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Lisnave. 50 anos depois, uns estaleiros que marcaram a história de Portugal. E da revolução

De grande sonho industrial a destino imobiliário e turístico. Pelo caminho ficou o ideal do controlo operário. 50 anos de história de Portugal. Perdão, de história da Lisnave.

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Coube ao sr. Almirante Américo Thomaz, investido das altas responsabilidades da Suprema Magistratura da Nação, inaugurar um empreendimento que […]” escrevia O Século de 24 de Junho de 1967.

Em 1967 o país político, representado pela linguagem anacrónica e convencional dos jornais, contrastava com o país económico. Nesse país económico algo de novo e arrojado estava acontecer. Como a inauguração dos estaleiros da Lisnave, a 23 de Junho.

O regime iria durar mais sete anos. O estaleiro da Lisnave na Margueira mais 33, atravessando o estertor do regime, o PREC e o sonho do controlo operário. Três crises, uma delas acompanhada de salários em atraso, três reestruturações e um encerramento definitivo.

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1967. O ESTALEIRO DA MARGUEIRA, UM GIGANTE PORTUGUÊS

O que em 1967 o projecto da Lisnave trazia de novo, para além do gigantismo que fazia títulos (300 mil metros quadrados de área, dos quais 260 mil conquistados ao rio, duas docas secas, uma delas com capacidade para navios até 300 mil toneladas de porte) era o modelo económico representado no discurso de José Manuel de Mello, presidente do conselho de administração da empresa, no dia da inauguração do estaleiro da Margueira: “A Lisnave irá trabalhar no que em termos económicos se chama mercado aberto”, devendo ser “uma grande unidade industrial sem quaisquer dependências”.

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Para o Presidente da República, que o ouvia, estas palavras deviam soar estranhas. Treze anos antes, ainda ministro da Marinha, Thomaz tinha dado um parecer favorável ao Samouco em detrimento da Margueira para construção do futuro estaleiro naval por razões puramente internas (entre outras porque para Cacilhas estava previsto um terminal ferroviário). Agora era obrigado a ouvir frases a que não estava habituado: “há que servir uma clientela de mentalidade totalmente diferente da nossa e satisfazer-lhe as necessidades”.

Quando a inauguração do estaleiro de Margueira acontece, em 1967, com a presença de 2500 convidados – transportados em 70 autocarros a partir de Lisboa e instalados em sete filas de lugares sentados de 200 metros cada uma, além dos 5000 trabalhadores e suas famílias – concretiza-se finalmente o projecto de um grande estaleiro para Lisboa.

O estaleiro da Margueira surge assim vocacionado desde o início para o exterior e mais especificamente para a reparação naval em vez da construção. As razões eram evidentes: três quartos do tráfego de petroleiros passavam-nos à porta. Aqui se cruzavam as principais rotas de tráfego mundial do crude, o que significava para os armadores desses navios que fazer reparações em Lisboa não implicava desviar a rota. Podiam fazê-lo no seu trajecto para sul, após descarregarem o petróleo bruto nas refinarias do Norte, e com o benefício de aproveitarem essa viagem para lavar e desgasificar os tanques, uma operação obrigatória antes de iniciar a reparação.

Havia ainda outras vantagens, como a proximidade a uma grande cidade como Lisboa (importante para ocupar o ócio das tripulações) e a zonas urbanizadas como Almada, para residência dos trabalhadores. Mais importante ainda era o clima, permitindo que os trabalhos ao ar livre pudessem ser executados durante a maior parte do ano, o que não acontecia nos portos da Europa situados noutras latitudes.

Quando a inauguração do estaleiro de Margueira acontece, em 1967, com a presença de 2500 convidados – transportados em 70 autocarros a partir de Lisboa e instalados em sete filas de lugares sentados de 200 metros cada uma, além dos 5000 trabalhadores e suas famílias – concretiza-se finalmente o projecto de um grande estaleiro para Lisboa. Um projecto que já contava com pelo menos 13 anos. Em Abril de 1954, Dom Manuel de Mello, genro do fundador da CUF, Alfredo da Silva, envia ao ministro da Marinha, Américo Thomaz, um requerimento para construção de uma grande unidade naval.

Desde 1937 que a CUF detinha a concessão na Rocha do Conde de Óbidos do Estaleiro Naval da Administração Geral do Porto de Lisboa, actividade que a partir dos anos 50 pretende alargar, procurando ao mesmo tempo a internacionalização do grupo. E assim surge a Lisnave.

Oficialmente constituída a 11 de Setembro de 1961, a Lisnave contava com 49 por cento de capital português (maioritariamente da CUF) e outro tanto de sócios holandeses e suecos. A 20 de novembro de 1962 é concedida à Lisnave autorização para construir e explorar um estaleiro naval de construção e reparação. Rapidamente a Margueira surge como a melhor localização para o empreendimento que começa a ser construído em 1964. Custo: 800 milhões de escudos dos quais 330 correspondiam a equipamento e 470 a construção. Previa-se então que contribuísse para o PIB com 500 mil contos, dos quais 60 por cento deveriam corresponder a remunerações. Tudo era gigantesco na Margueira.

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1971. A INAUGURAÇÃO DA MAIOR DOCA SECA DO MUNDO

A 5 de junho de 1967, escassas duas semanas antes da inauguração do estaleiro da Margueira, surge uma notícia que irá representar para a Lisnave um bónus pré-natal: o canal do Suez acabava de ser encerrado pelo Egipto na sequência da Guerra dos Seis Dias. Todo o trânsito que passava pelo Suez, fazendo a ligação entre o Oriente produtor de petróleo e o Ocidente consumidor, era agora obrigado a regressar à velha Rota do Cabo, contornando a África pelo sul.

Tudo isto eram boas notícias para a Lisnave que se mantinha no cruzamento destas ligações e via afastados da sua concorrência os estaleiros situados no Mediterrâneo. Mas havia ainda outras consequências: como forma de rentabilizar um percurso mais longo, os armadores vão apostar na construção de navios cada vez maiores. O mundo ia entrar na era dos VLCC (Very Large Crude Carriers). Era um novo impulso no sector com o qual a Lisnave só tinha a ganhar.

Quando em 1962 o governo autoriza a construção do estaleiro da Margueira apenas existiam dois navios com porte superior a 70 mil toneladas. Com o fecho do Suez ultrapassa-se rapidamente a fasquia das 100 mil toneladas. Isso não constituía problema para o estaleiro do Tejo – a sua doca nº 11 estava preparada para receber embarcações de 300 mil toneladas, caso único na Europa. Mas em 1971 já circula um navio de 372 mil toneladas.

Prevendo a evolução futura, a Lisnave começa logo em 1969 a conceber a construção de uma nova doca seca de grande capacidade, para navios com mais de 750 toneladas brutas, ficando o projecto inscrito no plano de investimentos de 1970. Nesse ano a Margueira tinha docado 18 por cento de todos os petroleiros existentes com mais de 70 mil toneladas mas na categoria dos mais de 120 mil essa percentagem era de 40 por cento. A Lisnave estava vocacionada para os superpetroleiros e pretendia continuar assim.

Quando a doca nº 13, baptizada com o nome do fundador da CUF, Alfredo da Silva, é inaugurada, são conhecidas em pormenor as dimensões: 520 metros de comprimento e 90 de largura, servidos por um pórtico gigante com capacidade de içar 300 toneladas

O projecto elaborado para a nova doca nº 13 acaba por fixar a sua dimensão num milhão de toneladas. Era um projecto megalómano e parecia um desperdício de recursos. Afinal o porte dos navios nunca chegou sequer perto do milhão de toneladas. O maior de todos, o petroleiro Knock Nevis, um gigante onde a tripulação se habituou a circular de bicicleta no convés para ganhar tempo, atinge só as 564 763 toneladas. Além disso a reabertura do canal do Suez, prevista para 1974 (só se concretizou em 1975), viria reduzir a tonelagem dos petroleiros.

Mas esta perspectiva também tinha sido pensada. Mesmo que a construção naval não evoluísse para essas dimensões ciclópicas o investimento seria recompensado já que a doca nº 13 poderia docar dois ou mesmo três navios ao mesmo tempo. Previa-se até que em 40 por cento das docagens na doca nº 13 os navios ficassem aos pares, o que aumentava a utilização da doca: em vez de 85 previa-se que 128 navios pudessem ser ali reparados anualmente. Outra forma de rentabilização baseava-se nas docagens de popa, aproximando esta parte do navio das oficinas, poupando assim cerca de um quilómetro de distância nas deslocações dos trabalhadores.

A Lisnave vivia então um presente radioso, a avaliar pela natureza dos problemas de que a administração se lamenta nesse ano de 1971, problemas de fazer inveja a qualquer empresário 46 anos depois: limitações de espaço para expansão do negócio e receio de falta de mão-de-obra, devido à emigração.

Quando a doca nº 13, baptizada com o nome do fundador da CUF, Alfredo da Silva, é inaugurada, são conhecidas em pormenor as dimensões: 520 metros de comprimento e 90 de largura, servidos por um pórtico gigante com capacidade de içar 300 toneladas, de 125 metros de largura e 65 de altura, quase tão alto como o tabuleiro da na altura designada Ponte Salazar, inaugurada um ano antes.

A Lisnave vivia então um presente radioso, a avaliar pela natureza dos problemas de que a administração se lamenta nesse ano de 1971, problemas de fazer inveja a qualquer empresário 46 anos depois: limitações de espaço para expansão do negócio e receio de falta de mão-de-obra, devido à emigração.

A empresa tinha elaborado um plano que apontava para a necessidade futura de ocupação de mais 70 mil metros quadrados ao longo do rio. Não podendo crescer para Cacilhas (limitado aliás por outro estaleiro, Parry & Son) só podia alargar-se para a área do Arsenal do Alfeite.

O número de trabalhadores da Lisnave irá chegar aos dez mil. E serão eles, os trabalhadores, que irão estar no centro da evolução da Margueira na nova época que se inaugura em 1974.

Em 1971, a Margueira começava portanto a cobiçar terrenos alheios. Do Estado e mais exactamente da Marinha. Nesse caso devia ter pensado antes nestas limitações? José Manuel de Mello responde a esta pergunta que ele próprio coloca durante o discurso de inauguração da doca nº 13: há alguns anos “era imprevisível, de todo imprevisível, o êxito da Margueira nesta nova actividade”.

E como se media o sucesso da Margueira? Em 1967, quando foi inaugurado, o estaleiro da Margueira contabilizou 5,5 milhões de toneladas de navios reparados, em 1971 iria chegar aos 18,1 milhões e no ano seguinte aos 25 milhões. O número de trabalhadores, para os mesmos anos segue uma linha de crescimento semelhante: 4719, 6491 e 7107.

O número de trabalhadores da Lisnave irá chegar aos dez mil. E serão eles, os trabalhadores, que irão estar no centro da evolução da Margueira na nova época que se inaugura em 1974.

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1974. A REVOLUÇÃO CHEGOU MAIS CEDO

Em princípios de Maio de 1974, no ambiente de aparente unidade que ainda se vivia a nível nacional, a Lisnave antecipa o PREC que apenas se generalizaria um ano depois em Portugal.

Duas semanas passadas sobre o 25 de Abril, a 9 de Maio, uma reunião geral de trabalhadores, decide a extinção da Comissão Interna da Empresa (CIE), substituída por uma Comissão Provisória da Delegados. A CIE, formada por representantes eleitos pelos trabalhadores, tinha sido criada em 1968 pela própria administração com o objectivo de facilitar “a informação em profundidade” e “promover um clima de mútua confiança e de boa colaboração” entre todos os membros da empresa, garantindo que nas suas reuniões, uma vez por mês, todas as questões poderiam ser abordadas “com excepção do problema dos vencimentos e dos salários”.

A administração ainda pede um prazo de 10 dias para ponderar, o que lhe é recusado, iniciando-se a greve no dia 15 com sequestro do administrador delegado Manuel Perestrello e do seu adjunto Nils Eckerbom, além de outros directores, nas instalações do estaleiro.

Ora o “problema dos vencimentos” era exactamente aquele que os trabalhadores consideravam ser a prioridade nesses dias pós 25 de Abril. Apresentam assim um caderno reivindicativo à administração, a 14 de Maio, que pouco oferecia de espaço de manobra: exige-se uma resposta positiva até ao dia seguinte, ameaçando-se com a greve em caso de recusa. A administração ainda pede um prazo de 10 dias para ponderar, o que lhe é recusado, iniciando-se a greve no dia 15 com sequestro do administrador delegado Manuel Perestrello e do seu adjunto Nils Eckerbom, além de outros directores, nas instalações do estaleiro. Por ironia entre os sequestrados está António da Costa Leal, entretanto nomeado secretário de Estado do Orçamento do 1º Governo que para poder tomar posse tem de ser escoltado do interior da Margueira por militares (por acréscimo de ironia, viria a ser ministro do Trabalho do IIIº Governo Provisório).

Paralelamente a palavra saneamento começa a circular com insistência, acabando por resultar na elaboração de uma lista que atinge sobretudo os quadros superiores. O alvo principal era Manuel Perestrello que acaba por pedir a demissão em Outubro de 1974.

A greve só termina a 23 de Maio, nove dias depois do seu início e após a recusa de duas contrapropostas apresentadas pela administração, que vê também as instalações que lhe estavam reservadas no interior do estaleiro serem ocupadas pelos membros do piquete de greve (jornais e estações de televisão estrangeiras seguem estes acontecimentos, o que se explica pelo reconhecimento externo da empresa). Na prática os administradores acabam por aceitar quase todas as exigências apresentadas pela Comissão de Delegados (salário mínimo, mês de férias, 13º mês). Mas manifestam a sua preocupação com o futuro da empresa, não prevendo qualquer lucro nos anos seguintes. A Lisnave fecharia o ano de 1974 com um aumento dos encargos sociais de 45,8 por cento e o de 1975 com um acréscimo de 14,4 por cento, tendência que iria prosseguir nos anos seguintes.

Agora, ou seja desde o choque petrolífero de 1973, a conjuntura internacional apontava na direcção da contenção das despesas sociais por parte das empresas. No caso da Lisnave, que vivia em estreita dependência da evolução dos mercados internacionais e em particular das contingências dos preços do petróleo, isso era ainda mais inequívoco já que os seus clientes eram quase exclusivamente os armadores dos navios tanques (mais tarde tentou-se captar navios de passageiros mas concluiu-se que estes nunca estavam disponíveis, ou seja descarregados, à sua passagem por Lisboa).

No estaleiro o ritmo de trabalho ainda se mantém a níveis aceitáveis, resultado de encomendas feitas em anos anteriores. Um decréscimo de actividade era já evidente na segunda metade de 1974, prevendo-se que diminuísse em anos futuros já que as encomendas tinham caído a pique em 1974.

Celeste Cardona, que seria dirigente do CDS, começou na Lisnave. Neste boletim assinala-se que é o membro 3.000 do clube da empresa. O que não surpreende: afinal tinha pertencido à comissão de trabalhadores da Lisnave após o 25 de Abril.

Esperavam-se por isso tempos difíceis. Até porque os prazos de execução tinham também aumentado, quase 50 por cento: o período médio de estadia dos navios para reparação passara de 4,5 para 6,5 dias em resultado das limitações de horário dos trabalhadores (redução de horas extraordinárias, de turno e de trabalho ao fim-de-semana) acordadas entre a administração e os trabalhadores.

No passado também se tinham registado reduções de horário e aumentos de vencimento mas de acordo com a evolução da produtividade da empresa. Era precisamente contra este princípio que as estruturas que lideravam os trabalhadores se opõem em 1974. Contrapõem um novo paradigma, baseado, diziam, num conceito de justiça social: os direitos e remunerações deveriam ser satisfeitos necessariamente pelos patrões ou, na impossibilidade de estes o fazerem, pelo Estado. A nacionalização, que era a conclusão deste raciocínio, nunca chegou todavia a ser aplicada à Lisnave (ao contrário do que aconteceu com a congénere Setenave), embora o Estado tenha acabado por ficar com 23 por cento do capital da empresa, decorrentes das nacionalizações de bancos e seguradoras.

Mas em 1975, um ano depois de Abril de 1974, a aprovação dos cadernos reivindicativos já não satisfazia as estruturas representativas dos operários da Lisnave. Se o objectivo era a a liquidação do regime capitalista só o controle operário, ou seja o poder de decidir os destinos da empresa, permitia alcançá-lo.

A administração argumentava por seu lado com a conjuntura internacional, à qual a empresa deveria adaptar-se, aguardando por melhores tempos. Mas se o capitalismo estava em crise (temporária, segundo a administração, definitiva segundo os trabalhadores) a solução era óbvia, segundo as organizações sindicais: trabalhar para os países socialistas. É assim que em Fevereiro de 1975 entra na Margueira o primeiro petroleiro da URSS, o Krym, de 150 mil toneladas, seguido nos anos seguintes de outros navios dos países de leste.

Mas em 1975, um ano depois de Abril de 1974, a aprovação dos cadernos reivindicativos já não satisfazia as estruturas representativas dos operários da Lisnave. Se o objectivo era a a liquidação do regime capitalista só o controle operário, ou seja o poder de decidir os destinos da empresa, permitia alcançá-lo. Durante todo o ano de 1975 manter-se-ia esta prioridade. Até que o evoluir da crise da Lisnave obrigou a conciliar posições. A partir de 1978, a par da “estabilidade do ambiente laboral” (como a administração lhe chamava) o controle operário ficou adiado sine die. A destruição do capitalismo ia ter de esperar.

1986. ATÉ AO FIM

No seu boletim de Fevereiro de 1978 o Clube Lisnave lamentava que quatro anos antes “devido aos acontecimentos políticos do momento, as pessoas eram atraídas para outros polos de atracção, que não os desportivos”.

Fundado a 1 de Setembro de 1970 o Clube Lisnave tinha na piscina o seu principal motivo de orgulho. Inicialmente reservada aos tripulantes dos navios que chegavam à Margueira para reparações, ficou acessível aos trabalhadores da Lisnave e seus familiares após o 25 de Abril.

A relação entre os trabalhadores e a administração estava agora a permitir uma recuperação da Lisnave, apesar de no domínio das aparências as estruturas representativas dos operários manterem o mesmo discurso. 

O Clube Lisnave ou o Posto Médico da Margueira (criado em 1972 já estava dotado de laboratório de análises clínicas e serviço de radiologia) prestavam serviços que só deficientemente eram então disponibilizados pelo Estado. Estes equipamentos são hoje explicados pela historiografia dedicada às grandes indústrias do período do Estado Novo pela intenção dos patrões de estabelecer uma ligação paternalista dos trabalhadores à empresa, nada tendo por isso de altruístas. Para o posterior declínio e encerramento destas estruturas nascidas do dito paternalismo ainda não se arranjaram palavras – o clube está hoje abandonado – mas vale a pena voltarmos ao boletim de Fevereiro de 1978 do Clube Lisnave. Nele dava-se conta das tentativas da empresa para normalizar a vida associativa pelo menos no que àquele clube interessava: o desporto.

Pode dizer-se que o ambiente que se vivia no clube em 1978 não era muito diferente daquele que se registava no próprio estaleiro por essa altura. A relação entre os trabalhadores e a administração estava agora a permitir uma recuperação da Lisnave, apesar de no domínio das aparências as estruturas representativas dos operários manterem o mesmo discurso. A revista O Estaleiro, por exemplo, mantinha um secção intitulada “Formação ideológica” onde, no número de Julho de 1979, se explica a origem do lucro capitalista. E obviamente a necessidade de acabar com ele.

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Não era por isso perceptível no interior do estaleiro a crise externa que entretanto se iniciava, em resultado das alterações políticas no Irão (o segundo choque petrolífero) e que só chegariam à Margueira em 1981. De novo regressam à Lisnave a contestação social, as greves, as convocatórias para grandes assembleias em resposta aos salários em atraso e às perspectivas de despedimentos. Só cinco anos depois, através do pacto de 1986 e de nova retoma da economia internacional, a empresa conheceria alguma tranquilidade. A perspectiva de encerramento estava afastada?

Por enquanto. Visto à distância de alguns anos tinha-se tratado apenas de mais uma crise das várias, cíclicas, que caracterizaram o sector na segunda metade do século passado. Logo em 1990, na sequência da invasão do Koweit pelo Iraque, a actividade naval voltaria a cair. De novo a Lisnave seria atingida, de novo faria uma reestruturação (1993), de novo tentaria um pacto (1997), agora o derradeiro, para encerrar três anos depois, no último dia do ano 2000.

Ao findar o penúltimo ano de existência, 1999, a Lisnave apresentava um resultado negativo de 5,7 milhões de contos. Alguns meses depois, a 30 de Junho, era vendida por um dólar a dois dos seus quadros, José Rodrigues e Nelson Rodrigues. 

O estaleiro da Margueira nasceu virado para o mercado externo, num sector de competição feroz, onde conseguiu ganhar reputação internacional. Tinha a maior doca-seca do mundo, chegou a empregar mais de 10 mil trabalhadores. Sobreviveu 33 anos, assistindo ao encerramento de muitos outros estaleiros em todo o mundo, em resultado de crises sucessivas que atingiram o sector da construção e reparação naval. No fim, ao fechar as portas, contava com 5200 navios reparados ao longo da sua existência.

Porquê o fecho? Ao findar o penúltimo ano de existência, 1999, a Lisnave apresentava um resultado negativo de 5,7 milhões de contos. Alguns meses depois, a 30 de Junho, era vendida por um dólar a dois dos seus quadros, José Rodrigues e Nelson Rodrigues. Simultaneamente o Grupo José de Mello assumia passivos de 9,8 milhões de contos. Mas o endividamento era antigo, iniciara-se após 1974, quando a subida das taxas de juro tornara mais difícil o acesso ao crédito bancário. E tornara-se crónico, sempre crescente, a partir do início dos anos 80.

Disso mesmo, de “política de endividamento”, foi a administração da Lisnave acusada pelas organizações de trabalhadores ao longo dos anos: a má gestão terá por isso ditado a sua morte.

Mas o seu fundador tinha outra explicação: “São os únicos estaleiros na Europa que não têm o sistema do horário anual.” – escreve José Manuel de Mello em Janeiro de 2001, já depois do encerramento do estaleiro da Margueira. Na Lisnave o trabalho era remunerado mesmo quando não existiam navios para reparar, sendo em seguida pago em horas extraordinárias quando eles existiam. Daí conclui José Manuel de Mello: “é preciso ter a flexibilidade de ajustamento aos ciclos desta actividade. Foi esta última condição que a Lisnave foi impedida de respeitar e é aqui que está a base do seu fracasso como entidade empresarial”.

E o futuro? Bem, o futuro agora anunciado será o imobiliário, até agora o grande triunfador das sucessivas crises de Portugal. A grande indústria tornou-se memória do passado e quimera do futuro.

Agora que a Lisnave não passa de uma sucessão de docas e terrenos abandonados, por uma vez os representantes dos trabalhadores concordariam com o antigo administrador, ou mais propriamente com a conclusão (ou será epitáfio?) que José Manuel de Mello escreveu em 2001: a Lisnave correspondeu a um capitalismo de outros tempos, “orientado pelo objectivo de fazer bem, vencendo os concorrentes pela qualidade e pela rapidez”, ao contrário do actual capitalismo financeiro em que tal é impensável pois o accionista não tem rosto – é apenas o capital accionista – e tem de ser remunerado rapidamente. No caso da Margueira o capital accionista nunca terá sido remunerado, dissolvendo-se nos prejuízos: “Por ironia – escrevia Jośe Manuel de Mello – poderia dizer-se que se está perante uma inversão da teoria marxista da mais-valia”.

E o futuro? Bem, o futuro agora anunciado será o imobiliário, até agora o grande triunfador das sucessivas crises de Portugal. A grande indústria tornou-se memória do passado e quimera do futuro.

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