Este artigo faz parte de um conjunto de artigos setoriais que será publicado ao longo da semana em que Carlos Moedas assinala um ano de mandato à frente da câmara de Lisboa — o primeiro é sobre o lixo na cidade.
Caixotes do lixo, papeleiras, ecoilhas, ecopontos, varredores, cantoneiros. Cada vez que coloca um saco do lixo no respetivo contentor há todo um processo logístico que é ativado para que não se acumulem pilhas de sacos abandonados aqui e ali. Isto, pelo menos, na teoria. Neste primeiro ano, com Carlos Moedas ao leme da autarquia lisboeta, o executivo viu-se confrontado com as queixas e lamentos dos lisboetas que com a pandemia se desabituaram à constante de lixo por recolher na cidade. A reforma administrativa na área tem muitos anos, mas o interregno provocado pela pandemia e a retoma acelerada dos últimos meses, nomeadamente na área do turismo, vieram dificultar a vida à câmara municipal de Lisboa.
Carlos Moedas assinalou a data da eleição precisamente a prometer uma “reforma estrutural” na área da recolha do lixo e esta promete ser mesmo uma das principais dificuldades que terá de gerir, pelo menos, já neste segundo ano de mandato. O lixo promete não desaparecer, Carlos Moedas já prometeu “uma reforma estrutural” e, sem se comprometer com detalhes “antes de ouvir os presidentes de junta”, garante que ficará claramente definido a quem compete o quê na gestão das cerca de 900 toneladas de lixo produzidas todos os dias.
Mais 190 trabalhares e 10,2 milhões de euros nas freguesias para a higiene urbana, mas não foi ainda suficiente
Em pleno verão, com a quantidade de lixo a aumentar nas ruas e o problema a ganhar maior visibilidade, Carlos Moedas avançou para o anúncio da contratação de quase 200 funcionários para a área da higiene urbana na autarquia. O objetivo era integrar 190 trabalhadores, sendo 160 cantoneiros e 30 motoristas, mas a entrada ao serviço de todos eles resvalou no tempo, com os prazos a ultrapassarem o desejado setembro. Ao que o Observador apurou, neste momento, faltarão poucos funcionários dos 190 anunciados, já que nem todos os que foram aceites para preencher as vagas continuaram disponíveis para o fazer. E esse é, aliás, um dos problemas apontados ao Observador por Victor Reis, do Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa: “Com a demora nos concursos quando as pessoas são chamadas para trabalhar já encontraram outra coisa”. Ainda assim, serão poucas as lacunas nos anunciados 190 novos trabalhadores.
Coisa diferente será analisar o quadro geral onde, de acordo com o sindicato, ainda “continuam a faltar recursos humanos”. Um dos exemplos dessas insuficiências — que não é visível aos olhos dos lisboetas, mas tem impacto direto na recolha — é o dos profissionais nas oficinas dos Olivais, onde é feita a manutenção da frota ao serviço da higiene urbana da autarquia. Com os camiões fora de serviço a tarefa de recolha é dificultada e a gestão das respetivas rotas também. E como nada parece correr de feição ao autarca na área da recolha do lixo, também a alteração temporária do depósito do lixo recolhido num aterro diferente do habitual foi fonte de constrangimentos.
Além dos quilómetros extra que foi necessário percorrer entre a Valorsul — onde é habitual serem esvaziados os camiões — e o ASMC (Aterro Sanitário de Mato da Cruz) a configuração das estradas a percorrer até lá também contribuíram para um desgaste mais rápido dos camiões e consequentes necessidades de reparação extra.
E se os recursos humanos são essenciais para a operação, com a situação “normalizada”, segundo apurou o Observador junto de fonte do departamento responsável pela higiene urbana, uma das dificuldades que se coloca é a “entrega de viaturas novas”. Há alguns meses a autarquia chegou a ser confrontada com “tempos de espera de até dois anos”, o que poderá dificultar a operação caso não seja possível reparar os camiões danificados ou caso deixem de estar operacionais devido ao normal desgaste ao longo dos anos.
Mas, na prática, porque não são recolhidos os sacos do lixo que transbordam dos contentores? Segundo dados da autarquia, em 60% da cidade de Lisboa a recolha é feita porta-a-porta, ou seja, cada prédio tem os contentores respetivos, para os vários tipos de lixo (comum, papel, plástico ou vidro) que apenas devem ser colocados na rua nos dias específicos, destinados ao tipo de lixo, e num espaço de tempo determinado: entre as 18 horas e as 10 horas da manhã seguinte. A isto somam-se os ecopontos nas ruas (que deverão ser usados ao mínimo, caso os prédios da rua disponham de contentores diferenciados) e as ecoilhas (já para não mencionar ainda os oleões). Todos estes tipos de contentores têm um calendário específico de recolha e rotas (com dias e horas) diferentes também.
Ao Observador, fonte envolvida na recolha de resíduos explica ainda que “com a pandemia os hábitos se alteraram” — não só em Portugal, mas um pouco por toda a Europa — e que os lisboetas passaram a preferir os contentores do lixo subterrâneos para deixar os sacos do lixo. Ora, o sistema que foi pensado como complementar está a passar gradualmente a ser a primeira escolha dos lisboetas o que, de acordo com a mesma fonte, resultou numa sobrecarga dos caixotes do lixo subterrâneos.
“Será necessário, naturalmente, reforçar o investimento nas soluções subterrâneas, dando mais opções aos lisboetas, mas o investimento é muito grande”, nota a mesma fonte que reconhece que “depois de julho a situação tem caminhado para a normalização”.
Juntas de freguesia como peça-chave no problema
Resulta fácil perceber que o planeamento e gestão de toda a operação não é simples, e ademais, terá que ser multiplicado pelo número de freguesias. Isto porque, além dos tipos de contentores há ainda que varrer e lavar as ruas e despejar as papeleiras que se encontram na via pública. Mas, daí, Carlos Moedas pode tentar lavar as mãos. Com a reforma no sistema de recolha de lixo essas funções passaram para as mãos das juntas de freguesia.
Em julho, vários meses depois de ter tomado posse e já com o descontentamento dos presidentes de junta de freguesia a fazer-se ouvir pela demora na assinatura dos contratos, no Salão Nobre dos Paços do Concelho da Câmara Municipal foram assinados os contratos entre a Câmara e as juntas de freguesiapara a “para recolha de resíduos indevidamente depositados junto de ecopontos e ecoilhas de superfície, ecopontos subterrâneos e vidrões.”
O executivo autárquico anunciou 10,2 milhões de euros, mas os presidentes de junta de freguesia fazem outras contas. Ao Observador, um dos autarcas em Lisboa diz que “não há nenhum protocolo novo que este executivo tenha feito” e que apenas são mantidos “os valores do executivo anterior”, além de ter “demorado nove meses a ser renovado”. “Dos 18 milhões que Carlos Moedas fala o único contrato para a retirada dos sacos do lixo das ilhas de reciclagem prevê 100 mil euros por ano”, explica ao Observador uma fonte nas juntas de freguesia que fez as contas e lamenta: “São oito mil euros por mês, não chegam para pagar os salários e o combustível que se gasta”.
E se a questão operacional é uma dor de cabeça difícil de solucionar, para o passa-culpas sobre a recolha de lixo, Carlos Moedas parece ter solução. Pelo menos para que fique claro quem está a falhar. Com a prometida “reforma estrutural”, Moedas ambiciona deixar ainda mais claro que competências cabem à Câmara Municipal e as que são das juntas de freguesia. Conseguindo o acordo para tal, mesmo que continue a falhar a recolha, Carlos Moedas poderá responsabilizar as juntas de freguesia. Ainda assim, com uma maioria de juntas de freguesia nas mãos dos socialistas a “guerra” pelo lixo poderá trazer uma fatura mais pesada na gestão política.
Ao Observador, Davide Amado presidente Junta de Freguesia de Alcântara aponta o dedo à “gestão da operação“. “A situação está pior, antes havia falhas pontuais, agora pontualmente as coisas correm bem”, diz, acrescentando que “os meios são os mesmos que eram há um ano” e que a única mudança foi a “gestão da operação”.
“Enquanto Carlos Moedas não perceber que tem um problema e é responsável nunca o vai resolver. Carlos Moedas e executivo podem criar uma narrativa, fantasias, ser ilusionistas nos números e na forma como comunicam, mas a situação está pior”, diz ao Observador o autarca socialista.
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O valor entregue às juntas de freguesia também é fonte de desafinação. As freguesias do centro histórico recebem um valor mais elevado uma vez que são zonas de maior pressão turística. Mas é também nessas zonas da cidade que o lixo mais se tem vindo a acumular. O regresso da atividade turística — e o incumprimento das regras relativas à recolha do lixo, conforme lamentam alguns responsáveis políticos –, coloca mais pressão nos serviços de higiene urbana.
Também Carla Madeira, da Junta de Freguesia da Misericórdia, nota que “as recolhas diminuíram de há um ano a esta parte” e que “há falhas constantes na recolha do lixo”. A socialista reconhece que há “informação” da autarquia sempre que é solicitada sobre as falhas na recolha, mas a pressão na freguesia imposta também pelo turismo faz com que seja impossível não notar cada falha na recolha, dado o lixo que rapidamente se acumula.
O presidente da Junta de Freguesia de Alvalade, José Amaral Lopes, reconhece que “há muito a fazer” e que “as juntas de freguesia são os primeiros descontentes”, mas nota a grande dificuldade em recrutar recursos para a higiene urbana. “Higiene urbana são 365 dias. É uma profissão difícil e pouco atraente, temos que ter consciência disso e criar melhores condições de trabalho para as pessoas”, afirmou o responsável político, notando que “neste mandato foi feita a regularização dos subsídios devidos aos trabalhadores”.
O presidente nota ainda que a atitude de cada um é uma peça importante no circuito. “Tudo o que fizermos poderá não suficiente, as pessoas criam lixo 365 dias por ano. É preciso de todos nós, cidadãos, outra atitude. As pessoas sujam, podem não ter paciência e cuidado para fazer as coisas de forma a prejudicar o mínimo possível a comunidade em geral”, diz o social-democrata responsável pela freguesia de Alvalade, que frisa que Carlos Moedas “fez investimento que nunca tinha sido feito” e que “vinha do legado passado uma falta de recursos humanos muito evidente”.
Próximo passo: aumentar a fiscalização?
Às contingências operacionais somam-se, naturalmente, as da produção de lixo. Depois de dois anos de pandemia, altura em que o turismo esteve reduzido a números historicamente baixos, uma retoma rápida a valores próximos aos da pré-pandemia resultou numa receita explosiva, pouco amiga dos cantoneiros.
Se durante a pandemia foi nos bairros mais residenciais da capital que a recolha de lixo era mais exigente, com a retoma do turismo o ónus inverteu-se e passaram a ser, naturalmente, aqueles onde há uma maior pressão turística (seja através do alojamento, seja através da restauração) a levantar maiores exigências na produção de resíduos urbanos.
De acordo com algumas fontes nas juntas de freguesia ouvidas pelo Observador, a solução pode passar também pelo aumento da fiscalização. Isto é, ficando definido quem tem responsabilidade em que ponto será necessário depois fiscalizar para que se mostre quem está em incumprimento.
Um dos responsáveis nas freguesias reconhece que a “câmara municipal e as juntas de freguesia não podem ter um varredor em cada rua ou ecoponto”, para dar resposta ao aumento do lixo depositado na rua poucas horas depois da passagem dos circuitos de limpeza. Mas lembra que — à semelhança do que acontece com o regulamento de estacionamento — a solução pode passar por um “regulamento da higiene urbana”.
E seria à boleia desse regulamento que a fiscalização entraria em cena. “Se um caixote do lixo tiver etiqueta do estabelecimento, por exemplo, é fácil identificar quem coloca o lixo fora de horas. Neste momento o fiscal não tem capacidade para autuar e qualquer pessoa deposita os resíduos fora do regulamento. Há regulamento de estacionamento, há o regulamento da higiene urbana. É necessário fiscalizar e fazer cumprir”, nota o responsável político ao Observador.
Outro dos fatores que o executivo de Moedas poderá ter em conta, caso não haja qualquer alteração legislativa nesse sentido, será a entrada em vigor das alterações ao Regime Geral da Gestão de Resíduos que poderá baralhar novamente as contas e rotas operacionais da recolha de lixo na cidade. Isto porque de acordo com o Regime Geral da Gestão de Resíduos serão considerados “grandes produtores” quem diariamente produza acima de 1.100 litros de resíduos (0 equivalente ao caixote de lixo típico de rua com quatro rodas) e é responsabilidade de cada entidade contratualizar uma solução para o tratamento do lixo produzido.
Ao Observador, fonte responsável pela gestão de resíduos em Lisboa explica que “teoricamente” esta lei seria um “alívio“, já que automaticamente grande parte dos restaurantes, por exemplo, passaria a ser considerado um “grande produtor” e a autarquia deixaria de ter que ser responsável pela recolha nesses pontos (libertando recursos para a restante operação), mas que na prática basta imaginar como seria a aplicação do Regulamento numa das zonas da cidade com maior produção de lixo, o Bairro Alto.
“Com a quantidade de comércio naquela zona, se cada um contratar uma empresa diferente para a recolha, basta imaginar o número enorme de viaturas a circular todos os dias para fazer a toda a recolha”, explica, frisando que a área de recolha de lixo está longe de “ser preto no branco.”
Com os recursos humanos na área da higiene urbana “regularizados”, o objetivo de fazer uma “reforma estrutural” na área e um eventual “empurrão” (que na prática também pode transformar-se num pesadelo) da entrada em vigor das alterações ao Regime Geral da Gestão de Resíduos, Carlos Moedas terá hipótese de conseguir resolver um problema que ensombra a governação da cidade há décadas, conseguindo deixar a cidade sem sacos do lixo pelo chão.