pode não gostar deles. Neste caso, quis esperar por este projeto também para que as filhas fizessem terapia, para que crescessem. Porque em 2016 eram muito novas, tinham muitas questões. Apaixonei-me por elas, percebi que queria muito filmá-las.

Como trabalhou essa relação no período em que não estava a trabalhar no filme de facto?
Elas recebem muito bem. São acolhedoras. Quando as contactei, disse-lhes quais eram todas as minhas dúvidas. São muito divertidas, espontâneas. Por causa da história das irmãs delas que foram ter com o Estado Islâmico, tornaram-se persona non grata nos bairros, na família e até nas redes sociais. A Olfa foi muito atacada. Fui a única pessoa que não as julgou, que não lhes disse que as irmãs delas eram monstros. Por isso é que ficámos tão próximas. Quando tinham um problema, ligavam-me. Quando discutiam, ligavam-me outra vez.

Houve cenas em que os atores precisaram de parar porque a reconstituição estava a ser demasiado difícil. Como trabalhou estas emoções?
Ainda que tenhamos atores, estamos perante um documentário. Não há guião. Não os escolhi porque sabiam fingir choro, por exemplo. Vieram para o projeto por causa da personalidade, por causa da maneira de reagir enquanto pessoa e não enquanto intérprete. Não é fácil para um ator ser confrontado com a realidade, estão fora da sua zona de conforto. Não escondem nada, não existe máscara. Foi uma experiência excitante e perigosa para os atores.

"Em todas as cidades que fui para um Perguntas-e-Respostas, há sempre uma mulher a chorar. Essas mulheres relacionam-se profundamente com o Quatro Filhas. Mas este é o poder do storytelling"

São várias as formas de conflito que têm existido entre partes e grupos do mundo ocidental e outros do mundo muçulmano. Acredita que um filme tão forte como este, que exige muito ao espectador, pode ter algum efeito em quem não consegue fazer o exercício de se colocar na pele do outro?
Não sei. O filme provoca uma dissonância cognitiva. Veio com todos os clichés. As mulheres árabes, o terrorismo, todos esses clichés muito grandes. Depois percebe-se que nem tudo é assim tão fácil de entender, que estas pessoas relembram-nos as nossas vidas. Em todas as cidades que fui para um Perguntas-e-Respostas, há sempre uma mulher a chorar. Essas mulheres relacionam-se profundamente com o Quatro Filhas. Mas este é o poder do storytelling. Não temos uma boa representação árabe nos média, ainda que sejam pessoas normais. A representação árabe está errada, não estamos a contar bem a história. Não são eles que a contam. São contadas em nome dos árabes. Assim, podemos dar outra versão.

Depois do filme que chegou a estar nomeado para os Óscares, ganhou reputação em Hollywood. Porque preferiu virar-se para a Tunísia? Sente que vai conseguir resistir a essa chamada do mercado americano, que acaba por ser o mercado global?
Comecei este projeto há muitos anos. Quando fui nomeada, perguntaram quem eu era. Sentiram que deviam fazer várias propostas, mas já tinha um projeto que era este. Não podia aceitar algo pelo qual não estava apaixonada. Fazer um filme é um longo e exaustivo processo. Tem de haver paixão se não, não o faço bem. Perguntaram-me pelo filme e senti a desilusão nas suas caras: um projeto muito pequeno, disseram que não era para eles. Só que agora estou perante o mesmo desafio. Não digo que nunca farei um filme falado em inglês. Já tenho, aliás, um projeto de ficção científica nesse sentido. Só que o meu próximo filme também vai ser na Tunísia. Portanto, estou na mesma história.

O cinema tem algum tipo de poder num universo tão polarizado como este?
Sim, de facto, o momento é muito difícil. De guerra. Os filmes não mudam as coisas, os políticos sim. Têm o poder real sobre as nossas vidas. O cinema muda a perspetiva. É um poder mais suave. Muda-nos a imaginação, muda a representação das pessoas no mundo inteiro. E isso é uma ferramenta muito forte. Não é uma mudança imediata, atenção, mas sim, sinto que estamos a viver num período muito complicado da nossa história. Há muito medo. Muitos radicais estão a voltar. Ainda assim, tudo é storytelling.

Até os políticos.
Sim, sim, por excelência. Storytelling do medo.

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